TELMA, LOIRA, ENFERMEIRA - Miniconto
MILTON MACIEL
– Fique quietinho agora. Respire
bem devagar. E não tente se levantar ainda.
Para mim, parecia que aquela voz
sussurrada vinha de uma outra dimensão... Mas ela me trazia de volta ao mundo
real. Entreabri os olhos e deparei com um rosto simplesmente perfeito,
absurdamente bonito, como eu nunca tinha visto na vida.
A dois palmos de mim,
emoldurados entre cabelos loiros e brilhantes, dois olhos de um azul esverdeado
quase diáfano me fitavam com candura e bondade, infundindo-me uma paz
inacreditável.
Só então compreendi que eu tinha
desmaiado e que aquela criatura divina, com um corpo escultural, denunciado por
um conjunto de blusa e calça impecavelmente brancos, estava cuidando de mim,
tratando de me reanimar.
Sim, minutos atrás eu tinha
conseguido chegar ao cemitério, onde estava se dando o ato final do
sepultamento do meu maior amigo. Jonas havia falecido estupidamente em um
acidente de moto, algumas horas antes, naquele fatídico 12 de março de 2024.
Quando uma voz metálica e
distante me deu a notícia por telefone, eu estremeci: Jonas! Não, não ele! Meu
camarada de infância, colega de escola, de farra, de conquistas amorosas, de
faculdade. Muito mais do que o irmão que não tive. Ultimamente a vida tinha nos
afastado, com o meu trabalho me levando para uma cidade a mais de 2000 Km da
nossa, de onde ele nunca quisera sair.
Foi muito difícil conseguir
passagem de avião para aquela manhã e o voo ainda atrasou mais de duas horas;
acabei chegando ao cemitério em cima da hora. Quando encontrei o local do
sepultamento, este já estava acontecendo e cheguei no momento exato de ouvir
aquele som horroroso, produzido pelas primeiras pás de terra arremessadas sobre
o caixão.
Durante toda a viagem eu tinha me portado de forma tranquila,
estoicamente. Mas quando ouvi aquele barulho aterrador, tudo o que estava
represado no meu consciente e no meu inconsciente extravasou num urro de fera e
num ataque violento de choro convulsivo. Só então entrou, encaixou com toda
brutalidade na minha mente, que Jonas estava partindo para sempre.
Comecei a ficar sem ar, tonto,
vendo tudo girar à minha frente. Senti que alguém me pegava pelo braço enquanto
eu estava desabando no chão. Depois toda a luz do dia se apagou e eu não sei
por quanto tempo permaneci nesse estado. Só sei que agora estava recobrando a
consciência, graças àquela criatura celestial à minha frente. Desejei saber
quem era ela, seu nome...
Como se pudesse ouvir minha
pergunta silente, a musa falou novamente, enquanto ajeitava minha cabeça no
sofá onde tinham me colocado. Era evidente, então, que tinham me carregado lá
de fora para aquela sala.
– Sou Telma, enfermeira. E você
é o Orlando, eu sei. Pois agora fique quietinho, Orlando, descanse mais um
pouquinho. Você já está bem e eu garanto que não vai ter mais nada. Ah, faz
quase uma hora que eu trouxe você para cá. Lá fora está tudo acabado, mas você
vai ficar bem agora.
Meus Deus, que criatura mais
fantástica aquela! Que mulher maravilhosa! Eu me senti como um menino que acaba
de descobrir que pode ganhar o presente mais incrível de sua vida. Desejei que
ela nunca mais saísse do meu lado, era como se, de repente, eu tivesse que
acreditar em algo de que sempre desdenhara: Sim, existia mesmo amor à primeira
vista! Telma, minha doce Telma, levantou da cadeira onde estava sentada ao meu
lado o tempo todo e disse:
– Agora eu preciso ir, Orlando.
Mas daqui um instantinho você vai me encontrar de novo, certo? Só que eu quero
que você seja um bom menino, fique aqui deitado mais uns dez minutos. Depois
pode sair.
Vocês podem não acreditar, mas
eu entrei em pânico imediatamente. Eu não queria que ela fosse, ainda que fosse
reencontrá-la minutos depois. Era como se eu fosse perder a coisa mais preciosa
que eu tinha descoberto na vida, algo completamente irracional. Tentei me
segurar, ter um mínimo de controle. Ela parece que entendeu minha agitação,
passou a mão carinhosamente pelo meu cabelo e – o céu, o êxtase! – aproximou de
mim o rosto aveludado e deu-me um beijo suave e longo na face. Depois saiu, deixando no ar um suave perfume e dizendo, da porta:
– Você é muito querido, Orlando.
Também eu teria gostado muito – e desapareceu.
Meu coração ficou aos pulos. Ela
me beijou, me afagou! E disse que teria gostado muito... Teria... por quê? Ah,
meu Deus, será que ela era casada?!
Não aguentei os dez minutos, nem
bem ela sumiu da minha vista, no meio da alameda de ciprestes, eu me levantei
de um salto e corri atrás dela. Chamei:
– Telma! Telma! – e corri entre
as campas de grama, marcadas apenas por cruzes brancas e por lápides. Perguntei
às pessoas que encontrava se tinham visto uma enfermeira loira, jovem, toda de
branco. Não, ninguém tinha visto, ninguém mesmo.
Subitamente meu passo foi
interrompido por algo que eu não vi. Apenas sei que tropecei no próprio ar e,
para não cair, me apoiei numa enorme lápide branca, de mármore, com uma
inscrição e uma grande fotografia, como quase todas ali.
E foi quando, tal qual ela havia
garantido, revi Telma.
Meus olhos levaram algum tempo
para se desprender daqueles olhos diáfanos, de cor azul esverdeada, que me
olhavam de dentro da fotografia colorida. Olhei para as letras e elas gritaram
para mim o inacreditável:
Telma de Souza
*
27/01/1987 + 11/08/2014
Saudades dos seus colegas do
Hospital Universitário
Caí de joelhos no chão,
abracei-me à lápide, encostei meu rosto na fotografia sob o vidro oval. Minha
Telma, meu anjo loiro, tinha morrido um dia antes de Jonas! Senti que ela
estava ali comigo. E senti que naquele momento, sim, seria a nossa despedida. Fiquei
feliz ao lembrar que ela disse que ela também teria gostado. Como eu teria
gostado tanto, tanto! Mas não foi possível...
Depois de um longo período
levantei dali na mais completa e absoluta paz. Ela tinha partido! E fui tratar
de fazer o que tanto Jonas como Telma queriam que eu fizesse, tive certeza: fui
continuar minha vida.
E seria uma vida diferente.
Telma, ao me socorrer, salvou-me mais do que o corpo: devolveu-me a crença nas
pessoas, a crença na Vida. Antes de Telma, eu era materialista, agnóstico,
cínico.
Ela precisou menos de duas horas para me mostrar que eu estava redondamente
enganado!