segunda-feira, 18 de março de 2024

 TELMA, LOIRA, ENFERMEIRA - Miniconto

MILTON MACIEL

– Fique quietinho agora. Respire bem devagar. E não tente se levantar ainda.

Para mim, parecia que aquela voz sussurrada vinha de uma outra dimensão... Mas ela me trazia de volta ao mundo real. Entreabri os olhos e deparei com um rosto simplesmente perfeito, absurdamente bonito, como eu nunca tinha visto na vida.

A dois palmos de mim, emoldurados entre cabelos loiros e brilhantes, dois olhos de um azul esverdeado quase diáfano me fitavam com candura e bondade, infundindo-me uma paz inacreditável.

Só então compreendi que eu tinha desmaiado e que aquela criatura divina, com um corpo escultural, denunciado por um conjunto de blusa e calça impecavelmente brancos, estava cuidando de mim, tratando de me reanimar.

Sim, minutos atrás eu tinha conseguido chegar ao cemitério, onde estava se dando o ato final do sepultamento do meu maior amigo. Jonas havia falecido estupidamente em um acidente de moto, algumas horas antes, naquele fatídico 12 de março de 2024.

Quando uma voz metálica e distante me deu a notícia por telefone, eu estremeci: Jonas! Não, não ele! Meu camarada de infância, colega de escola, de farra, de conquistas amorosas, de faculdade. Muito mais do que o irmão que não tive. Ultimamente a vida tinha nos afastado, com o meu trabalho me levando para uma cidade a mais de 2000 Km da nossa, de onde ele nunca quisera sair.

Foi muito difícil conseguir passagem de avião para aquela manhã e o voo ainda atrasou mais de duas horas; acabei chegando ao cemitério em cima da hora. Quando encontrei o local do sepultamento, este já estava acontecendo e cheguei no momento exato de ouvir aquele som horroroso, produzido pelas primeiras pás de terra arremessadas sobre o caixão. 

Durante toda a viagem eu tinha me portado de forma tranquila, estoicamente. Mas quando ouvi aquele barulho aterrador, tudo o que estava represado no meu consciente e no meu inconsciente extravasou num urro de fera e num ataque violento de choro convulsivo. Só então entrou, encaixou com toda brutalidade na minha mente, que Jonas estava partindo para sempre.

Comecei a ficar sem ar, tonto, vendo tudo girar à minha frente. Senti que alguém me pegava pelo braço enquanto eu estava desabando no chão. Depois toda a luz do dia se apagou e eu não sei por quanto tempo permaneci nesse estado. Só sei que agora estava recobrando a consciência, graças àquela criatura celestial à minha frente. Desejei saber quem era ela, seu nome...

Como se pudesse ouvir minha pergunta silente, a musa falou novamente, enquanto ajeitava minha cabeça no sofá onde tinham me colocado. Era evidente, então, que tinham me carregado lá de fora para aquela sala.

– Sou Telma, enfermeira. E você é o Orlando, eu sei. Pois agora fique quietinho, Orlando, descanse mais um pouquinho. Você já está bem e eu garanto que não vai ter mais nada. Ah, faz quase uma hora que eu trouxe você para cá. Lá fora está tudo acabado, mas você vai ficar bem agora.

Meus Deus, que criatura mais fantástica aquela! Que mulher maravilhosa! Eu me senti como um menino que acaba de descobrir que pode ganhar o presente mais incrível de sua vida. Desejei que ela nunca mais saísse do meu lado, era como se, de repente, eu tivesse que acreditar em algo de que sempre desdenhara: Sim, existia mesmo amor à primeira vista! Telma, minha doce Telma, levantou da cadeira onde estava sentada ao meu lado o tempo todo e disse:

– Agora eu preciso ir, Orlando. Mas daqui um instantinho você vai me encontrar de novo, certo? Só que eu quero que você seja um bom menino, fique aqui deitado mais uns dez minutos. Depois pode sair.

Vocês podem não acreditar, mas eu entrei em pânico imediatamente. Eu não queria que ela fosse, ainda que fosse reencontrá-la minutos depois. Era como se eu fosse perder a coisa mais preciosa que eu tinha descoberto na vida, algo completamente irracional. Tentei me segurar, ter um mínimo de controle. Ela parece que entendeu minha agitação, passou a mão carinhosamente pelo meu cabelo e – o céu, o êxtase! – aproximou de mim o rosto aveludado e deu-me um beijo suave e longo na face. Depois saiu, deixando no ar um suave perfume e dizendo, da porta:

– Você é muito querido, Orlando. Também eu teria gostado muito – e desapareceu.

Meu coração ficou aos pulos. Ela me beijou, me afagou! E disse que teria gostado muito... Teria... por quê? Ah, meu Deus, será que ela era casada?!

Não aguentei os dez minutos, nem bem ela sumiu da minha vista, no meio da alameda de ciprestes, eu me levantei de um salto e corri atrás dela. Chamei:

– Telma! Telma! – e corri entre as campas de grama, marcadas apenas por cruzes brancas e por lápides. Perguntei às pessoas que encontrava se tinham visto uma enfermeira loira, jovem, toda de branco. Não, ninguém tinha visto, ninguém mesmo.

Subitamente meu passo foi interrompido por algo que eu não vi. Apenas sei que tropecei no próprio ar e, para não cair, me apoiei numa enorme lápide branca, de mármore, com uma inscrição e uma grande fotografia, como quase todas ali.

E foi quando, tal qual ela havia garantido, revi Telma.

Meus olhos levaram algum tempo para se desprender daqueles olhos diáfanos, de cor azul esverdeada, que me olhavam de dentro da fotografia colorida. Olhei para as letras e elas gritaram para mim o inacreditável:

Telma de Souza

* 27/01/1987      + 11/08/2014

Saudades dos seus colegas do Hospital Universitário

Caí de joelhos no chão, abracei-me à lápide, encostei meu rosto na fotografia sob o vidro oval. Minha Telma, meu anjo loiro, tinha morrido um dia antes de Jonas! Senti que ela estava ali comigo. E senti que naquele momento, sim, seria a nossa despedida. Fiquei feliz ao lembrar que ela disse que ela também teria gostado. Como eu teria gostado tanto, tanto! Mas não foi possível... 

Depois de um longo período levantei dali na mais completa e absoluta paz. Ela tinha partido! E fui tratar de fazer o que tanto Jonas como Telma queriam que eu fizesse, tive certeza: fui continuar minha vida.

E seria uma vida diferente. Telma, ao me socorrer, salvou-me mais do que o corpo: devolveu-me a crença nas pessoas, a crença na Vida. Antes de Telma, eu era materialista, agnóstico, cínico. 

Ela precisou menos de duas horas para me mostrar que eu estava redondamente enganado!

 

domingo, 17 de março de 2024

 TRÔPEGO PASSO

Milton Maciel

Trôpego passo meu, em meio à multidão,
Onde me levas, assim lasso e cambaleante?
Haverá sina pra este meu andar errante?
Alcançarei mais do que a poeira deste chão?

Se mal me arrasto pelo passadiço angusto,
É que, perdido, meu percurso é desatino.
E, quando penso ter chegado a meu destino,
O que encontro é só meu leito de Procusto.(*)

Nele eu suporto a mais terrível das torturas,
Que é recordar seu olhar frio e indiferente,
A me dizer que o seu desprezo é permanente
E que, à frente, só terei penas mais duras.

E me prosterno neste tremedal tremendo,
Vendo que a vida se me esvai a cada instante,
Você, de mim, a cada dia mais distante,
E eu, sem você, a cada dia mais sofrendo.

Ah, e pensar que o findar das minhas penas
Ocorreria a um simples gesto seu... apenas!

(*) LEITO DE PROCUSTO: 
esse Procusto era um criminoso sádico de Elêusis, Grécia antiga. Ele recebia hóspedes em sua casa e lhes dava uma cama para dormirem. Então, se o hóspede fosse maior que a cama, amarrava-o e cortava-lhe os pés. Se fosse menor, esticava-o com cordas, num suplício horrível. Sempre tinha como se divertir, pois, na verdade, tinha dois quartos de hóspedes com camas de tamanhos bem diferentes. Teseu matou-o: amarrou-o atravessado em uma de suas camas e o fez caber, cortando-lhe as pernas e a cabeça (romântico isso, não? Ao menos os sádicos devem achar). Leito de Procusto passou para a literatura como sinônimo de ambiente de torturante sofrimento.



quinta-feira, 14 de março de 2024

 EL NENÚFAR BLANCO 

MILTON  MACIEL  -  poesías en español 
(Glossário abaixo)


Un día pasé por el lago…
Y me tuve que parar por un tiempo infinito.
El nenúfar se puso una flor blanca, diáfana
Que en el centro ardía como oro.
Alrededor las hojas verdes oscuras y brillantes.
Y abajo, en el agua calma y fría, el cielo en los reflejos.
Componia el sol el resto de un milagro de luces y colores.

Entonces me quede a mirar el nenúfar blanco
Y el, en su mudez, me habló de ti.
Y  me dijo como eras tú, tan bella y tan pura,
Tan superior, que hasta los nenúfares te amaban.
Me contó el que tú me amabas con pasión.
Me reveló que perderte fue el peor error de mi vida.

De mis ojos dos lágrimas cayeran al agua, que se crispó.
Me puse de rodillas y le respondí al nenúfar blanco:
Le dije lo grande que es mi arrepentimiento y mi dolor.
Que cuando me desperté de mi egoísmo… era tarde demás.
Que cuando te fui a buscar, te habías ido para siempre.
Que cuando me di cuenta, estaba irremediablemente solo.
Y que todo fue nada más que culpa mía. Mea culpa

Se crispó el agua otra vez, mas lágrimas caían.
El nenúfar cerró sus pétalos, uniéndolos como en una oración.
Y entendí que oraba por mí y por mi alma destrozada.
Lo hacia con la dulzura  y el puro amor de los nenúfares.
Y yo… Yo hice lo mismo con mis manos.
Las junté en oración y oré a ti.
Y te pedí perdón.
Y te dije como te amo.
Y te hable que sé que no vuelves más. Nunca más!
Y te confesé que, aún así, te voy a esperar para siempre. Todo el siempre…

El nenúfar blanco abrió entonces sus pétalos otra vez
Y de su centro de oro dos gotas se cayeron. El agua se crispó.
El nenúfar blanco lloraba mi dolor!...
Yo entonces me extendí en la orilla
Y le besé a sus pétalos uno a uno.
Y fue como si te besara!

Desde entonces vuelvo al lago todos los días.
Y los nenúfares me hablan de ti.
Y yo les hablo de ti a ellos.
Te recordamos con amor.
Te besamos en los pétalos.
Y sufrimos en paz,
En paz lloramos.
Y el agua se crispa…
Por que te amamos!

NENÚFAR (Nymphaea juno) é um tipo de lótus. 

GLOSSÁRIO:
se puso - se pôs
quede = fiquei
error = erro
rodillas = joelhos
me di cuenta = me dei conta
pétalos = pétalas
uniendolos = unindo-os
dulzura = doçura
vuelves = voltas
cayeron = caíram
lloraba = chorava
orilla = margem
besé = beijei
hablo = falo
ellos = eles


sábado, 9 de março de 2024


AS JOINVILLES NO MUNDO
MILTON MACIEL

Existem ao menos três cidades com o nome Joinville dignas de nota neste mundo: duas na França e uma no Brasil. E mais uma Ilha Joinville, que faz parte do Arquipélago de Joinville, na Antártida.

JOINVILLE do Brasil é razoavelmente conhecida pelos brasileiros. Trata-se da 3ª. maior cidade do Sul e é a maior cidade de Santa Catarina. Situada bem ao norte, tem 600 mil habitantes e se destaca pela produção industrial, assim como por sediar o maior festival de dança do mundo e ser o local da única escola do Balé Bolshoi fora da Rússia.                                                                                                                                                                                                                             (Foto 1 - Joinville-sur-Marne)
As Joinvilles da França são duas:

JOINVILLE-sur-Marne

(atenção: em francês pronuncia-se JoAn Ville, com acentuação tônica no Vi  e pronúncia rápida e mais gutural do a de Joan, quase um som de E   ʒwɛ̃vil] )   Join = Juntar   Ville = vila, cidade


Comuna do distrito (arrondissement) de Saint Dizier, no Estado (département) de Alto Marne (Haute-Marne), na região de Champagne-Ardenne. Dista 210 km de Paris

É a mais antiga e foi fundada pelo general romano Flavius Jovinus, quando mandou construir um forte de toras de madeira, em 354 A.D., para resistir às invasões dos alamanos à Gália. Este general romano é um dos personagens do meu romance histórico “Aline de Troyes, uma guerreira gaulesa” (pronuncia-se Troá), que narra as lutas de gauleses e romanos contra os alamanos, em 363 A.D. No fim desse livro coloquei um bônus com o título As Joinvilles do Mundo, que reproduzo aqui agora.

Até hoje esta Joinville é uma pequena cidade, pouco mais do que uma vila de 4 000 habitantes, mas tem uma arquitetura primorosa e uma grande beleza, com seus canais (biefs) do Rio Marne.


JOINVILLE-LE-PONT

A outra Joinville é praticamente grudada em Paris, separada dela apenas pelo Bosque de Vincennes. E ligada a Paris por uma ponte (pont), de onde vem justamente seu nome.

Comuna do distrito Nogent-sur-Marne, no Estado de Vale do Marne (Val-du-Marne), região de Île de France, onde fica também Paris. A cidade é dividida ao meio pelo rio Marne que, após passar por ela, faz um grande curva e vai se reunir ao rio Sena, na ponte Charenton, para atravessar Paris.

Esta cidade começou a surgir em 1251, quando foi construída a ponte sobre o rio Marne, tornando-se a vila de Sait Maur

Em 1831, o rei Luiz Felipe autorizou que a comuna passasse a se chamar Joinville-Le-Pont, em homenagem a Francisco (François) de Órleans, seu terceiro filho e príncipe de Joinville (título nobiliárquico este derivado da primeira Joinville, a do Alto Marne, como mostro a seguir). 

Foi ajuntado o Le-Pont ao nome Joinville, para não haver confusão desta nova Joinville com a velha Joinville do Alto Marne, cujos habitantes protestaram veementemente contra a usurpação do nome Joinville.

Esta Joinville-Le-Pont é a cidade-gêmea da Joinville do Brasil, fundada por imigrantes alemães, noruegueses e suíços que chegaram, em 1851, às terras da Colônia Dona Francisca, em Santa Catarina, terras que faziam parte do dote que a princesa Francisca Carolina Joana Carlota Leopoldina Romana Xavier de Paula Michaela Gabriela Raphaela Gonzaga de Bragança, filha de Dom Pedro I e irmã de Dom Pedro II, levou para o seu casamento com o príncipe de Joinville, François d´Órleans, em 1843.

Vemos assim que François Ferdinand deu origem a DUAS cidades com  o nome Joinville.

Levadas a uma LINHA DO TEMPO, vemos as Joinvilles assim:

354                            1251                  1831                     1851
Fundação da        Construção da   Mudança de           Fundação de
1ª Joinville por     ponte sobre       nome para              Joinville no
Flavius Jovinus    o Marne            Joinville-Le-Pont   Brasil

                                     Foto 2 - A ponte que dá nome a JOINVILLE-le-Pont

OS PRÍNCIPES DE JOINVILLE

Quase todo mundo no Brasil, inclusive os moradores da Joinville catarinense, quando veem alguma menção ao Príncipe de Joinville pensam duas coisas erradas:

1 – que ele é o único príncipe com esse título
2 – que ele nasceu em Joinville da França

Então vamos esclarecer, com especial destinação para as crianças e estudantes em geral da Joinville brasileira:

DE JOINVILLE é um gentílico e ao mesmo tempo um título nobiliárquico SENHOR (SEIGNEUR), que começou a existir no início do ano 1000 AD, atribuído a grandes senhores originalmente estabelecidos na Joinville-Sur-Marne.

Já o DE JOINVILLE de François Ferdinand (1808 a 1900), o “nosso” príncipe, é só um título nobiliárquico (PRINCE). Ela não só não nasceu em Joinville como não consta que jamais tenha estado lá.

Foram 12 Senhores de Joinville da casa de Vaux (Jean de Joinville, biógrafo de São Luís da França, foi o oitavo), seguidos de 7 senhores da casa de Vaudémont.

Em 1386 o título mudou de Seigneur para PRINCE. E os Príncipes de Joinville são, até hoje, a bagatela de 22 (9 da casa de Guise, mais 12 da casa de Orleans.  Nosso François é apenas o 17º Príncipe de Joinville, o 8º da casa de Orleans. O último e atual Príncipe de Joinville, Henri IV, nasceu em 1999, tem vinte e cinco aninhos e é também Conde de Paris.


AS JOINVILLES DA ANTÁRTIDA

Existe um arquipélago de 18 ilhas no mar da Antártida, que recebeu o nome de Arquipélago de Joinville. A maior de suas ilhas é a Ilha de Joinville. Tem 20 km de largura e 60 km de comprimento (equivalente à distância de Joinville ao Parque Beto Carrero, em linha reta). A ilha e o arquipélago não têm habitantes, o clima é frio e hostil demais.

O Arquipélago foi descoberto em 1838 pelo navegador francês Capitão Jules Dumont d'Urville, que dirigia uma expedição marítima chama Príncipe de Joinville, em homenagem a François Ferdinand d’Orléans, terceiro filho do Duque d’Orléans, o Rei Luís Filipe I de França.

d`Urville sapecou o nome Joinville em suas descobertas, e, mais tarde, ele foi também homenageado: hoje a segunda maior ilha do arquipélago é a Ilha d’Urville.

Mais uma vez o “nosso” príncipe cumpriu o seu estranho destino de proporcionar nomes às Joinvilles do mundo: Joinville-le-Pont, Joinville do Brasil e Ilha e Arquipélago de Joinville - lugares em que ele NUNCA ESTEVE !

                                       Foto 3 - Cientistas na Ilha de Joinville, Antártida


sexta-feira, 8 de março de 2024

 O AUDIOLIVRO – ESSE TSUNAMI

MILTON MACIEL

Em 2014 o EBOOK parecia ser o grande tsunami que, crescendo vertiginosamente,  devoraria o livro impresso. Para mim era óbvio que isso não iria acontecer; de fato, o mercado acomodou-se ao longo dos anos seguintes e hoje, conforme o gênero literário e o país, ele ocupa desde míseros 12 até impressionantes 83% das vendas.

Só que os que apostavam em diferentes market shares na relação ebook/livro impresso não esperavam que um outro corredor, de início um azarão, viria atropelando por fora. E agora, em 2024, já pudesse ter ultrapassado tanto o livro impresso quanto o ebook, tirando mercado de ambos.

Esse azarão é o audiobook.

Na Suécia e na Noruega o audiobook já tomou mais de 50% do mercado TOTAL de livros. Na Europa toda ele avança mais rápido do que nos Estados Unidos. Mas, mesmo assim, o avanço é mesmo de um tsunami.

Levantei hoje, 8/3/2024, a lista de MAIS VENDIDOS em FICÇÃO, da AMAZON USA. E criei uma ilustração com os primeiros 15 colocados. Impressiona muito ver que o campeoníssimo é um audiobook que custa quase o dobro do ebook do mesmo título.

“THE WOMEN”, de Kristin Hannah está colocado como

1º lugar – Audiobook      US$ 21.65 = R$ 108,25

4º lugar – Ebook                     13.22 =         66,10

6º lugar – Papel                       18.94 =         94,70 (capa dura)

Isso é que é sucesso, parabéns Kristin!

Entre os 15 primeiros colocados 9 são ebooks, 4 são audiobooks e 2 são papel. (veja imagem)

Entre os primeiros 50 colocados, 30 são ebooks, 14 são audiobooks, 6 são papel.

Note a grandes diferenças de preço a favor dos ebooks e contra os audiobooks. Mesmo assim os audiobooks crescem vertiginosamente porque

1 – A concorrência é ainda é baixíssima, permite praticar preços mais altos

2 – A margem de lucro é MUITO maior, absorvendo bem os custos mais elevados de produção.

O Mercado do Livro é definitivamente um mercado tripartite: papel, ebook e audiobook. Publique nos três modos ou... venda muito menos.

A onda seguinte do tsunami é a narração feita por I.A., jogando o custo no chão e permitindo requintes de “radioteatro”, com múltiplas vozes de narração. No momento a Amazon, tendo a força de monopólio do áudio com o seu AUDIBLE, ainda não aceita livros narrados por I.A.

Mas isso agora é um tiro no pé, porque a concorrência veio com tudo: empresas enormes como as suecas Storytell e a americana Spotify aproveitam que a Amazon deitou em berço esplêndido e avançam céleres sobre o mercado do audiolivro.

Mais algum tempo e a Amazon terá que ceder e se adaptar à nova realidade.

Não é por acaso que na LONDON BOOK FAIR, que começa na próxima terça, dia 12/03, nós vamos ter apresentações como

Evolution, Growth and Trends of the Audio Industry across Europe; 

In-Car Audiobook Revolution;

The Next Chapter: AI in Audiobooks;

Audiobooks on Spotify: Innovating for the Future e

The Future of Audio in Publishing: Global Trends and the Impact of AI



 ET DIEU CRÉA LA FEMME   

(E Deus Criou a Mulher)

MILTON MACIEL 

Estou me apropriando aqui do delicioso título do filme francês de Roger Vadin que, em 1956, catapultou a carreira de Brigitte Bardot e a inseriu para sempre na posição de grande símbolo sexual. Eu, molequinho de todo, não podia entrar no cinema, o filme era proibido para menores, é claro!

Mas o que me fascinava não era a Bardot (a foto aqui é da Rachel Welch!) Era o TÍTULO do filme! Sou de ascendência francesa (minha avó paterna era descendente direta de um marechal de Napoleão) e uruguaia por parte de mãe. Em casa eu falava três idiomas: espanhol, português e francês. E o francês me encantava. Então, quando li no cartaz do cinema aquele  ET DIEU CRÉA LA FEMME, fiquei extasiado. Por quê? Não tenho a menor ideia. Simplesmente bateu fundo. Vai ver bateu foi premonição, foi por causa do dia 8 de Março.  Então vou me apropriar desse título maravilhoso para homenagear uma maravilha  especial  da Criação: o ser humano de sexo feminino.

Então com licença, Vadin. Vamos lá:

Deus olhava contrafeito para aquele estranho boneco de argila a quem ele infundira vida horas atrás, com um sopro bem dado em suas narinas ainda ocluídas. O pneuma divino, abrindo-as, deu vida imediata à bizarra criatura. O Criador estava pensando que não fora uma boa ideia inspirar-se no macaco como modelo para sua criação. O resultado acabara ficando muito feio e muito peludo. E tivera que voltar várias vezes à etapa de produção, por causa de óbvios defeitos. Na última vez, porque ia escapando o rabo de macaco na nova criatura. Foi retirado a tempo, por inútil, segundos antes do sopro vivificador.

Copiando ora partes de um gorila, ora partes de um orangotango, o Criador foi fazendo sua escultura de barro, com evidente prazer. Adorava moldar criaturas e infundir-lhes vida depois. Teve o cuidado de corrigir um detalhe ainda: a bunda de orangotango, vermelha, tinha ficado horrorosa na nova criatura, trocou-a pela de um bonobo que passava ocasionalmente por ali. Ah, isso haveria de ser um problema depois! Pois veio junto o incrível apetite sexual dos bonobos. Mas, na hora, o Criador não se apercebeu disso.

Mas o tal ser, a quem ele resolveu classificar de HOMEM (Arcanjo Gabriel balançou a cabeça, detestando o nome: por ele, aquela aberração teria sido no máximo um princzalt, mas, afinal, o boneco era de Deus, paciência!), ficou com o gênio dos macacos também. Nem bem levantou do solo de criação, já começou a coçar a cabeça e reclamar de tudo: que o Paraíso era muito quente, que os outros bichos olhavam para ele com olhares esquisitos, que se sentia discriminado e perseguido, coisas assim. No segundo minuto entrou em crise existencial da braba: tinha acabado de ver um casal de pacas transando, teve compreensão instantânea do que aquilo significava e imediatamente sua porção bonobo se manifestou.

Foi assim que, mesmo estando só como manifestante, o homem realizou sua primeira passeata de protesto. Começou a caminhar pra lá e pra cá na frente dos arcanjos e de Deus, fazendo gestos que hoje seriam considerados obscenos, manifestando assim seu inconformismo com a ausência de uma fêmea para fazer com ela aquele animado ritual das pacas.

Deus confabulou com seus arcanjos e considerou seriamente desmontar aquele encrenqueiro imediatamente. Ora, era claro que ele ia criar uma fêmea da espécie também, afinal fazia-o sempre, criava-os aos casais, ora bolas! Mas resolveu ter um pouco mais de paciência e dar ainda uma chance ao grosseirão que tinha criado.

– Gamaliel, ponha o homem para dormir imediatamente com seu bafo. Vamos fazer uma fêmea para ele, mas eu vou usar um atalho, não estou mais a fim de trabalhar tanto de novo. Afinal já vem aí o sétimo dia e eu vou ser obrigado a descansar.

Arcanjo Gamaliel aproximou-se do bizarro peludo, escancarou a bocarra e deixou sair seu bafo mefítico, causado por uma incontrolável proliferação de tártaro angélico nos dentes amarelados. O bicho caiu duro no chão. Então os anjos operários, indivíduos de menor hierarquia, que ficavam com o trabalho sujo de limpar as galáxias, vieram apanhá-lo e o colocaram sobre uma pedra chata, que serviria de mesa cirúrgica.

Uma digressão aqui se impõe, tenham paciência os leitores e leitoras. É que os anjos estavam furiosos com seus superiores hierárquicos, cogitando entrar em greve e até a aliar-se com seu antigo colega Lúcifer. E a razão era mais do que compreensível: tinha acabado de entrar em vigor a nova lei criada por Arcanjo Assexuel: Daquela semana em diante ANJO NÃO TEM SEXO!  Isso foi, mais tarde, mal compreendido pelos humanos ignorantes. 

NÃO TEM aqui significa que NÃO PODE FAZER, não é que não tenha os órgãos competentes. O Senhor acabou dando força para a Lei daquele arcanjo sempre de mal com a vida, sempre a fim de, com o perdão da má palavra, infernizar a vida dos anjos seus subalternos. Em vão Arcanjo Sensuel tentou argumentar que aquilo criava um precedente perigoso, que a adoção do celibato e da castidade forçados ainda ia acabar acarretando sérios problemas entre os anjos. Mas não foi ouvido! De mais a mais, o sistema de governo ali não era uma democracia. O Patrão decidia, estava decidido!

Aí o Lúcifer liderou uma revolta e foi embora para Lanticiel, levando um monte de anjos e anjas com ele. E agora viviam fazendo as maiores orgias, para revolta e inveja dos anjos que tinham ficado no Céu. Estes foram obrigados, pelo mesmo azedo Assexuel, a abandonar seus instrumentos musicais favoritos, agora proscritos: cavaquinho, pandeiro, cuíca e agogô. E foram obrigados a estudar Lira, uma terrível chatice.

Bem, digressão encerrada, voltemos ao homem anestesiado. Pois Deus resolveu cortar caminho, criando a fêmea para o encrenqueiro peludo sem rabo a partir de um pedaço do próprio corpo dele. O Senhor acabara de inventar a CLONAGEM e ia fazer sua primeira experiência. O duro foi decidir que parte do corpo ele retiraria. De início cogitou usar um daqueles ridículos ovinhos que estavam ali de fora, muito mais fácil de tirar. 

Mas a equipe argumentou que aquilo era para reprodução e, como era um alvo muito fácil para os animais predadores, por isso mesmo é que tinham sido criados em duplicata, quando da invenção dos macacos. Deus concordou. Seguiram-se momentos tensos de discussão, em que cada um defendia a retirada de uma parte diferente. Por fim Deus se impacientou e disse: uni-duni-tê-salamê-mim-güê. E assim, ao acaso, a escolhida foi a costela.

Aí foi rápido: costela retirada, fêmea criada. Mas ficou horrível: igualzinha ao macho encrenqueiro, inclusive nos pelos. Ora, o Criador achava aquilo muito  feio e resolveu que estava na hora de dar uns retoques pra valer e aperfeiçoar muito mais a criatura, antes de soprar-lhe vida. Mas que modelo copiar agora? Olhou longamente o bicho peludo deitado sobre a pedra, puxando o maior ronco e se sentiu um escultor fracassado. Mas mais um momento e todos se surpreenderam com a enorme gargalhada que Ele estava soltando.

– O que foi Senhor? – perguntou Arcanja Gabriela.

– Nada, nada minha filha. É que, para me distrair um pouco enquanto pensava, usei minha capacidade de tudo ver e fui rapidamente dar uma olhada no futuro dessa espécie. E até que não vai ficar tão ruim assim, esses pelos ridículos vão cair quase todos com o tempo. Mas o que me deu vontade de rir, foi que meus olhos caíram, ao acaso, num texto de revista desses humanos (depois eu explico o que é revista, agora não temos tempo) e ali estava escrito, assinado por um certo Millor Fernandes, o seguinte:

“Quando Deus leu que criou o homem à sua imagem e semelhança, Deus morreu de rir!”

Aí, lógico, todos explodiram na maior gargalhada, Gabriela teve um ataque de riso difícil de controlar, chegou a ficar sem fôlego, precisou um soprinho de Deus para ajudar. Imagine-se só, aquele bicho estranho, feio e desconjuntado ser a imagem de Deus!

Mas Deus voltou a seu problema: que modelo usar para aperfeiçoar a fêmea da espécie humana? Pensou, pensou, até que, de repente, sua atenção foi chamada por um diálogo em sussurros, o que é de todo inútil perto de quem tem clariaudiência absoluta. Deus ouviu:

– Não, Sapatiela, agora acabou! É fim mesmo. Eu me decidi a continuar no céu e vou me submeter à nova Lei de Assexuel. Acabou! Não tem sexo mais, desista! Foi bom enquanto durou, mas agora é fim!

Arcanja Sapatiela olhou Arcanja Gabriela, aspirando seu suave perfume de cravo (mastigava-o sempre, para não ter o horrível tártaro de Arcanjo Gamaliel), admirou sua cor de canela, suas suaves e generosas formas, cheias de curvas, onde seu olhos derrapavam inebriados. E consolou-se. Já que estava acabado mesmo, deu meia-volta e foi-se embora em passo acelerado. 

Se se apressasse, ainda pegaria o expresso das 5 horas para Lanticiel, em menos de duas horas estaria com a turma do divertido do Lúcifer. Isso se ainda pudesse comprar passagem para hoje! Desde a entrada em vigor da nova Lei, os expressos para Lanticiel partiam lotados de anjos e até dois arcanjos tinham sido vistos embarcando, disfarçados de anjos comuns.

Aquele rápido diálogo iluminou a mente do genial Criador. Era isso! Por que não pensara antes? Olhando atentamente para Arcanja Gabriela, Deus viu que ali estava o modelo perfeito para criar a MULHER (já tinha decidido classificá-la com esse nome e Arcanjo Gabriel o achara lindo!). 

Então o Celeste escultor e modelista pediu para Gabriela posar como modelo e começou o seu trabalho de correção das inúmeras imperfeições da boneca de costela. Começou por arredondar-lhe e suavizar-lhe as formas simiescas do rosto, até deixá-las idênticas às do rostinho perfeito de Gabriela. Aí mandou a própria Gabriela passar as mãos a uns cinco centímetros do corpo da mulher ainda sem vida e emitir aqueles raios azuis dos arcanjos e arcanjas. 

Perfeito, foi a primeira depilação da história celeste! Lá se foram todos os pelos do corpo da mulher. Exceto de uma pequena parte, porque Gabriela ficou com receio que passar a mão ali fosse considerado infração à nova Lei do Anjo Não Tem Sexo. 

Em compensação, ao olhar a horrível pelagem no alto da cabeça da boneca de costela, a própria Gabriela teve um lindo gesto de desprendimento: removeu de seus longos e perfumados cabelos uma madeixa inteira e aplicou-a na cabeça da boneca. Imediatamente a pelagem escura foi substituída por uma maravilhosa cabeleira idêntica à da arcanja. Deus adorou o gesto e o resultado!

Mas quando viraram a mulher para depilá-la do outro lado, foi que todos se deram conta do horror que era aquela bunda reta e peluda, igual à do macho. Os pelos foi fácil remover, mas a nova modelagem, inspirada nos glúteos esculturais de Arcanja Gabriela, levou muito tempo até que o Divino Escultor conseguisse reproduzir. Mas no fim, todos balançando a cabeça afirmativamente e se cumprimentando, realmente valeu a pena: uma perfeição de traseiro, lisinho, brilhante, cheio de beleza.

Como último detalhe, viraram a boneca de frente novamente e Deus começou a esculpir nela o busto perfeito de Gabriela. Foi preciso tirar muito material da cintura, que era tosca e larga como a do homem, para ter o que colocar no novo par de seios, lindos, torneados, muito mais volumosos que os mamilinhos de gorila fêmea que estavam antes ali. Mamilos foram deixados, é lógico, mas foram também torneados com extrema arte e delicadeza pelo Senhor.

No final, todos ficaram extasiados com a obra-prima do Criador. E Ele mais do que qualquer outro, é claro:

– Me superei! Melhor do que isso não consigo fazer nunca mais! Então declaro encerrada minha carreira de criador. É bom saber parar quando a gente está por cima! Amanhã é feriado, pessoal. Todo mundo descansar!

E DEUS CRIOU A MULHER! Não a partir do rústico macaco, mas a partir de um ser angélico perfeito: uma arcanja! Et Dieu Créa La Femme!