sexta-feira, 13 de julho de 2012


A MENINA DA LADEIRA – 2ª. Parte  
MILTON  MACIEL

(continuação)

...  Aos poucos as palavras, repetidas em voz alta sem parar, começam a fazer o
costumeiro exorcismo. Os espectros acabam por se dissolver, a realidade da ladeira se restabelece à vista embaçada, a crueldade do frio chama para o agora, o estômago se retorce ao aguilhão da mesma fome, à náusea da mesma memória.

Instantes depois a moça está pronta para retomar a caminhada. Limpa como pode o rosto, retocará a pintura borrada quando chegar ao trapiche. A fome é cruel, lembra-se do último chiclete, mas reconhece que tem que guardá-lo para o primeiro cliente, se cliente algum tiver nesta noite. Minutos depois já caminha pelas ruas mais iluminadas e planas, onde passa gente e onde vai ter a recepção costumeira: há homens que a comem com os olhos, outros que se aproximam agressivos, com palavras chulas que lhe trazem sempre mal-estar, por mais que esteja acostumada a recebê-las.

As mulheres lhe lançam os mesmos olhares de sempre, com os quais lhe dizem que sentem por ela desprezo, nojo, asco, que ela é lixo, puta indecente, vagabunda, piranha, vadia. Muitas não se contentam apenas em falar impropérios com os olhos, preferem fazê-lo em voz alta, o que a fere ainda mais fundo. A menina detesta fazer esta parte da caminhada, baixa os olhos para não ver as pessoas, mas os ouvidos teimam em continuar ouvindo palavras ofensivas, cortantes.

Faz tão pouco tempo que chegou nesta cidade e também ali já está marcada para sempre! Há homens com interesse no caminho, mas ela sabe que tem que seguir as normas ou será expelida desse lugar. Nada de aceitar abordagens fora do seu ‘ponto’, nada de se prostituir em ruas de gente “decente’”, de pessoas “de bem”, de lojas comerciais. Não, puta tem que saber qual é o seu lugar. Essa é a lei tácita que ela tem que obedecer. Ah, Deus, medo é muito pior que fome, fome passa, medo não passa nunca!...

Finalmente ultrapassa as ruas, chega ao ponto: uma plataforma de uns cem metros quadrados, com balaustradas encimadas por luminárias verdes, de ferro, antiqüíssimas. A plataforma se projeta rio adentro como um trapiche velho de madeira carcomida. É só nela que as moças têm permissão para ofertar seus corpos como mercadoria e fechar seus negócios, sempre difíceis, sempre de alto risco.

A moça chega, reconhece e cumprimenta as colegas e concorrentes, estão as cinco ali, indício de que a noite não vai ser das mais auspiciosas, ninguém conseguiu sair até aquele momento, mau sinal. Francelina, que oficia como Cigana, se chega à menina, faz-lhe festa nos cabelos longos, sente o hálito que conhece tão bem. Então abre sua bolsa e divide, feliz, sua escassez: coloca na boca de garota faminta um sanduíche de queijo e presunto que trouxe para comer mais tarde.

A criança morde, mal mastiga, engole com sofreguidão, olha comovida para a colega, não pode falar de boca cheia, os olhos lacrimam gratidão. Cigana sorri para ela, dá-lhe um beijo estalado na bochecha e se afasta, lutando para encurtar mais a sainha plissada.

Mal a mocinha termina de mastigar a última porção quando vê, para sua grande
surpresa, que o homem da casinha do penhasco vem andando em sua direção. O que significaria aquilo? Será que ele a tinha seguido?

O Velho

De fato o homem a havia seguido. Logo após o encontro na ladeira, em frente a sua casa, ele ficara observando a menina através da cortina entreaberta, invisível no escuro da sala. Viu que ela tinha parado, começado a chorar, apoiara-se a um muro, dissera palavras em voz alta por um longo tempo – muito estranho.

Entendeu que a moça passava mal. Preparava-se para ir em seu socorro quando ela se recompôs e reencetou a marcha ladeira abaixo. Aí não teve mais dúvidas: deu à jovem uma boa vantagem de distância e saiu no seu encalço. Não podia explicar porque, mas sentia que era o que devia, o que precisava fazer. Algo naquela garota clamava por ele.

De fato, por ocasião do primeiro encontro, entendera de imediato o convite que os olhos e o sorriso da moça lhe faziam. Sem dúvida alguma, uma jovem prostituta. Mas muito diferente das outras que vira por ali: mais jovem, muito mais bonita, estranhamente atraente. Viu-lhe as pernas e coxas magníficas, o quadril alto, a cintura delicada, o busto perfeito, o rosto bonito, os cabelos esvoaçantes. Desejou-a de imediato e teria partido para realizar seu desejo ali mesmo, dentro de sua casa de homem solitário, se não tivesse cometido o erro de olhar por um tempo excessivo dentro daqueles olhos castanhos claríssimos. Olhou. Abismou-se. E perdeu-se.

Tinha setenta anos e uma forma física exuberante para a idade. Há vários anos havia se afastado da família: ex-esposas, filhos, netos: recíproca ojeriza. Vivia sozinho na cidade grande. Um dia, já retirado de sua estressante profissão, vendeu tudo o que tinha, gerou um pequeno pecúlio e mudou-se para aquela casa rústica na cidade litorânea. Há muito tempo comprara aquele terreno no impulso, com uma pequena construção de madeira que era um primor de despojamento. Acabou por escolher aquele lugar e aquela casa para ali viver a
fase final de sua vida. Deixou tudo e todos na capital e trouxe consigo apenas sua aposentadoria, um radinho, um mínimo de roupas, um telefone celular pré-pago e toneladas de livros. Não deu seu novo endereço a ninguém. Ali passou a viver na maior frugalidade, com ínfimas despesas, seu único “luxo” resumindo-se a comprar sempre mais e mais livros.

Rompeu com seu passado e com todas as relações que nele orbitaram. Estava definitivamente farto de tudo e de todos. E totalmente convencido que sua vida desembocara numa encruzilhada sem jeito, numa passagem sem rumo, num vazio sem futuro. Por isso baniu-se para o exílio naquela cidade, isolou-se naquela casa da qual fez sua ilha de náufrago, tão infenso a qualquer contato humano que nem mesmo uma bola de voleibol que atendesse por Wilson seria aceita ali.

Definitivamente em sua nova vida de velho, de senhor total e absoluto do seu tempo, não havia lugar para outra pessoa, qualquer pessoa. Era isso o que lembrava enquanto caminhava no encalço da jovem prostituta. Estava em plena lua-de-mel com sua nova vida, feliz com seu isolamento, vivendo o êxtase da casa-ilha, Crusoé redivivo. Por que, então, ia agora em busca de outra pessoa? Por que estava agindo desse modo tão incoerente? Sim, porque, por mais atraente que fosse a garota, ele podia reconhecer que não ia em busca da prostituta, mas do ser humano diferente que adivinhara dentro dela. Como explicar a si mesmo tal incongruência?                                                                                        ( a continuar)

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