quarta-feira, 13 de março de 2013


O CERCO – 25   Novela histórica 
MILTON  MACIEL                                             Kyna

Resumo do cap. 24 – Os hunos são totalmente ludibriados pelo truque da “multiplicação da feiticeira” e querem fugir, tomados de pavor. Mais apavorados ficam quando, na planície e na grande estrada, vêm avançar milhares de tochas acesas, mostrando que um enorme exército de infantaria avança contra eles. Na verdade são os 500 homens de infantaria dos francos e mais 700 civis, cada um portando três tochas ao mesmo tempo. Quando um dos seus chefes se opõe à fuga, os hunos simplesmente o executam a flechadas e fogem a todo galope para o norte. O cerco está acabado. Mas, vindos do sul, milhares de outros cavaleiros hunos estão a menos de três dias de Châlons e a verdadeira batalha de morte ainda está para começar. Hilduara conta ao general Armosic como a jovem Vérica será importante para o futuro de todos os francos, quando se converter em sua rainha.

OS PLANOS DE RESISTÊNCIA AOS HUNOS

Mal o sol surgiu a leste sobre a floresta, Kyna e Alana, que passaram a noite e a madrugada acordadas, em seus ofícios religiosos para a Deusa, em trabalhos de visão sobre o tripé e traçando esboços rudimentares de planos de batalha, que depois Vérica haveria de desenhar corretamente, tiveram uma grande surpresa.

A porta, que não era trancada normalmente, foi aberta e Vérica apareceu, toda contente e agitada. Pela mão vinha comboiando um Meroveu bem menos desperto do que ela, mas, ainda assim acordado. Alana não pôde conter um gesto de incredulidade:

– Vérica! Vocês DOIS aqui a esta hora! Mas o que...

– Han, Han, Sacerdotisa-Mãe! Não esperavam por NÓS, não é? Devem ter pensado: aquela maluca, aquela irresponsável da Vérica vai acabar com o Meroveu e nenhum deles aparece aqui esta manhã. Não foi?

– Bem, criança, sua mãe e eu não esperávamos ver o rei desperto tão cedo, isso é verdade. Mas você, nós sabemos que sua energia nunca tem fim e que você cedo já estaria por aqui, até porque não poderia contar com seu parceiro no início da manhã, não é?

A essa altura o rei já não sabia para que lado olhar, estava vermelho como um pimentão e mantinha os olhos fixos numa mancha no piso.

– Ah, mas ai é que vocês se enganaram. Vériquinha é doida, mas não tanto. Como vocês eu senti que as coisas agora vão ficar feias para o nosso lado, então eu me segurei o que deu, não levei nosso amado rei à exaustão, resolvi o resto que faltava comigo mesma. E por isso, agora a pouco, ainda que com uma certa dificuldade, consegui tirá-lo da cama e jogar-lhe dois baldes de água fria. Eu garanto que o rei está bem desperto.

Meroveu, outra vez, não sabia onde se enfiar, ainda mais quando Vérica falou, sem a menor cerimônia ou floreio, que, para não acabar de vez com ele, simplesmente se masturbou enquanto ele caia exausto de sono.

Alana caiu na gargalhada. Ah, aquela era a sua menina! Nunca tinha tido papas na língua. O que pensava, falava na mesma hora, sem rodeios, sem concessões, sem meias-palavras. Sem falsas vergonhas, também. Era, de fato, a criatura mais direta e a mais sincera que ela conhecia. Mas tanto ela, quanto sua mãe Kyna estavam era morrendo de dó de Meroveu. Kyna falou:

– Vá se acostumando, meu rei, essa é Vérica primeira e única. Se o senhor persistir nessa louca idéia de casar com ela, então vai ser assim todos os dias, a sós com o senhor ou na frente de quem quer que seja, de toda a sua corte, se for preciso. Minha neta sempre teve essa virtude, desde que começou a falar. Foram incontáveis as vezes em que ela nos causou os maiores embaraços e nos colocou em situações delicadas.

– Sim, rei Meroveu, vou lhe dar só um exemplo. Há muitos anos, em Ravenna, nós fomos apresentadas ao Imperador Valentiniano III, do Império Romano do Ocidente. Minha mãe e eu estávamos em uma visita ao imperador e à corte, porém à serviço da Deusa. Vérica tinha só quatro aninhos, mas era extremamente precoce. Pois veja o que essa menina falou quando entrou Galla Placídia, a mãe do imperador, que era quem governava de fato, pois era irmã de Teodósio I, o imperador do Império Romano do Oriente e, além disso, o filho era totalmente submisso a ela. Pois Vérica olhou para Galla Placídia e disse simplesmente:

– Quem é essa velha gorda? Eu não quero ficar na mesma sala com ela. Ela é má. Muito má. Ela trai as pessoas. Eu vou embora.

E largou a nós duas no maior embaraço na sala do trono. Saiu, andando durinha, com um passo pesado que mais parecia um soldadinho  marchando. E aí, ao chegar a porta, gritou:

– Vocês não vêm? Querem que essa bruxa mande matar vocês? Eu vou embora, não digam que eu não avisei.

E foi embora mesmo, começou a sair do palácio, eu tive que ir correndo atrás dela. Deixei minha pobre mãe no maior constrangimento, com o imperador e sua mãe, não tive mais condições de voltar, por causa da menina.

Meroveu, mais aliviado do vexame agora, conseguiu falar alguma coisa:

– E o que aconteceu?

– Bem, aconteceu que eu fiquei entregue às duas feras e tive que improvisar uma saída. Fazendo exatamente o contrário do que a menina tinha feito, isto é, mentindo. Inventei que ela fazia sempre confusão de muitas pessoas com uma mulher que havia ajudado a cuidar dela e que, de fato era muito má e havia maltratado muito a criança, escondida de nós. E aí a menina, traumatizada, tinha ficado com essa mania desde então. Sempre que via uma mulher de cabelos loiros e compridos, como os da imperatriz, ela ficava muito excitada e começava a falar essas bobagens, Eu supliquei que me perdoassem e perdoassem minha neta: “Ela não sabe o que diz, tem só três anos (diminuí a idade dela na hora!). Bem, o imperador até começou a rir, mas Galla Placídia fechou a cara e não falou mais comigo aquela noite. De fato, ela não era gorda, era só um pouco larga demais na cintura. E, claro, não se achava nem um pouquinho velha, aos 55 anos.

– E eu tive que ficar o resto da noite lá fora com ela, não havia força que a fizesse voltar ao palácio, apesar do frio horrível que fazia na rua. Por esse simples exemplo, o senhor vê, rei Meroveu, como é essa menina.  Só desfez a cara emburrada quando Kyna apareceu e ela pôde se tranqüilizar com a saúde da avó. Aí saiu correndo toda feliz para abraçá-la.

– Minha adorável troglodita... – falou mansamente o rei dos francos salianos – Por mim, ela pode fazer tudo o que quiser, desde que fique a meu lado para sempre.

Vérica olhou para ele sorrindo. O que estava pensando, só as outras duas sacerdotisas podiam perceber:  “Você está me devendo uma noite inteira decente, seu molengão!” Mas, logo a seguir, captando o que sua avó estava pensando, disse num arroubo, enquanto corria para a porta da rua:

– Pode deixar que eu vou correndo, Avó. Se estiverem dormindo, arranco os dois da cama nem que seja a muque!

E, face ao olhar atônito de Meroveu, a sacerdotisa-mor explicou:

– Ela foi buscar o general Armosic e Hilduara. Precisamos discutir muitos e graves temas a partir de agora.

Em menos de 10 minutos Vérica estava de volta, correndo, precedendo o casal, que entrou logo a seguir, cumprimentando os presentes.

Kyna então convidou todos a se sentarem à mesa onde apresentaria os planos de combate. Quando todos ocuparam seus lugares, ela começou:

– Bem, agora que terminamos de comemorar nossa vitória total de ontem, chegou a hora de tratarmos da dura realidade que se aproxima. Amanhã, pelo final da tarde, a vanguarda da cavalaria de Átila nos alcançará em Châlons. Eu gostaria de ouvir dos senhores, os dois guerreiros, qual seria o procedimento normal em um caso assim, quando o inimigo que se aproxima é, no mínimo, dez vezes mais numeroso que nós.

– Correr para salvar a pele, senhora – foi a resposta bem humorada e concisa de Armosic.

– Sim – concordou Meroveu – Fugiríamos para a floresta, tentando tomar o rumo sul.

– Só que não o podemos fazer, não é?

– Não. Nosso dever é ficar e lutar até o último homem, para retardar o avanço de Átila, conforme nos pediram que fizéssemos o romano Flávio Aécio e o rei Teodorico, dos visigodos. Eu e todos os meus soldados, desde o meu general aqui presente até o mais humilde do infantes, estamos prontos para fazê-lo. Aliás, essa já era a nossa perspectiva quando resolvemos ficar na cidadela e esperar aqui pelo cerco dos hunos que vieram do norte. Contávamos como certa a nossa derrota e estávamos prontos para vender muito caro nossas peles.

– Exatamente, meu rei. Mas aí tivemos a felicidade de ter as três sacerdotisas celtas entre nós e isso mudou completamente o quadro das batalhas a nosso favor. Quando que, apenas duas semanas atrás, nós poderíamos sequer sonhar com o que aconteceu ontem, a debandada total dos hunos do norte, a vitória total!

– Isso mesmo, Armosic. Que bom que você também reconhece que não teríamos tido
sucesso sem essas três maravilhosas dádivas da Deusa celta.

Kyna interrompeu-os, apressada:

– Muito bem, agradeço em nome da Deusa, mas agora temos que decidir nossas táticas contra o avanço de Átila. Temos a confirmação, através dos nossos estudos desta madrugada, pelos nossos métodos, que avançam em direção a nós um total de 36000 hunos e seus aliados. E que, na sua retaguarda, a dois dias de distância, vêm Flávio Aécio e Teodorico, com seus aliados alanos e burgúndios, totalizando 45000 homens em armas.
Essa superioridade não é expressiva, mas nós podemos fazer a diferença.

– NÓS, sacerdotisa? Mas como?

– Em primeiro lugar, meu rei, barrando a passagem dos homens de Átila pelo rio Marne. E depois, opondo uma feroz resistência a eles, usando táticas de guerrilha.

– Mas como podemos impedir a travessia do Marne? Não temos homens suficientes para isso. Ainda mais que sabemos que a vanguarda dos hunos é toda de cavalaria. Onde os enfrentaríamos? Antes ou depois da ponte?

– A grande ponte será nosso trunfo, rei Meroveu.

Hilduara falou pela primeira vez:

– Sim, grande Kyna, já vejo perfeitamente o que quer dizer. As catapultas, não é?

– Isso mesmo, menina. Parabéns, você está com seus sentidos bem aguçados. Lembre-me de tomá-la a meus cuidados tão logo seja possível. Vamos afinar isso ainda mais.

Armosic reclamou:

– Ora, ora, eu não estou entendendo nada. Que história é essa de ponte e de catapultas e...

Foi interrompido pelo ruído de um tremendo tapa que Meroveu deu em sua própria testa, gritando:

– Caramba, é isso! Genial, sacerdotisa: vamos destruir a ponte de pedra usando nossas catapultas.

Armosic soltou um assobio de admiração:

– Pelos deuses, acho que eu nunca teria pensado nisso. Mas é, sim, a coisa mais evidente a ser feita. Temos 48 projéteis estocados. Vamos ter que levar as catapultas para a planície e ensaiar até acharmos a melhor distância. São duas catapultas idênticas. Temos também que colocar muitas parelhas de cavalos para puxar as carretas com os projéteis de pedra. E muitas dezenas de homens para conseguir transportá-las até os carros. É um trabalho de muitas horas. Precisamos começar já. Tenho sua autorização, meu rei?

– Claro, claro, meu bom Armosic, Providencie tudo imediatamente, com sua competência de sempre. E acho que eu devo acompanhá-lo também.

E começou a levantar do banco.

– Não, você fica! – falou Vérica, imperativa, puxando-o pela roupa e fazendo-o estatelar-se de traseiro no banco outra vez.

– Minha filha tem razão, rei Meroveu, desculpe seus maus modos, mas precisamos do senhor aqui. Temos muito mais coisas a discutir e planejar, além da destruição da grande ponte.

– Si.. Sim, sacerdotisa Alana. Estou prestando toda a atenção.

– Bem, pelos nossos cálculos, os hunos devem chegar no fim da tarde de amanhã à região da ponte, com uma força de uns 3000 cavaleiros, que são os que formam a vanguarda. Evidentemente não temos como lhes oferecer combate direto. Até mesmo porque, poucas horas atrás, vem outro destacamento, este com cerca de 5000 cavaleiros mais. No ponto de encontro com a ponte sobre o marne, a estrada principal, que os romanos chamam de Via Agripa, tem cerca de 20 metros de largura, entre pista carroçável e laterais. Logo depois, pelos dois lados, erguem-se colinas de média elevação, desfavoráveis para o combate a cavalo. Então, quando chegarem e constatarem que a ponte está destruída, os hunos vão perceber que nossa fortaleza está ocupada por inimigos deles e, não, por seus homens, como eles supõe que aconteceria.

– E imediatamente virão nos atacar na cidadela, é evidente. E não temos como impedi-los, pois eles estarão do mesmo lado do rio que nós.

– Certo, rei Meroveu – rebateu Kyna – E ficaremos aqui dentro, constituindo-nos para eles na primeira armadilha que encontrarão. Eles terão que nos fazer um cerco. Mas suas máquinas de guerra estão dois dias atrás, em sua retaguarda.  Então eles não poderão atacar-nos com eficiência de imediato. São homens de cavalaria, eficientes no ataque direto em planícies, com arco e flecha, mas isso não lhes vai valer nas primeiras horas.

– Mas eles vão nos cercar pelos quatro lados! Nunca mais poderemos sair. E, quando chegarem suas máquinas de guerra, eles nos pulverizarão aqui dentro. E escalarão as muralhas com toda a facilidade, usando suas torres de assalto. E então nos matarão a todos.

– Não a todos, Meroveu! Escute, deixe a Avó terminar, criatura!

E então, para um Meroveu que estava tão ruborizado quanto apaixonado, as três sacerdotisas começaram a delinear o plano de resistência. Uma Hilduara maravilhada, não  só com o que ia ouvindo, mas, ainda mais, com o que ia captando previamente antes de ouvir, os acompanhava em silêncio, a linda face iluminada por um sorriso de paz.

CONTINUA

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