segunda-feira, 8 de abril de 2013


A NOIVINHA – 4  
MILTON  MACIEL

Final da parte 3: Bem, mas agora era besteira ficar lembrando disso. O que estava feito, estava feito. Ia morrer. Estava frente ao pai da menina que descabaçara à força. O código era muito claro: o pai primeiro capava e depois matava o desgraçante da filha. Não tinha perdão. Ficou tremendo de medo, implorando mentalmente pelo tiro de misericórdia. Teve certeza da morte chegando, o homem já tinha até engatilhado a arma, sentiu um alívio enorme, morria inteiro, com os bagos no lugar. Pois então havia de morrer como homem. Já que morria inteiro, como um homem também não iria suplicar pela vida. Besteira, era inútil, estava morto mesmo...

PARTE 4
   Dito Timbó voltou a arma na direção dos outros seis homens que olhavam a cena de olhos esbugalhados e deu um tiro para o chão, bem perto dos pés deles. Os homens levaram o maior susto.

– Capa o gato, cambada di porcaria! Deita a corrê agora i num pára até chegá in casa di cada um! Si iscafede daqui!

   Quando Dito terminou a frase, o homem mais próximo já estava a uns dez metros de distância, na correria mais desabalada. Sumiram todos em segundos, cada um esperando apavorado a bala que ia entrar pelas costas. Salvaram-se todos. Dito voltou-se então para os filhos, que aguardavam, divertidos:

– Ocês ergue o mardito agora. Vamo pro dotorzinho. Tá na hora di começa a apricá o corretivo.

   Então a cidadezinha viu, alvoroçada, uma estranha procissão avançar pela rua principal: Três homens fortes sujeitando um quarto, que não era ninguém menos que o maldito do João Boto. Atrás deles, um homem soturno seguia a cavalo, em passo lento.

– É Dito Timbó, gentes! Corre pra vê! Dito Timbó lá levando o disgraçado do João Boto. Pra onde será?

– Bem feito! Disgramado! Tanto qui feiz qui chegô o dia dele. Argúem incomendô ele pra Seu Timbó. Tá morto. Coisa boa...

– Pois já vai tarde, nojento!

– Tamo livre desse disgramado finarmente... Deus é pai!

– Num bota Deus nisso qui é pecado, ó xente! Pois si vão matá um home...

– Ah, tá cum pena dele, tá? Intão vai lá e pede ele pro Seu Dito, leva ele pra tua casa, pra sê teu marido, leva.

– Cruz credo! Num diz uma coisa dessas, mulé! Só falei pra num dizê o nome di Deus, o resto tá tudo certo. Seu Dito qui dê um jeito no diabo, é bem feito sim. Ele bem qui merece.

   E o grupo, engrossado aos poucos por novos curiosos, começou a seguir Timbó e os outros homens a uma prudente distância. Com dois gestos simples, feitos de cima do cavalo, Dito Timbó lhes deu licença de segui-lo, mas impôs a necessária distância. Só que a procissão foi de curta duração: Logo os homens chegaram em frente ao pequeno hospital, o único da cidadezinha. Para surpresa dos espectadores, entraram porta adentro.

   Dito foi o último a entrar e fez um claríssimo sinal para que o povo que estava lá fora, lá fora ficasse. Foi um frisson geral, havia gente que se sentia morrer de tanta curiosidade. Os homens que entraram aguardaram na sala de recepção, enquanto Jeremias, o filho mais velho, foi buscar o médico. Não se pode dizer que Jeremias fosse um sujeito de bons modos. Em poucos segundos voltou trazendo o Dr. Epaminondas pelo braço, meio que a pulso. Ao chegar, falou:

– Este é painho Dito Timbó. I ele tem uma coisa pra dizê pra ocê.

   O caboclo trigueiro se aproximou do médico e deu-lhe um aperto enérgico na mão.

– Pois, dotor, ande dereito cum Dito Timbó e tudo anda bem cum o sinhô. Vim aqui pedí um favô. Este home pricisa duma operação í o sinhô vai tê qui fazê, ah, si vai!

   Dr. Epaminondas, veterano e pragmático, não chegou a ter medo de Dito e dos outros homens. Sabia que, se o procuravam, é porque precisavam dele. Sabia também que devia fazer tudo o que aqueles homens mandassem. Afinal, também ele conhecia de sobra a fama de Dito Timbó.

– Pois não, os senhores podem contar comigo. Qual é o problema? O que o homem precisa operar? Não é melhor eu começar por um bom exame?

– Num carece, dotor – quem falou agora foi Osmar, o filho mais moço – Nóis já tem o tar do diaguinósti, já sabe o qui tem qui operá. Ele cumeu nossa irmã di menor, num sabe? Nós troxi ele aqui qui é pra modi o sinhô capá ele pra nóis. Cum cuidado, nóis num qué qui o safado morra, não. Num qué qui dê a tar di infecção. Intão nós troxi ele aqui pro sinhô tirá os bago dele cum nestesia e tudo, cum higiene, sabe cumé?

   Epaminondas, o pragmático, sabia quando estava perante o irrecorrível na vida. Ordem dada, nessas condições, é ordem para ser cumprida, sem discussão. Ali mesmo na recepção aplicou um anestésico na veia do paciente, que não abria a boca para nada e nem se debatia. Outro pragmático: adeus, bagos! Ao menos ficava vivo. Quer dizer, sempre restava um fio de esperança. Pela primeira vez se via algo assim tão inusitado na história do sertão nordestino, um homem ia ser capado com todos os cuidados médicos, nada de corte bruto, na base da peixeira suja.

   O paciente apagou em seguida. Dr. Epaminondas o fez transportar para a pequena e limpa sala de cirurgia e ali obrou com a conhecida competência, removendo rapidamente o doravante inútil instrumento e seus anexos. Uma dupla fileira de pontos bem aplicados – Dr. Epaminondas era conhecido pela beleza e delicadeza de suas suturas – e o homem, quer dizer, o... o... agora mais ou menos homem, foi recolhido para um quarto, com o curativo aplicado e a habitual dose de antibióticos e sedativos.

– Mi diga, dotor, quanto tempo leva pra gente podê leva o home imbora, sem tê pobrema de apustemá a firida? – quem quis saber agora foi Bastião, o filho de Dito que morava em Juazeiro do Norte.

– Bem, o ideal é uma semana. Mas os senhores fiquem à vontade, podem levar o homem quando quiserem, até hoje de noite mesmo. Conhecendo esse demônio como eu conheço, não faço questão nenhuma de ficar com ele aqui mais do que o absolutamente in dispensável. Mas eu deixo a critério dos amigos esse tal de indispensável – Dr. Epaminondas queria, na verdade, se livrar daquele abacaxi o mais rápido possível. Não queria incômodos e também não sentia quaisquer pruridos éticos por conta de quem era o paciente, um consumado mau elemento.

– Pois intão nóis faiz siguinte: deixa ele aqui mais Bastião di guarda, pra módi o disinfeliz num querê si iscapá. Aí nóis tudo vorta amanhã di tarde i vê si pode levá o dito cujo.

   Na verdade foram necessários quatro dias inteiros até o Dr. Epaminondas poder dar alta ao paciente, com um mínimo de condições para garantir sua sobrevivência. Saiu andando com bastante dificuldade, amparado por dois homens. Durante esses quatro dias os visitantes acabaram ficando no hospital mesmo, em um dos quartos de enfermaria, que tinha seis camas vazias. Um deles sempre ficava colado em João Boto, os outros três saíam e andavam pela cidade, de prosa com todo mundo.

   A história do descabaçamento da menina de dez anos já tinha corrido mundo, juntando ainda mais solidariedade do povo aos membros daquela família ofendida. Não bastasse a grande fama de Dito Timbó, que fazia com que fosse uma honra para um habitante da cidade apertar-lhe a mão, ainda tinham a oportunidade de conhecer mais três cabras machos, todos filhos de Timbó, todos eles aprendizes de matador. Isso causava um profundo impacto naquelas pessoas simples.

   O retratista do lugar não dava vencimento de tirar e revelar fotografias em que os moradores, homens, mulheres e crianças, queriam aparecer ao lado daquelas celebridades. De mais a mais, a punição de João Boto despertava grande comoção e simpatia, a vontade de vê-lo desgraçado sendo uma das poucas unanimidades numa cidadezinha como aquela, irremediavelmente cindida ao meio pela política local.

   O fato é que, quando o cabra malvado pôde andar, a procissão foi formada novamente. Outra vez a cidade se agitou, todos interessados em saber qual seria o desfecho do caso e o destino final de João Boto.
CONTINUA

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