quinta-feira, 4 de abril de 2013


O CERCO  - 40   Novela histórica
MILTON MACIEL  (capítulos finais)

Resumo do cap. 39 – Os ostrogodos atacaram frontalmente os visigodas e o combate foi completamente equilibrado, até o momento em que os homens liderados por Torismundo, o filho do rei Teodorico, junto com os francos de Meroveu e Armosic, atacaram a retaguarda deles. Tendo que deslocar homens da vanguarda para a retaguarda, aquela se enfraqueceu e abriu caminho para o avanço da cavalaria visigoda. Nesse avanço, o rei Teodorico, após cair desacordado ao solo, ao receber um golpe de lança no elmo, foi pisoteado e morto pelas patas de seus próprios cavaleiros. Os francos tiveram baixas pesadíssimas, perdendo rapidamente metade de seu contingente de pouco mais de 500 homens de infantaria. No meio da luta, Armosic percebeu que Vérica permanecera no topo da colina e, de lá, atingia, com suas flechas gigantes, os ostrogodos que tentavam atingi-lo ou ao rei Meroveu. Num dado momento, o general franco viu que Alana avançava com seus 200 cavaleiros visigodos em direção ao acampamento fortificado dos hunos e seus aliados.

REBAIXANDO DE VEZ O MORAL DO INIMIGO

O sol estava perto do horizonte naquela tarde de quase verão, 19 de Junho, quando os dias já eram muito longos. Enquanto se refletia no elmo e na armadura da jovem Vérica, no topo da colina, ele iluminava o caminho para o avanço de outra sacerdotisa celta, Alana. Sua fulva cabeleira, jogada para trás pelo vento gerado pelo galope célere da égua Almarak, deixava mais exposto seu rosto de feições simplesmente perfeitas. Quem pudesse, naquele instante, contemplar-lhe face serena e bela, nunca poderia imaginar a que tremenda missão a guerreira-sacerdotisa se devotava então.

Atrás dela vinha a célebre “Brigada de Alana”, como passou a ser conhecido aquele contingente de exímios cavaleiros que o rei Teodorico colocara a serviço da sacerdotisa. Uma vez reintegrados à normalidade de suas posições na cavalaria visigoda, após deixarem a fortaleza franca e se apresentarem para a batalha contra os hunos e seus aliados, todos os homens foram unânimes em pedir para continuar sob o comando da sacerdotisa celta.

O capitão que os recebeu e que os chefiava antes, não só não concordou com o pedido como se julgou ofendido com a vontade daqueles homens. Se tinham um heróico capitão que sempre os comandara, por que haveriam de querer ficar sob o humilhante comando de uma mulher?

O assunto extrapolou os limites do grupo e chamou a atenção do superior hierárquico do capitão. Que não era outro senão o musculoso e enorme Merval, o capitão burgúndio a quem Alana aplicara uma lição memorável na sala de banquetes de Teodorico, em Orléans. Muito pouca sorte do capitão visigodo que o comando de todos os cavaleiros aliados, em campo para a grande batalha, tivesse sido entregue àquele burgúndio. Merval havia se convertido no maior adorador de Alana. Para sua surpresa completa, seu superior não só o obrigou a incorporar-se ao destacamento da “brigada” da sacerdotisa, como foi ele mesmo oferecer-se para participar do reide contra o acampamento inimigo. Dava assim o bom exemplo a seu subordinado: iria ele também, o capitão Merval em pessoa, colocar-se de bom grado sob a autoridade de uma mulher. E justificou ao capitão:

– Essa não é somente uma mulher, capitão, você vai ver isso em bem pouco tempo. É muito mais, ela vale por mil mulheres e mil homens ao mesmo tempo. É uma grã-sacerdotisa da Deusa celta, tem poderes inacreditáveis. Mas, além disso, é de uma coragem e uma audácia a toda prova. Esses homens que estão com ela me contaram os ataques-surpresa fulminantes que ela comandou contra os hunos, perto da ponte do rio Marne. Ela levava 200 homens e atacava regimentos inteiros de hunos, provocando o maior estrago e desaparecendo em questão de segundos. Os hunos ficaram com tanto medo dela, que a denominaram de “cavaleiro do inferno”. Até hoje eles pensam que era um homem quem comandava os cavaleiros visigodos.

– E por que eles pensariam assim?

– Bem, em primeiro lugar porque os ataques foram noturnos. E porque, seus comandados me contaram, na hora em que ela se aproxima para o ataque, ela esconde o rosto sob a viseira do elmo e os cabelos embaixo de um largo manto preto, que prende ao pescoço e lhe cai esvoaçante sobre os ombros e o peito. E ela não é uma mulher de estatura normal, é bem alta e tem um corpo cheio, carnudo...

Merval parou um pouco e soltou um suspiro. Estava relembrando Alana de saída da sala de banquete, após humilhá-lo, perdoá-lo e curá-lo da ferida no pescoço. E após convencer os cabeças-duras dos reis aliados que já tinham dado tempo demais para que Átila deixasse Orléans. Então ela tirou de sobre si o manto sacerdotal e o corpo de mulher que surgiu, apertado nas calças de montaria dos celtas, era simplesmente enlouquecedor. Merval nunca havia contemplado algo tão perfeito em toda sua longa vida. Ah, sem dúvida, o capitão burgúndio Merval continuava um homem apaixonado!

O resultado da conversa foi que, quando Alana partiu para a extrema retaguarda dos hunos e ostrogodos, o capitão Merval e o capitão visigodo a seguiam de perto. Não podiam chegar mais perto, porque cavalo algum conseguia emparelhar com a marcha da égua Almarak. Esse animal também parecia ter poderes estranhos. Os homens da brigada juraram para Merval que a água parecia conversar com os cavalos deles. E ali mesmo, durante o galope de agora, cada vez que um outro cavaleiro consegui a encostar em Almarak, ela simplesmente aumentava o ritmo da sua marcha um pouquinho, o suficiente para deixar o outro cavalo para trás alguns metros. Parecia que a água se divertia com isso, que tinha uma reserva infinita de velocidade a sua disposição, que esperava um outro cavalo chegar junto a ela e o deixava para trás imediatamente.

A brigada de Alana contornou a colina de onde Vérica a saudou e arremeteu, paralelamente e bem próxima à Via Agripa, a grande estrada, até chegar ao extremo leste da linha de carroções, que fortificava o último reduto de defesa do inimigo. Aquela entrada, entre as carroças e o rio, correspondia a área dos guerreiros ostrogodos. Mas estes estavam, naquele momento, fazendo o possível e o impossível para resistir ao avanço dos visigodos, lá adiante, no campo de batalha. Menos de cinqüenta homens em armas haviam ficado para defender as carroças e seus materiais. Não foram páreo para o ‘cavaleiro do inferno’ e seus agora 202 homens. Os primeiros tombaram logo e os demais trataram de fugir como puderam, alguns saltando entre a carroças e correndo para o campo de batalha, onde a luta ainda estava distante das carroças. Outros simplesmente preferiram se atirar no rio.

A brigada continuou o seu avanço e chegou ao setor central, onde uma guarnição de 500 homens de infantaria huna havia ficado para guarnecer as carroças principais, onde estava concentrado o grosso do botim que Átila havia acumulado – saqueando, pilhando e cobrando resgate de dezenas de cidades e propriedades dos gauleses. Ali havia muito ouro, moedas, jóias, objetos pequenos valiosos, relíquias de igrejas. Carroças e carroças estavam atulhadas desses despojos de guerra de altíssimo valor. Atrás deles é que acabara de chegar a brigada de Alana.

Os hunos em armas trataram de resistir como puderam ao ataque totalmente inesperado. A regra para eles era muito simples: se algo faltasse do tesouro de Átila, respondiam todos com a própria vida.  Por isso mesmo, essa era a pior de todas as posições que um huno poderia ter em campo. Todos tinham que vigiar a todos, o tempo todo. Sumisse uma única moedinha de ouro, todas elas muito bem registradas e identificadas, e lá iriam todos eles para a frente do pelotão de execução, os temíveis arqueiros vermelhos de Átila.

Por isso, quando se viram atacados de surpresa por um grupo de cavaleiros visigodos, os guardiães do tesouro  trataram de lutar com o empenho e a força que só o desespero pode dar: ou venciam, ou morriam. Ou morriam nas mãos dos visigodos ou, se sobrevivessem, morriam nas mãos de seus próprios companheiros de armas, seriam sumariamente executados, caso houvesse qualquer perda, qualquer dano, por menor que fosse, ao tesouro dos hunos.

Mas homens de infantaria, homens a pé, não eram páreo para uma brigada de homens montados em cavalos enormes e velozes. Os cavalos os derrubavam e pisoteavam, caso tentassem se interpor no caminho do avanço. Lutavam esses infantes com espadas apenas, escudos e lanças estavam nos depósitos. Seus superiores hierárquicos jamais previram aquele tipo de ataque e, por conseguinte, não os deixaram prontos para ele.

E também, se tivessem deixado, de nada iria adiantar. Ainda que tivessem escudos e lanças, estariam irremediavelmente a pé. E não tinham arcos, não eram arqueiros. Então , após terem logrado matar só dois visigodos e ferir uma meia dúzia deles, os hunos que ainda não tinham sido massacrados seguiram o exemplo dos defensores armados ostrogodos: trataram de fugir para salvar a pele.

Só que, para estes hunos, não adiantava saltarem entre as carroças e correrem para o campo. Ali encontrariam os hunos de regresso em algum momento, vitoriosos ou não. E seriam inapelavelmente flechados. O exemplo que eles seguiram foi dos soldados ostrogodos e da maioria dos civis que serviam nas bases de apoio e nas carroças: correram e se arrojaram dentro do rio. Quem soubesse nadar e tivesse muita resistência, poderia até atravessar. Outros certamente encontrariam a morte nas águas traiçoeiras. Mas, de qualquer forma, morte por morte, melhor tentar essa, onde sempre se podia esperar por um pouco de chance e de sorte.

Isso com um agravante ainda. Vários daqueles homens deixados ali pelos hunos, tinham testemunhado os reides noturnos do ‘cavaleiro do inferno’, naquela noite de pesadelo e assombração. Quando viram de novo aquele demônio à sua frente, todo de preto, brandindo uma espada na mão e uma grade maça na outra, montado sobre um enorme cavalo que não tinha rédeas, não tiveram dúvida alguma: aquele espectro monstruoso retornara dos infernos para dessangrar todos os hunos que atingisse. E então foi mesmo pernas pra que te quero, dezenas de homens, aos berros agora, largaram suas armas e correram para as barrancas do rio, de onde saltavam espetacularmente sobre o desconhecido. Antes morrer afogado, do que ter sua alma arrebanhada por um demônio das trevas.

Assim que todos os hunos e ostrogodos correram da retaguarda das carroças, os visigodos, após socorrerem os seus companheiros feridos, começaram o minucioso exame dos carroções que tinham ficado aos cuidados dessa guarda agora desbaratada. Por serem os únicos a merecerem tal cuidado, era evidente que ali estavam os maiores tesouros.

Enquanto isso tudo se passava em sua retaguarda extrema, os hunos a caro custo vinham retrocedendo, tão rápido quanto podiam. Ou seja, tão rápido quanto lhes deixavam os romanos, burgúndios, alanos e francos ripuarianos que os acossavam por todos os lados. O recuo de Átila era lento e seus homens caiam como moscas ante o contingente grandemente superior de guerreiros inimigos. Os ostrogodos também vinham recuando, ficando cada vez mais evidente sua próxima derrota para os visigodos e os francos de Meroveu.

O sol terminou de se por e, sob a luz ainda forte do crepúsculo, os homens da brigada de Alana começaram a atrelar os cavalos de tiro aos carroções pesados, entulhados de botins. A noite já era praticamente completa quando a brigada de Alana partiu rebocando e escoltando dezesseis carroções lotados de valores. Muita coisa, mas muita coisa mesmo havia ficado para Átila ainda. Ele não teria empobrecido demais por força dessa pilhagem da brigada. Mas, havia uma outra providência que Alana fora tomar junto à desguarnecida retaguarda dos hunos. E essa providência só poderia ser tomada quando a noite caísse totalmente, como naquele exato momento.

Dezenas e dezenas de carroções não precisavam de guardas armados para defendê-los. Porque só havia comida neles. Também com grãos, queijos, vinhos, embutidos, couros, os hunos haviam feito um imenso estoque. Milhares de homens poderiam comer mais de um mês com aquele botim, principalmente agora, quando certamente o número de guerreiros hunos a alimentar teria diminuído muito.

Noite chegada, escuridão, o alarido da batalha cada vez mais próximo, hunos e ostrogodos tentando chegar o mais rápido possível à linha defensiva dos carroções. Os visigodos já tinham partido há quase uma hora com os dezesseis carroções de tesouros hunos – na verdade, tudo aquilo bens dos gauleses, nas suas mais diversas denominações gentílicas. Os cavaleiros seguiram Alana, que já se havia livrado do ‘disfarce’ de cavaleiro do inferno, numa marcha segura e lenta, em direção à fortaleza. Ali guardariam muito bem protegido, o agora ‘tesouro dos gauleses’. Aos reis competiria decidir a divisão do ‘botim do botim’ entre seus povos. Mas Alana sabia perfeitamente que eles não teriam a menor voz ativa nessa decisão. Seria de Kyna e somente de Kyna a palavra final. Porque ela falava em nome da grande Deusa. E porque fora de Kyna a idéia e a determinação de que Alana levasse sua brigada e ajudasse os hunos a “poderem ir embora mais depressa, com menos peso para carregar”.

O pequeno grupo que ficou entre as carroças de víveres aguardando a total escuridão, era chefiado por Merval, o burgúndio. Então, a um sinal dele, os 24 homens sob seu comando começaram a acender as pontas de suas tochas. Antes disso, eles haviam passado mais de uma hora, no lusco-fusco do pós-ocaso, a encharcar o interior das carroças com o bom óleo para tochas que os hunos tinham abundantemente estocado em várias delas. O sinal de Merval serviu como comando para que os homens visigodos começassem a matar a saudade que o fogo de suas tochas tinha do óleo nas carroças de mantimentos.

Em questão de poucos minutos, o acampamento da retaguarda se iluminou com mais de seis dezenas de tochas gigantescas, cada uma delas uma carroça cheia de alimentos facilmente combustíveis. A 200 metros dali, engolfado por inimigos por todos os lados, Átila e os hunos viram o gigantesco incêndio a grassar em sua linha fortificada de defesa. Compreenderam imediatamente que um grande ataque havia acontecido ali. Em desespero, deitaram a correr simplesmente em direção às carroças, abandoando a luta com os inimigos. Era imperioso chegarem aos carroções, era mistér apagar o incêndio, era vital salvar o tesouro.

Mas os inimigos não lhes deram trégua e seguiram celeremente em seu encalço. Uma estranha marcha veloz para as carroças, repleta de luta de parte a parte, foi se desenrolando, enquanto a noite escurecia de vez e os homens chegavam todos juntos, embolados, à beira da linha de carroções. 

Mas a própria escuridão de uma noite sem lua se encarregou de por fim àquela dia de batalha. Era impossível ver quem era amigo e quem era inimigo e muitos romanos mataram romanos e visigodos; e vice-versa. Torismundo acabou perdido no meio dos hunos que voltaram e teve que passar a noite escondido dentro de uma carroça de couros. O próprio Flávio Aécio, no meio da escuridão, perdeu-se dos romanos e foi buscar refúgio entre os francos ripuarianos até o nascer do novo dia.

A confusão foi absoluta e total, imperou durante toda a noite escura e todos, sonados e cansadíssimos, tentaram esperar acordados o nascer do novo dia. Ninguém podia estar tranquilo, o homem a seu lado podia ser um inimigo, eram dezenas de milhares de homens sobreviventes, todos miseravelmente misturados. E cansados ou feridos demais para pensarem em continuar as hostilidades no escuro. Ninguém teve coragem de acender uma tocha. Isso seria mostrar sua cara ao inimigo, que podia estar a um metro dali. Dentro das linhas defensivas dos carroções remanescentes, imperava a mesma insegurança.

Somente na parte em que as carroças de mantimentos ardiam, os diferentes grupos de soldados podiam reconhecer quem era quem. Mas isso não fazia diferença alguma. Ali quase todos eram hunos ou ostrogodos. E agora eles não lutariam contra mais ninguém, depois daquela tarde amaldiçoada. E, mesmo que o quisessem fazer, não encontrariam na escuridão próxima, nenhum inimigo disposto a lutar.

O fogo extinguiu-se nas carroças de mantimentos. Caiu a escuridão total sobre os campos das planícies catalaúnicas. Onde estavam, os homens remanescentes se jogaram ao chão, trataram de afastar os cadáveres que o forravam, ou os aproveitaram como travesseiros, e trataram de dormir.

Kyna havia avisado a todos no início da tarde: quando a noite se fizesse total, quando a escuridão dominasse a planície totalmente, a guerra estaria acabada. Não haveria um segundo dia para guerrear. Quando o sol nascesse outra vez, os homens veriam “o horror dos horrores”. E então compreenderiam que não havia mais por que lutar.
CONTINUA



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