quarta-feira, 17 de abril de 2013


O  CERCO – 44   Novela histórica 
MILTON  MACIEL

ÚLTIMO CAPÍTULO
(Conclusão no EPÍLOGO, a ser publicado a seguir)

Resumo do cap. 43Os hunos e os ostrogodos, com seus minúsculos contingentes de aliados hérulos e alamanos, forçados pelos hunos a combater ao lado deles, estavam todos fragorosamente derrotados. Átila punha toda a culpa nos gépides, pelo abandono covarde do campo de batalha. Mas todos sabiam que ele também era responsável pela derrota, por sua perseguição precipitada aos alanos, caindo na armadilha armada para os hunos. Subitamente chegou ao acampamento huno o jovem mensageiro ostrogodo, com notícias do exército norte dos hunos. O jovem Gorthand havia reconhecido no comandante em chefe desse exército, o huno Uldin, o odioso general que havia feito matar sua família. Então, para levar adiante seu plano de vingança, o rapaz trouxe consigo um anel que Átila havia dado a Uldin e mentiu para o rei dos hunos, dizendo que Uldin se rebelara e não reconhecia mais Átila como seu líder. E que partira para conquistar Aurelianum para ele mesmo, Uldin.

OS CHEFES DELIBERAM
Átila
Depois que o jovem mensageiro ostrogodo partiu, após receber uma boa recompensa em ouro por seu trabalho extraordinário, Átila retirou-se sozinho para sua tenda. Sim, senhor, pensou o rei dos hunos, se ele pudesse contar sempre com a homens determinados e leais (!) como aquele quase menino, então ele estaria bem. Não teria que se haver com traidores como Sangiban dos alanos, Ardaric dos gépides e agora, pior ainda, seu próprio general Uldin, que o apunhalava pelas costas. Mas todos eles não perderiam por esperar.

Tão logo pudesse refazer seu exército, haveria de caçar e punir cada um daqueles três miseráveis. E Uldin haveria de ser o primeiro. Ele e aqueles outros traidores desgraçados que faziam parte do seu comando em Lutécia. Ordenaria a morte para todos imediatamente. Quem os encontrasse primeiro e os executasse, poderia vir reclamar sua recompensa com Átila, que saberia ser generoso. Gorthand não poderia esperar por coisa melhor!

Como um leão enjaulado e ferido, furioso e preocupado, Átila caminhava de um lado para o outro dentro de sua tenda. Não havia conseguido ver nenhum movimento de formação dos soldados inimigos, na outra ponta da planície. O que estaria levando Flávio Aécio a retardar tanto o ataque final aos hunos e ostrogodos? De qualquer maneira, quando os aliados desfechassem o ataque, não lograriam colher seu maior triunfo – Átila em pessoa, vivo ou morto. Pensando assim, caminhou até a entrada da tenda e dirigiu um olhar para fora. Sim, ali estava sua grande pilha de selas. Breve teria que mandar incendiá-las e jogar-se corajosamente sobre suas labaredas. O rei dos hunos arderia e se transformaria em cinzas apenas. Mas não seria um troféu nas mãos odiosas de Flávio Aécio e do maldito Sangiban.

Isso o deixava entristecido, mas não com medo. Sempre estivera e estava pronto para morrer, uma vez que participava ativamente dos combates, liderando seus homens. Mas era triste pensar que teria que ser ele o autor de sua própria morte. E que, portanto, sua morte seria inglória. Mil vezes morrer com o peito trespassado por uma lança, espada ou flecha do inimigo. Esta seria uma morte gloriosa. Jogar-se para queimar sobre uma pilha de selas de cavalo em fogo só não seria mais vergonhoso do que deixar-se apanhar, aprisionar e humilhar pelo inimigo.

Flávio Aécio
Enquanto Átila se remoia nesses negros pensamentos de morte e esperava pelo ataque final dos aliados, no acampamento destes, ao sul da planície, a grande tenda de comando estava novamente ocupada pelos comandantes maiores. Flávio Aécio conversava com o rei Sangiban dos alanos e com o rei Gondioc dos Burgúndios. A grande novidade era a morte do rei Teodorico dos visigodos e a partida dos sobreviventes com seu novo rei, o jovem Torismundo. Aécio mostrava-se contrafeito, acusando Torismundo de desertor.

Mas isso era só uma representação que ele fazia para os reis aliados. Na verdade a partida de Torismundo o deixara muito satisfeito. De fato, ele temia o poderio dos visigodos, que tinham um exército ainda muito numeroso, mesmo após as grandes baixas do dia anterior. Havia um grande contingente de soldados visigodos em Toulouse também.

Se os visigodos atacassem e destruíssem Átila, provavelmente se sentiriam fortes o suficiente para abandonarem a aliança com os romanos e tratariam logo de se expandir territorialmente, ocupando mais terras do império, que os soldados deste não conseguiriam defender. Brilhante estrategista, Flávio Aécio tinha esperança de convencer o jovem herdeiro da coroa a desistir de retaliar os hunos e ostrogodos pela morte de seu pai Teodorico.

Mal sabia ele que, para Torismundo, a morte do pai fora um grande alívio. E que quem havia feito todo o trabalho de convencimento do novo rei havia sido a jovem sacerdotisa Vérica. Por isso foi com grande surpresa que recebeu essa informação diretamente da mãe da moça, a sacerdotisa Alana, que estava, junto com as outras duas sacerdotisas da Deusa, presente também à reunião dos chefes aliados. Ali estavam também o rei Meroveu e seu general Armosic, bem como a aprendiz de sacerdotisa, a incrivelmente bela Hilduara. Quando Aécio fez de novo o seu teatrinho, reclamando da partida de Torismundo e seus visigodos, Alana, chamando-o de lado, falou-lhe em voz bem baixa, para que ninguém mais a pudesse ouvir:

– Ora, Aécio, deixe-se disso. Você pode enganar esses reis seus aliados, mas não às sacerdotisas da Deusa. Nós sabemos muito bem como essa decisão de Torismundo o deixa aliviado e contente. 

– É, sacerdotisa. Você tem razão. Ver os visigodos partirem foi de fato um alívio para mim. E você sabe qual a razão?

– Claro. Todas nós três sabemos. E pode ficar tranquilo, porque essa era a única decisão sensata que Torismundo poderia tomar. Foi aconselhado a fazê-lo por minha filha, a sacerdotisa Vérica, que foi quem encontrou o corpo do rei Teodorico.

– O QUE?!  – Flávio Aécio gritou tão alto, com a surpresa, que chamou a atenção de todos. Imediatamente tratou de desulpar-se:

– Perdoem-me, não foi nada, apenas fiquei sabendo de algo que me surpreendeu demais.

E surpreendeu-se mais ainda, ao ver que Vérica lhe lançava um olhar debochado e lhe sorria com ar de superioridade. Era óbvio que ela sabia muito bem a causa do grito de surpresa dele. Que menina totalmente fora do comum! Tão jovem e com sua enorme força, sua beleza incomum, sua coragem extraordinária e sua condição de sacerdotisa, tudo isso ao mesmo tempo, ela não tinha paralelo de comparação com nenhuma outra mulher que Flávio Aécio tivesse conhecido em toda a sua longa vida de quase sessenta anos!

– Como lhe disse Aécio, todas nós três sabemos que a partida dos visigodos lhe convém, porque você não quer exterminar os hunos, na única ocasião em que pode fazer isso com toda a facilidade.

– É, Alana, eu já devia ter imaginado que vocês saberiam a verdade, afinal é mesmo impossível mentir para vocês. É verdade, eu prefiro conservar o jogo de forças da maneira como está agora. Com Átila ainda em ação, os visigodos precisarão da aliança com os romanos e nós poderemos mantê-los na situação de parceiros. O mesmo vale para todos os nossos outros aliados de hoje, inclusive, agora, os gépides, que, talvez mais do que ninguém, precisem temer a vingança do rei dos hunos. Com certeza, o fim de Átila seria o fim deste pacto, que me permite manter as esperanças em um futuro de paz dentro das fronteiras da Gália romana.

– Você pensa muito como leal defensor do Império, Flávio Aécio. Pensa demais!

– E não é essa a minha obrigação, sacerdotisa, como Magister de todas as forças romanas?

– Sem dúvida que é. Porém será que sua lealdade é correspondida por seu imperador?

– Valentiniano III? Ora, ele é um fraco e um pusilânime. E é um covarde, também, morre de medo de mim. Além do mais, eu tenho um acordo com quem de fato manda, que é Gala Placídia, você sabe muito bem. É a mãe dele quem toma decisões por ele, todos sabem.

– Cuidado, Aécio, com a inveja dos covardes!  Com a retirada dos visigodos, todas as glórias da vitória sobre os hunos recairão sobre você, para os romanos. Você será mais idolatrado no Império do que já é. Seu imperadorzinho pode não resistir à inveja que isso lhe causará. Por favor, tenho muito cuidado. Não exagere nas festividades de glória. Pode ser perigoso para você.

– Sacerdotisa Alana, sua preocupação com a pessoa deste pobre general me deixa muito honrado. Posso ter alguma esperança que isso tenha algo a ver com aqueles dias dourados que vivemos em Lugdunum (Lyon), há tantos anos atrás?

Alana fitou-o dentro dos olhos com um ar enigmático, que fez o romano estremecer.

– Você não esqueceu aqueles tempos, Aécio?

– Como poderia, Alana? Se fiquei completamente louco, obcecado por você. Com uma loucura que eu vejo hoje brilhando nos olhos de Meroveu dos francos, quando ele contempla sua filha Vérica com olhos de adoração. Acho que nós, pobres mortais, não temos lá muitas chances quando nos enamoramos de uma sacerdotisa celta.

Alana agora lhe sorriu provocativa, esquentando o sangue do general romano ainda mais. Era evidente que ela lhe dizia com os olhos que ela tinha interesse na renovação daquele jogo de sedução. Aécio levou seu comentário mais adiante:

– E veja, também, o olhar embevecido de Sangiban para sua mãe. Todos nós, os mais velhos, sabemos que ela foi o grande amor da vida dele. Mas também no caso dele, como no meu, as sacerdotisas seguiram o chamado de sua Deusa e nós ficamos anos a sofrer, desesperados de amor.

– Flávio Aécio! Você quer me deixar com remorsos?

– Não, não quero, porque sei que isso é impossível. Você não os teria. Na época eu fiquei muito mal, não compreendi porque você me deixou daquela maneira. Tentei me convencer que a odiava. Mas foi inútil. Eu a amei cada vez mais, depois que você me disse adeus. Mas felizmente o tempo e o amadurecimento curam todas as feridas. Para mim o que aconteceu foi que eu deixei de pensar como um egoísta e compreendi que uma sacerdotisa da grande Deusa nunca pode amar um homem da maneira que ele a ama. E foi isso que me deu a paz.

– Fico surpresa, Aécio, que você tenha chegado a essa conclusão por si mesmo, porque ela é a mais absoluta verdade.

– Sim, Alana, eu levei longos anos para me curar desse meu amor impossível. Mas consegui então, como disse, deixando de pensar só no meu umbigo e no magnífico homem que eu era para você e para qualquer outra mulher – e era mesmo, como o romano mais importante do império, na época acima, na prática, do próprio imperador.  Consegui, enfim, chegar a um ponto em que entendi que você, assim como sua mãe ou sua filha, não são como as outras mulheres.

– Não somos? – e o sorriso provocador veio acompanhado de um olhar quente de flerte.

– Não, Alana. Você sabe muito bem que vocês são superiores, muito superiores. Não só às outras mulheres, como também a todos os homens, inclusive àquele pavão que era o jovem general Flávio Aécio. Foi quando eu compreendi isso, quando pude aceitar que vocês são tão diferentes das outras mulheres, tão superiores a elas e aos homens todos, que eu me convenci que não estava querendo a submissão de uma mulher qualquer, mas de uma espécie de semideusa.

– Ora, Aécio, francamente! Não exagere.

– Não é exagerar, minha querida. É reconhecer a verdade. Como vocês se mantêm em contato constante com a grande Deusa, vocês são como ela ou parte dela a maior parte do tempo. Então nós, simples mortais, não temos como esperar que nosso amor seja correspondido plenamente por semideusas. Só uma vez conheci um homem que parecia estar no mesmo nível de vocês. Mas ele era um velho druida celta, acho que não conta.

Alana não pôde deixar de sorrir com a comparação que Aécio fazia. Simplesmente porque era verdade! O romano prosseguiu:

– Vejo o pobre Meroveu ali. Ele é tão importante quanto Sangiban, é um rei também. Mas eu sou capaz de apostar que, por mais amor que ele devote a Vérica, ela não será capaz de amá-lo de verdade. Estou errado?

Alana não respondeu. Mas sacudiu a cabeça, concordando. Virou-se para Meroveu e viu o tormento que lhe ia dentro da alma, ardendo em fogo e intranqüilidade por causa de Vérica. Já esta olhava para tudo e para todos com ar de curiosidade e satisfação. Raramente se dignava a olhar para Meroveu. Mas, quando o fazia, era para provocá-lo por uma fração de segundo, como que lhe disparando uma de suas flechas gigantes, só que cheia de desejo e luxúria. Logo depois ela o esquecia totalmente e se fixava em outro assunto ou interlocutor, a seu bel prazer. Pobre Meroveu!

Sim, Flávio Aécio tinha razão. Ele tinha aprendido tudo, aprendido sua dura lição. Como tinha amadurecido! Alana olhou-o com verdadeira compaixão. E isso terminou de abrir seu coração, atraída que estava novamente por seu antigo parceiro de longos e maravilhosos jogos amorosos. Sim, estava na hora de permitir-se um pouco de diversão. Aécio também o merecia, ao fim dessa longa e exaustiva campanha. Principalmente porque agora, maduro e escolado a duras penas, não iria reincidir no erro de se apaixonar. Que desfrutassem então o amor fugaz, mas explosivo e incomparável, como sempre havia sido entre eles.

No corpo perfeito e enlouquecedor de Alana, Flavio Aécio encontraria os louros da vitória maior. Depois poderia partir para buscar os outros louros, os mundanos, que o Império lhe haveria de conceder. Então ela lhe sussurou, com uma voz quente e convidativa, que deixou Aécio desesperado de vontade de concluir logo todos os arranjos e ir embora imediatamente daquelas Planícies Catalaúnicas de sua grande vitória, possivelmente a mais importante de toda a sua vida:

– Eu parto daqui para Toulouse, a serviço a Deusa, tenho que proteger o pobre rei Torismundo dos visigodos contra seus irmãos, que tentarão matá-lo. Cavalgarei Almarak e irei com meus cavaleiros visigodos, que não seguem a mais ninguém senão a mim e, portanto, não foram embora com os outros visigodos. Poderemos ir juntos, uma vez que você vai para Ravenna, receber suas homenagens. Cavalgaremos juntos de dia, como bons companheiros de guerra. Mas armarei minha tenda próxima da sua e, noite alta, eu invadirei a sua e não o deixarei mais dormir até o amanhecer.

Com a cabeça e tudo o mais em fogo, o general romano voltou-se para seu parceiros e começou a falar apressado, como quem quer resolver em poucos minutos toda uma longa sessão de debates e decisões:

– Senhores reis e generais. Senhoras sacerdotisas. Eu quero ser extremamente breve, prático e conciso. Eu poderia perder horas apresentando propostas e discutindo divergências aqui. Mas sei um caminho para evitar tudo isso e esse caminho sei que vai ser aceito sem contestação por todos os presentes. Então eu sugiro que, ao invés de passarmos horas aqui tendo idéias e divergências, ouçamos diretamente aquela pessoa que, no fundo, foi a responsável por nossos triunfos, tanto aqui na grande batalha, como nas pequenas batalhas do cerco à fortaleza dos francos. Que fale por nós aquela que tem acesso pleno à sabedoria e ao futuro. Que fale por nós a sumo-sacerdotisa Kyna e, através dela, a Grande e incontestável Deusa celta.

Sangiban bateu as mãos e os pés estrepitosamente em aplauso, à maneira dos alanos. Gondioc, dos burgúndios, concordou imediatamente. Os generais que representavam os francos ripuarianos também aplaudiram. Obviamente, Meroveu e Armosic acolheram a proposta de Aécio com entusiasmo. As sacerdotisas e sua aprendiz Hilduara limitaram-se a sorrir.

– Grande idéia, Flávio Aécio! – comemorou Sangiban dos alanos, dando um salto estrepitoso do banco e indo abraçar o romano – Que a grande Kyna nos diga, sem rodeios e sem tentar evitar ferir nossas suscetibilidades, o que devemos fazer! Nós o faremos certamente e isso será com certeza a única coisa certa a fazer, concordam, senhores? E, de mais a mais, acho que todos nós estamos cansados demais dessa correria sem fim e dessa guerra horrorosa e tudo o que queremos é voltar para casa. Diga-nos, então, sacerdotisa, o que é o melhor fazer para nos livrarmos de vez e rapidamente desta maçada toda. De minha parte eu digo mais: para nós, alanos, ordene, que nós obedeceremos cegamente!

Sim, Sangiban ainda era um homem apaixonado! Mas era sábio, também.

– E nós, os francos salianos, também obedeceremos! – apressou-se a afirmar em voz bem alta Meroveu, os olhos voltando-se brilhantes para Vérica, em busca de seu reconhecimento. Ela o concedeu, com um sorriso gentil de gratidão. Mas era Vérica: no instante seguinte passou muito fugazmente, imperceptivelmente para os outros, um dedo dobrado pelos lábios entreabertos. E isso deixou Meroveu enlouquecido, sem cabeça para mais nada, ansiando apenas que Kyna falasse logo e desse suas ordens coma maior brevidade possível. Tudo o que queria era galopar com Vérica para a fortaleza. Era o que ela queria também, tinha certeza. Ah, como ele ansiava que ela o cavalgasse ferozmente até a exaustão total! Como era bom desfalecer sob sua deusa-mulher, sua guerreira, sua sacerdotisa, sua dona.
CONCLUI no  EPÍLOGO


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