sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O CEGO BENEVIDES E O MACACO TIÃO
(Fábulas de Severino Ribamar – No. 2)
MILTON MACIEL

Cego Benevides é um cantador de cordel arretado. Com ele não tem meia volta ou tis’conjuro. Escreveu, não leu (o cego não consegue ler, mesmo), o pau comeu. Por exemplo, quando um pastor abestado quis promover a cura gay, cego Severino caiu matando, ponteando na viola: (e você, ouvinte, imagine a musiquinha de violeiro do cego, acompanhando os versos)

Pois diz que na tal Brasília
tá assim de home safado...
(Iham, Inham, Inham, Inham...)
Tão salafra que eles é,
que é quase tudo Deputado,
se é um país que tem Justiça
tava tudo condenado!
(Inham, Inham, Inham, Inham...)

Tem um tal de Feliciano
que enganou o eleitorado.
(Inham, inham, inham, Inham...)
Ele fala pros fulano
que ele qué curá os viado,
mas pra mim não tem engano
o que ele qué é sê curado.
(Inham, Inham, Inham, Inham...)

Quando um monte de deputados safados não compareceu à votação para cassar o mandato do colega deles (o Donadon, colega de safadeza), o cego Benevides ficou possesso. No mesmo dia, quando o pessoal começou a sair da missa especial das seis da tarde, em Jacaré dos Homens, Alagoas, o cego lascou:

O que mais tem em Brasília
é deputado bandido...
(Inham, Inham, Inham, Inham...)
Um deles até foi preso,
mas seu cargo foi mantido.
Que os colega do safado
Votaro tudo iscondido!
(Inham, Inham, Inham, Inham...)

Por aí você já pode ver como o cego Benevides é tinhoso. Por isso, quando o macaco Tião apareceu na praça e resolveu perturbar a paz do cego, armou-se a confusão. Naquela hora de mormaço, duas da tarde de um dia de Dezembro, cego Benevides tinha conseguido subir num galho bem baixo de uma árvore, para se refrescar na sombra. Mas acontece que o macaco Tião já estava encarapitado em um galho mais alto e recebeu Benevides com um grunhido ameaçador:
– Esta árvore tem dono!
O cego respondeu
– Ora, não se arrelie, macaco! Aqui tem lugar pra nóis tudo.
– Mais aí você atrapalha minha visão, cego. Vai pra outro galho, então.
– Oxe, sujeito! E tu qué visão mais atrapaiada do que a minha, qué? I eu não mi queixo. E o que é que tu qué tanto vê?
– A Formosa, a cabra de Siá Jussara.
– Ué, i que que tu qué com uma cabra, seu cabra?
– Bem, você sabe como é, neste lugar não tem nenhuma macaca e eu ando na maior secura faz um tempão. Aí ouvi dizer que essa cabra foi viciada por uns meninos lá do engenho do Benedito Leproso. Diz que ela atende eles direitinho e até gosta. Então...
– E essa tal Siá Jussara como é? Que eu nunca vi, mas já escutei falá qui é uma formosura.
– É bem fornida de carnes, cego. Principalmente no quarto traseiro. Quando ela passa todos os homens se viram para olhar o rabo dela.
– E tu não olha também, macaco Tião?
– Eu? Ora, rabo de mulher não me interessa. Já as perninhas da Formosa... Ah!
– Pois tu tem é sorte, macaco. E eu que sô cego, dava um braço pra vê esse rabo lindo de Siá Jussara. Ah, nessa hora, como eu queria vê! Eu queria vê, macaco!

MORAL DA HISTÓRIA –  é tripla:
Cada macaco no seu galho. 
Macaco não olha o rabo, mesmo!
Benevides não é o pior cego, o pior cego é aquele que não quer ver.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

FÁBULAS  DE  SEVERINO  
(Uma publicação semanal da Gazeta do Nordesteste)  
MILTON MACIEL – Diretor-presidente, repórter, redator, ilustrador, auxiliar de serviços gerais e manobrista

O mundo tem entoado loas a fabulosos fabulistas, como Esopo e La Fontaine. Contudo, ninguém reclama da grossa injustiça que é praticada com nosso mais importante fabulista vivo, o nordestino Severino Ribamar, nascido em Conceição das Almas Desenganadas, subdistrito do município de Olho D’água do Casado, em Alagoas.

Todos falam dos estrangeiros e, o que é pior, nossas crianças são obrigadas a decorar fábulas deles na escola. Porém ninguém se lembra de prestigiar a prata da casa. Pois, a partir de hoje, nestas páginas da nossa Gazeta do Nordesteste (é que a gente está aqui no nordeste do Nordeste, no rabinho do elefante que é o Rio Grande do Norte), nós vamos passar a fazê-lo. Os fabulistas europeus, antigos e atuais, inventaram de tudo, raposa com uvas, corvo com queijo, mas nosso grande autor nordestino foi muito mais criativo. Nossos leitores vão me dar razão, à medida que nós publicarmos a série de Fabulas de Severino. Hoje vamos começar com uma das mais simples;

O JEGUE E O JERIMUM – Fábula de Severino Ribamar

Vinha o jegue andando muito na sua, quando um jerimum dos bem pequenos lhe falou:
– Alto lá! – Ao que o jegue retrucou, levando um susto:
– Arre égua! E jerimum fala, é?
– Claro que não fala, seu asno!
– Fala não?
– Não fala! Mas isso, jerimum comum. Mas eu sou um jerimum especial.
– Se assunte, cabra. Ocê é só uma abróbra. E desde quando que abróbra fala?
– Eu sou uma abóbora especial, já lhe disse. Um jerimum de fábula. E jerimum de fábula fala, sim senhor. Você não está ouvindo, com esse enorme orelhão de burro? Pois então!
– Vixe, Nossa Sinhora! Pois num é qui jerimum de fábula fala mesmo, sô!
– Lógico. É como burro de fábula. Burro de fábula também fala, por isso você é um jegue falante. Aliás qualquer bicho, ou qualquer coisa de fábula fala. Cada linguarudo!...
– I por causa di que qui nóis fala, na tal de fábula?
– Ora, seu asno, por causa da moral da história, é claro!
– I o que é isso?
– Moral da história? Ah, é a lição que o fabulista quer dar.
– I o que é fabulista, jerimum?
– É o autor da história, jegue falante, o cara que inventa e escreve a fábula. Ele quer dar uma lição através da fabula.
– Ah, então o tal fabulista é professô di iscola qui passa lição, é?
– Não, asno, ele não precisa ser, até pode ser, mas não precisa. Ele só tem que escrever as fábulas, só isso.
– I ele veve disso, é? É qui nem iscritor di cordel?
– Não, burro, não é! Cordel é cordel e fábula é fábula.
– Ora, i goiabada é goiabada. Num ixpricô nada.

– Tá bom. Então eu explico: no cordel os personagens são humanos. Nas fábulas, sempre tem bicho que fala, os personagens principais normalmente são animais. Que pensam e falam. Entendeu a diferença?
– Sim, fábula é um cordel di animal qui veve jogando cunversê fora.
– Tá bom. Tá bom, fica sendo isso aí mesmo, então.
– Mai jerimum não é animal i ocê tá falando nesta fábula. I pode?
– Pode, jegue, pode. Nesta fábula já tem um animal que fala, então eu também posso  falar.
­ – I é? I tem animal qui fala, é? I quem é ele?
– É VOCÊ, seu animal! Você é o animal que fala nesta fábula! Tenha a santa paciência!
– Ai é? Sô eu, é? Mai eu não tenho muito essa tal de passensa não.
– Tá bom, jegue. Não dá mesmo! Você encheu a minha! Vamos logo acabar com esta fábula. Vamos mostrar a moral de história.
– I qual é a tal da moral?
– Bem, vamos colocar assim, só pra eu me livrar - e você, por favor, se mandar daqui no trote, que isto está cada vez mais difícil:

“Se seu interlocutor é burro, não perca tempo falando abobrinhas”

Então o asno foi embora, muito na sua, sem ter entendido nada daquela coisa mais sem graça de fábula. Ora, onde já se viu bicho que fala que nem homem? E jerimum, então? Cada louco!

(O ilustrador da figura acima encheu a cara pouco antes de fazer o desenho para a fábula. Entreguista confesso, não desenhou nem o jegue, nem o jerimum, Preferiu usar a raposa e as uvas de Esopo. E nem se tocou que uvas não dão em árvores. Um abestado! Se não fosse também o diretor-presidente, deveria ser despedido sumariamente!)



terça-feira, 27 de agosto de 2013

HOUVE UM DIA EM QUE CHEGUEI FELIZ
MILTON MACIEL

Houve um dia em que cheguei feliz,
Pois, até então, não te havia conhecido.
E houve uma noite em que me dei e o fiz
Acreditando no que havias prometido.

E no entretanto tua atitude contradiz
Toda promessa em que eu tenha acreditado.
E há esta tarde, na qual parto eu, infeliz,
Pois impossível é a alegria, se a teu lado.

Ficar contigo é estar sempre deprimido.
Será arrastar-me eternamente desvalido,
Pois tua frieza fez-me eterno derrotado.

E, antes que essa depressão vire meu fado,
Eis que me afasto, desta vida descontente,
E deixo a ti a minha ausência de presente.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

HÁ VENENO DEMAIS EM SUA BOCA - I

HÁ VENENO DEMAIS EM SUA BOCA!
I - O DEPENDENTE QUÍMICO
MILTON MACIEL

E se a agricultura convencional fosse uma pessoa?

Se por um momento nós resolvermos equiparar a agricultura convencional a uma pessoa, fatalmente iremos concluir que estamos perante um Dependente Químico. Que, como todo viciado em drogas, apresenta algumas características comuns inconfundíveis. Essa “pessoa”:

- Não sabe mais existir sem sua dose habitual de drogas químicas, progressivamente crescentes, mutantes e mais caras.
- Ele entra no vício induzido por seus fornecedores que, estranhamente, não são combatidos por agentes oficiais. Ao contrário, recebem apoio para o vício destes oficiais governamentais e de alguns agiotas pesados da praça, autodenominados bancos.
- Essas drogas químicas estragam sua saúde e contaminam sua casa, tornando-a perigosa para os não-dependentes e para os animais. E, evidentemente, para os que compram e consomem produtos do dependente químico.
- Os fabricantes dessas drogas sabem os males que elas causam. Mas, é claro, mentem a respeito disso o tempo inteiro, porque, igual aos fabricantes de outra droga letal, o cigarro, esse fabricantes precisam desesperadamente que um número cada vez maior de produtores se tornem dependentes de seus produtos químicos.
- Essas drogas químicas estão sempre subindo de preço, muito mais do que os ganhos limitados do dependente.
- Para poder comprá-las e dar continuidade a seu vício, o dependente químico precisa sempre de mais e mais dinheiro.
- Por isso mesmo, uma vez que não tem habitualmente atividade sustentável, precisa recorrer sempre e mais aos agiotas.
- Esses agiotas nem sempre liberam todo o dinheiro que o dependente precisa, ou não o fazem quando ele mais precisa. É uma manobra.
- Os agiotas se resguardam com a garantia dos bens do dependente. E são terríveis cobradores de dívidas. Costumam executar o dependente e tomar-lhe os bens pessoais.
- A saúde dessa pessoa dependente é, naturalmente, muito debilitada.
- Ela está em situação cada vez mais difícil no mercado.
- E, como se isso não bastasse, ainda tem que competir com um número cada vez maior de pessoas (produtores) que não são dependentes químicos (os orgânicos).
- Estes outros, os não-dependentes químicos, não desperdiçam seu dinheiro com drogas químicas e o mercado prefere os produtos deles, justamente porque não tem resíduos perigosos das drogas químicas.
- Embora os governos não ajudem essas pessoas sadias, não-dependentes, o número delas não pára de crescer.
- Os governos também não ajudam os dependentes agroquímicos, porque também lucram com sua dependência.
- A perspectiva histórica demonstra que os governos têm prejudicado muito esses pobres dependentes químicos, porque têm sido manipulados pelos grandes fornecedores de drogas químicas, principalmente através de verbas de campanha, subornos e verbas de pesquisa acadêmica, em todo o mundo.
- Os grandes produtores de drogas químicas gastam milhões e milhões de dólares fazendo propaganda enganosa e fazendo lobbies milionários descaradamente, de modo a manter o dependente químico tapeado e capaz de acreditar que esses traficantes estão do lado do bem e que trabalham pelas “ciências da vida”, enquanto semeiam a destruição e a morte.
- Os grandes fabricantes de drogas químicas estão agora procurando tornar o dependente químico também dependente biológico, tratando de vender a ele sementes e pacotes químicos exclusivos de transgênicos, onde, além do gasto maior em produtos químicos, o dependente tem que pagar também por sementes caríssimas e pagar royalties pelo uso de uma tecnologia devastadora.

(Excerto do livro A HORTA ORGÂNICA PROFISSIONAL – Milton Maciel – Solovivo, 2000)


sexta-feira, 23 de agosto de 2013


SEGREDO DE POLICHINELO  
MILTON  MACIEL 

Saquarema, 2 de Janeiro. Por quase toda Região dos Lagos, em quase toda Saquarema e absolutamente em todo Bacaxá, o segredo das infidelidades de Toninha é um segredo de polichinelo. Que é um segredo que todo mundo está careca de saber, só alguns tontos persistem em acreditá-lo realmente desconhecido. No caso, um dos tontos é a própria Toninha, que acha que ninguém, inclusive seu marido Ariosvaldo, sabe de nada. Bom, pelo menos quanto a isso ela está com a razão. De fato o Ariosvaldo não sabe de nada. Portanto o outro tonto é o marido mesmo.

Mas isso é mais do que compreensível, porque dita a boa regra que o marido deve ser o último a saber. Nem tão boa assim, porque há quem discorde. Uns são os maridos em   geral, é óbvio. Mas outra discordância, muito mais importante, é a que vem do falecido Nelson Rodrigues. Ele escreveu: “O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber NUNCA!”

Pois esse é também o credo da Toninha: O Ariosvaldo não deve saber nunca. Não que ela se importe muito com a reação dele, se souber, porque ela tem certeza que o marido é, no fundo – que no fundo só, que nada, na frente também, inteiro! – um grande banana.

A Toninha faz dele gato e sapato. Mais sapato do que gato, considerando o jeito como ela pisa no infeliz. Ali no bairro todo mundo sabe das aventuras dela com o elenco quase inteiro do Boa Vista, o time de futebol. E também comentam, e não a boca fechada, de como ela costuma passar em revista, um após outro, um bom rol de rapazes estudantes da Escola Técnica, quase vizinha da casa dela. A Toninha é assim, um caso raro de apetite insaciável, marido algum no mundo poderia dar conta de tal Pantagruel de saias, ainda mais que o que ela gosta de comer é fruta de outra natureza.

Uma coisa notável é que ela costuma se divertir com as denúncias que o Ariosvaldo recebe, há ocasiões em que chega mais de uma por dia. Ela coleciona tudo, não deixa destruir nada: bilhetes, cartas anônimas... Ah, disso ela tem um alentado arquivo, que faz questão de manter sempre atualizado. Antes guardava tudo em caixas – e bota caixas nisso! – de sapato. Depois, informatizou-se. Agora ela obriga o tonto do Ariosvaldo a digitar todas as denúncias no computador e salvar em arquivo interno e pendrive. É uma vaidosa, uma narcisista.

Ela justifica, dizendo pra ele que quer reunir o máximo de provas para depois contratar um detetive que seja capaz de identificar cada uma das pessoas autoras daquelas centenas de cartas (sim, são centenas!) e bilhetes maldosos e infamantes. Aí pretende processá-las todas por difamação e calúnia. O marido, achando que já havia material mais do que suficiente, chegou inclusive a lhe trazer um detetive de Niterói, para iniciar a investigação. Mas tudo o que a Toninha fez foi convencer o panaca do Ariosvaldo que ela precisa ir duas vezes por semana a Niterói, para explicar cada uma das cartas, com detalhes, para o detetive. Geralmente vai de manhã é só volta de noite, não quer que o detetive deixe nenhuma carta sem investigar, dá um trabalho!...

Por outro lado, ela está agora passando em revista os possíveis advogados da Região dos Lagos, para decidir quem irá representá-la no processo. Tarefa que também demanda muito tempo, o Ariosvaldo compreende. Inclusive tempo noturno, porque a maior parte dos advogados se recusa a tratar do assunto no escritório durante o expediente diurno. O que ela diz para o marido eu não consigo imaginar mas, seja o que for, o tapado aceita.

Aliás, ele acredita piamente que a mulher tem algumas inimigas impiedosas, que não se conformam com a beleza da Toninha, e que ficam tentando acabar com o casamento feliz que eles têm. Pura inveja, querido! Essas mal-amadas não se conformam com o nosso amor, tão perfeito, tão lindo, tão fiel.

Se é verdade que o pior cego é o que não quer ver, então o Toninho é o pior cego de Saquarema. Devia usar bengala e cachorro o tempo todo, até pra tomar banho. Mas o fato é que ele não acredita em nada que disserem contra a Toninha e fim de papo! E dessa forma o casamento deles já dura cinco anos.

Eu mesmo já andei naquelas águas revoltas e gostosas da mulher do Ariovaldo. Por baixo (desculpem o trocadilho), uma cinco vezes. Ou seis, sei lá se dá pra contar aquela ligeirinha de pé na sacristia, quando tive que me arrancar (literalmente!) com um salto ornamental, quase que o Padre Sebastião nos pega em flagrante.

Pois é, como digo, esse é o segredo de Polichinelo de Saquarema. No fundo, todo mundo sabe e centenas de pessoas se comprazem em denunciar o tal segredo ao corno do Ariovaldo. Mas não adianta. O que fazer, se na verdade até o Padre Sebastião sabe de tudo, mas é obrigado a calar pelo segredo de confessionário?

Sim, porque a maluca da Toninha se confessa todas as semanas e é claro que conta tudo pro padre. Aliás, acho que tem o maior prazer (é literal, também!) fazendo isso. Explico: Tão devota ela é, que não precisa mais se ajoelhar em frente ao confessionário na igreja. Como deferência toda especial a sua fiel (?!) paroquiana, a Toninha agora pode se confessar na casa paroquial, nas quartas-feiras, quando o padre fica sozinho, coitado. Pois é!... acho que isso nunca vai mudar...

Saquarema, 12 de Janeiro. Errei feio. Hoje tudo mudou! A Toninha está chorando pelos cantos, inconsolável. Pagou pela sua bazófia, pela sua imprudênca, pela sua vaidade. Pois o Ariosavaldo entrou ontem à tardinha com um processo de divórcio por traição contumaz. Entregou as caixas antigas e o pendrive atualizado com centenas de denúncias anônimas e comprou o tal detetive, que acabou trabalhando pro marido. Comprovou um monte de casos da Toninha. Agora ela está perdida, vão arrancar metade de tudo o que ela tiver. Bem, isso não é surpresa, afinal. Tem sempre um dia em que a casa cai, nesses casos.

Mas o mais estarrecedor foi o que eu fiquei sabendo, isso sim a boca fechada (já explico!). E esse não é, de maneira nenhuma, um segredo de polichinelo. Esse esteve o tempo todo guardado a sete chaves. E é chocante.

Sabe o Dr. Bernardino, o representante do Ariosvaldo? Pois é, ele estava armando a coisa toda há um bom tempo, na moita, na surdina. E eu acabo de saber em primeira mão, revelação de uma pessoa chegadíssima ao advogado (na verdade acho que o cara é um pistoleiro de aluguel), que ele e o Ariosvaldo são AMANTES desde antes do casamento deste. Na verdade, parece que armaram tudo pro Ariosvaldo dar o golpe do baú, porque a Toninha já era rica e foi herdando um monte de propriedades depois de casada, com a morte dos parentes. Casaram com comunhão de bens.

Ora a Toninha sempre teve aquele fogaréu, aquele furor uterino. E se encantou com a evidente vocação do pretendente Ariosvaldo para ser um grande corno manso. Por isso acabou casando com ele, apesar de ele ser um pé-rapado. E como a vocação não só se confirmou, como foi valentemente mantida e ampliada ao longo de cinco anos, o casamento se manteve firme como uma rocha todo esse tempo, enquanto o casal de malandros esperava a morte sucessiva dos parentes da Toninha.

Ora, o Ariosvaldo, quem diria! , Além de tão corno, parecia tão macho! E o Dr. Bernardino, então?! Não, ninguém podia desconfiar disso. Nunca! Nem eu, que conheço os dois há tanto tempo. E o pior é que eu não posso contar nada do que fiquei sabendo sobre o caso deles, sobre a armação safada deles. A pessoa que me contou, depois que o fez, encostou o cano de um revólver na minha barriga e disse, com voz sinistra: “Experimente abrir esse bico, que eu fecho com chumbo de 44Se alguém mais ficar sabendo, é porque VOCÊ deu com a língua nos dentes, meu camarada. E aí...” 

Gelei. Não sei de nada! Esqueci tudo...

Mas, por via das dúvidas, como não resisto à tentação de mostrar que eu sabia de toda a trama, estou escrevendo isto aqui. Vou esconder num cofre de banco e deixar instrução para que só seja aberto em caso de morte minha. Quem sabe? Aí o povo vai ver que eu era um cara bem informado. E prudente! 

Agora, se vocês estiverem lendo isto, então... quer dizer que eu dancei. E sem ter culpa de nada, eu que não ia ser idiota de abrir o bico!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Mas Não o Reconheceram!

“MAS NÃO O RECONHECERAM”
A Parusia:  Como foi volta de Jesus Cristo à Terra
MILTON MACIEL

   Vaticano, sede da Congregação Para a Doutrina da Fé, 23 de Maio de 2005. Às 14 horas, quatro homens estão sentados à mesa de reuniões. Sente-se no ar um clima de grande tensão. Alto, loiro, Padre Kleinubing tem olhos azuis de expressão angustiada, sob os óculos sem aro. À direita dele, baixa estatura, pele escura, cabelos crespos grisalhos, calva incipiente, semblante tranquilo, está Padre Cícero Ramon. É o vigário da paróquia de Igarassu, Pernambuco, Brasil, que está proibido de rezar missas e obrigado ao voto de silêncio desde o mês de janeiro. Do outro lado da mesa, em frente a ele, cenho cerrado, ar de grande preocupação, a autoridade que lhe aplicou as sanções – o cardeal alemão Heinrich Volkmann, prefeito da Congregação Para a Doutrina da Fé, sucessor do Cardeal Ratzinger, desde o mês passado sua Santidade Papa Bento XVI. Completando o grupo, Padre Leonardi, italiano, assessor de Wolkmann. O cardeal foi o primeiro a falar:

– Senhores, como sabem, o assunto de que vamos tratar é da maior gravidade e deve continuar no mais absoluto sigilo. Se chegar ao conhecimento da mídia e do público, as conseqüências serão imprevisíveis e, certamente, terríveis para nossa Santa Igreja. Por essa razão foi que impus o voto de silêncio a Padre Cícero. Mandei Padre Kleinubing ao Brasil porque ele nasceu lá, domina o idioma. E agora que ele acaba de regressar, trazendo-nos Padre Cícero, peço-lhe que nos apresente suas conclusões.

– Eu estive com Ele, Eminência! Com Ele! E não o reconheci! Pequei por soberba e por racismo, qualidades negativas que tentei em vão esconder de mim mesmo. Nasci em Schröder, Santa Catarina, mas foi na Alemanha que fiz minha carreira eclesiástica e onde o bondoso cardeal Volkmann me conheceu.  Graças a ele, faço parte da Congregação, desde 2001, quando mudei para o Vaticano.  Quando estourou o caso do beato brasileiro, o cardeal me incumbiu de acompanhar as investigações da Cúria Metropolitana do Recife. Foi lá que tive a oportunidade de conhecer o padre Cícero Ramon. E fui visitar o Homem na cadeia, Eminência! O vigário de Igarassu insistia o tempo todo que esse homem era Nosso Senhor Jesus Cristo redivivo! Padre Cícero, por solicitação do Arcebispo de Recife e Olinda, disfarçou-se de homem comum e entrou para o grupo de seguidores do tal beato. Depois de ficar onze meses como peregrino, tendo-se tornado bem próximo do líder, o padre passou a acreditar piamente que aquele homem era mesmo Jesus Cristo que tinha voltado à Terra. A Parusia!

Padre Kleinubing fez um grande esforço para controlar sua emoção e conseguiu prosseguir:

- Quando Padre Cícero começou a falar isso em público e o assunto chegou à Congregação, nós o mandamos silenciar imediatamente. Quando cheguei ao Recife, quase Natal de 2004, coincidiu de o Homem e seu grupo chegarem lá também. Mas ele foi logo preso e ficou detido numa delegacia de Polícia. Padre Cícero Ramon ficou desesperado e me suplicou para usar minha posição de membro do Vaticano para pressionar o arcebispo, de forma que a Igreja Católica se empenhasse na libertação do homem. Eu disse que só o faria depois de entrevistar o tal beato na cadeia e me convencer que ele era efetivamente Jesus Cristo. Antes disso, ouvi o relato do padre e confesso que fiquei bastante impressionado. Então a Cúria me forneceu o dossiê completo da investigação, também algo bem surpreendente. Vejam, eu trouxe uma cópia de tudo comigo. Deixem que eu lhes leia o trecho mais importante:

“Cúria Metropolitana da Arquidiocese de Recife e Olinda, 21 de Janeiro de 2005. Caso Severino de Maria Zacarias, tido como beato por pessoas do povo nordestino. Nascido em 8/2/1971, na Serra da Costela, limites da Paraíba, em Jacarará, município de Poções, Pernambuco. Dos pais não há registro senão dos prenomes: um certo Zacarias, retirante e carpinteiro. E uma tal Maria de Zacarias, lavradora. Tipo físico: mulato, 1,80 m, cabelo sarará, usa óculos. Não usa barba. Vestimentas: usa sempre uma túnica similar a uma batina, de cor branca, sandálias e chapéu de couro. Teve estudos: graduação e mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco. Era professor adjunto quando, aos 30 anos, abandonou tudo e começou uma longa marcha a pé, de mais de 2000 quilômetros, partindo do Recife com meia dúzia de pessoas, entre elas uma estudante de pós-graduação de Letras, Maria Milena, que consta ser sua mulher, fora dos sagrados laços do matrimônio, porém.”

“A longa jornada estendeu-se por três anos e no percurso esse homem foi fazendo pregações doutrinárias subversivas, voltadas contra as instituições e contra nossa Santa Igreja, uma série de blasfêmias e heresias. Leia-se, por exemplo, à pagina 27 deste relatório, um trecho de um dos documentos que foi apreendido com o homem:

“De noite tu vives na tua palhoça,
de dia na roça de enxada na mão.
Julgando que Deus é um Pai vingativo,
não vês o motivo da tua opressão.
Tu és nesta vida um fiel penitente,
um pobre inocente no banco dos réus.
Caboclo, não guarda contigo essa crença,
a tua sentença não parte do Céus.”

“Consta que o texto, evidentemente subversivo, é de um certo Antônio Gonçalves da Silva, vulgo Patativa do Assaré, felizmente já falecido e sobre o qual não temos maiores informações. O fato é que, com o passar do tempo e da peregrinação, esse falso profeta começou a arregimentar seguidores, pessoas simples e ignorantes, que passaram a ver nele uma espécie de santo ou profeta. Temos inclusive o testemunho de um padre da nossa Igreja, ao qual o Cardeal Arcebispo de Recife e Olinda determinou que, disfarçado, aderisse a esse bando para saber quem era aquele homem misterioso, que, ao cabo de três anos de pregação, já tinha mais de mil seguidores diretos na jornada, fora as multidões que deixou afetadas em todos os lugares em que passou, em Pernambuco, Ceará, Paraíba, Alagoas e Bahia.”

“Declaração do Padre Cícero Romão, da paróquia de Igarassu, Pernambuco, em depoimento à Polícia Civil desse Estado, quando foi obrigado a falar. Nos recintos da Santa Igreja ele está impedido de fazê-lo, porque, por ordem de sua Eminência, o Cardeal Volkmann, da Congregação Para a Doutrina da Fé, esse padre está atualmente proibido de rezar missas e colocado sob voto de silêncio.  Diz o padre:

“Estou convencido da santidade desse homem. Eu, pessoalmente, acompanhando-o pelo sertão da Paraíba e de Pernambuco nestes últimos onze meses, junto com seus fiéis, o vi realizar prodígios e milagres. Ele curava doentes, abençoava lavouras, fazia partos difíceis de animais nas propriedades pobres, ajudava com seus homens nas colheitas. E, mais de uma vez, quando a fome era muito grande para todos, ele alimentou todo mundo com um pouco de jerimum ou macaxeira e um naco de carne seca, que ia multiplicando. E ele podia, quando imprescindível, transformar água em mel-de-engenho e rapadura. Seus homens e ele mesmo cortavam cana na safra, para ganhar algum dinheiro. Mas, pela filosofia do líder, tudo que cada um ganhasse tinha que juntar ao fundo comum, para justa divisão. Eu acredito na santidade dele e para mim, como padre, não resta a menor duvida que ele é mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo, que voltou à Terra.”

   “Era assim que viviam, num típico modelo comunista, subversivo. Saiu o visionário do Recife, há coisa de uns três anos, com meia dúzia de pessoas e retornou com mais de mil a segui-lo. Isso, por si só, já caracterizava um indivíduo politicamente perigoso, os órgãos de segurança do governo e do exército estavam de olho nele, acompanhando sua marcha à medida que ele se aproximava do Recife.”

“Chegaram nesta capital no dia 23 de Dezembro. Deixando a quase totalidade do grupo em Paulista, o líder do movimento entrou em Recife com apenas 48 homens e mulheres. Foram direto para a catedral metropolitana e promoveram um comício em frente a ela, onde o perigoso indivíduo falou por cerca de duas horas contra nossa Santa Madre Igreja (e contra o Santo Padre), acusando-a de falsa herdeira de Jesus Cristo. Depois uma parte desses 50 indivíduos entrou no maior Shopping Center da cidade e organizou outra prédica, desta vez contra o sistema industrial, comercial e financeiro do Brasil. A polícia militar foi chamada e daí resultou o maior quebra-quebra. Os PM prenderam todos os baderneiros que não conseguiram fugir.”

“Já o indivíduo Severino foi preso pela Polícia Civil em frente à catedral mesmo e levado para uma delegacia, onde consta ter sido barbaramente espancado, por ter desacatado o delegado e todos os policiais. Chamou-os de desonestos, venais e assassinos. Depois de espancado, ele foi levado à presença do próprio Secretário de Segurança, Dr. João P. Lattes, na Secretaria. Este o interrogou pacientemente, mas o homem não colaborava. Seus seguidores todos, assim como o padre já referido, afirmam que ele é Jesus Cristo que voltou à Terra.”

“Quando o Secretário perguntava se ele era Jesus, ele respondia sempre: “O meu nome é Severino, não tenho outro de pia.” E mais do que isso recusou-se a falar. O Secretário devolveu-o então à delegacia do Dr. Caio Fass, onde, testemunhas afirmam, o prisioneiro foi de novo submetido a outro “corretivo”, incluindo pau-de-arara e choque elétrico. Mas manteve-se mudo.”

“Temos um relato confiável, depoimento às pags. 37 a 49 deste dossiê, feito por Genésio de Almeida, escrivão da mesma delegacia e testemunha ocular de todos os fatos ocorridos naquelas dependências. Relatou o referido escrivão que o Dr. Caio Fass perdeu o controle quando o interrogado o chamou de ladrão e assassino. E mencionou, na ordem certa e com as datas corretas, todas as negociatas feitas pelo delegado em concorrências públicas, armadas ali mesmo na delegacia.”

´Mencionou desvios de cocaína apreendida e os dois assassinatos ordenados pelo delegado em Novembro passado. Diz a testemunha que, ao fazer tais afirmações, o homem praticamente assinou sua sentença de morte. Era como se ele estivesse querendo se fazer matar. Diz textualmente o escrivão: “Naquela noite, eu mesmo ajudei o carcereiro a esvaziar uma cela lá dos fundos, deixando ali só dois presos, por ordem expressa do delegado. Na hora eu entendi que aqueles também estavam condenados, pois eram traficantes da facção rival à do delegado. E foi dito e feito.”

“No outro dia, quando o Sr. Almeida chegou à delegacia, viu que todos os três presos tinham sido metralhados juntos. Os corpos seriam removidos em seguida, estavam esperando o rabecão. Mas o corpo do indivíduo Severino desapareceu da cela na frente de todos. E reapareceu caminhando em direção à porta de saída, com sua túnica toda branca, sem uma só mancha de sangue, mas com 22 perfurações de bala.´

“Isso se deu justamente na hora em que o delegado Caio Fass vinha chegando. Este lhe deu voz de prisão e, não atendido, descarregou no homem os seis tiros do seu revólver 38. Nada aconteceu ao homem, foi como se as balas tivesse passado através dele, mas morreram na hora a faxineira Honorina e o escrivão Horácio. Isso acabou com a carreira do delegado, que foi processado, exonerado e hoje está internado numa clínica psiquiátrica.

    Isso encerrava a leitura do dossiê. Todos esperaram, respeitosamente, até que padre Kleinubing enxugasse as lágrimas. Ele então continuou:

– Sabe, Padre Leonardi, eu fui visitá-lo na delegacia no mesmo dia de sua prisão, pressionado por Padre Cícero. Fiquei sozinho numa cela com ele, que já estava bem machucado pela violência dos policiais. Perguntei como podíamos ajudá-lo. Ele simplesmente riu de mim: “A sua Igreja?! Ora, padre, volte para o seu Vaticano, deixe-me terminar minha missão em paz.” Ainda assim insisti e lhe perguntei:

– O seu nome é Jesus? – ao que ele respondeu simplesmente: “O meu nome é Severino, não tenho outro de pia” – e isso me fez desistir de ajudá-lo. Ele deitou em mim então um olhar como eu nunca tinha visto num ser humano: Um olhar que era pura compaixão, puro amor, como se estivesse me perdoando por minha indiferença. E por meu preconceito.  Fiquei abalado, porém eu já tinha formado um juízo preconcebido sobre ele. Afinal eu estava em frente a um NEGRO, um mulato escuro, alto e magro, sem barba, mas com um cabelo estilo black power enorme e um par de óculos redondos. Eu... eu preciso confessar que o meu racismo ancestral falou mais alto, era óbvio que eu não queria aceitar um Jesus Cristo com aquela aparência, para mim estranha. Contudo, para minha grande infelicidade hoje, ele era mesmo Jesus Cristo! Todas as investigações levadas a efeito depois de sua morte o confirmaram. Como o cardeal já sabe, hoje não temos mais nenhuma dúvida: Ele era mesmo Nosso Senhor! E eu não reconheci e não o ajudei, tendo estado a menos de um metro dele. Ah, padre, como o orgulho e a soberba podem perder um pecador!

Foi só então que Padre Cícero Ramon disse algo:

– Sim, ele veio, “mas não o reconheceram, antes fizeram com ele tudo o que fizeram.”

 Padre Leonardi interveio:

– Mas o que significa isso afinal? Que disparate é esse?
  
Ao que o cardeal replicou simplesmente:

– Significa que aquele homem era mesmo nosso amado Mestre Jesus. E, mais uma vez, nós não o reconhecemos e, antes, fizemos com ele tudo o que fizemos. Esse é o mais doloroso segredo que tenho carregado sozinho nestes últimos dias, desde que a investigação que fizemos no Brasil comprovou, sem a menor dúvida, a identidade do homem assassinado na delegacia: era Jesus, que cumprindo a Parusia, voltou a nós.

– Mas, Cardeal, como pode ele ser o Cristo, se falou coisas terríveis contra a própria Igreja dele?

– Contra a NOSSA Igreja, Leonardi! A nossa Igreja, que há muitos séculos deixou de ser a Igreja Dele. Foi isso que ele veio nos dizer. Lamentavelmente, quando o descobrimos, já era tarde demais. Ele se foi outra vez, não somos dignos de sua presença.

   Padre Leonardi deixou-se desabar no sofá quase sem respiração, tinha os olhos esbugalhados num gesto de puro pânico, a cabeça quase explodindo de dor.

    Então o cardeal Volkmann, bastante emocionado, dirigiu-se diretamente ao vigário de Igarassu e o que disse deixou Padre Leonardi atônito e Padre Kleinubing feliz:

–Apostate, meu filho. Apostate. Eu lhe suplico, leve sua pregação cristã renovada para fora de nossa Igreja. Torne-se um apóstata, eu lhe darei todo o apoio possível, de forma velada. Mas não fique mais nesta Igreja, lidere o movimento que vai resultar na nova Igreja Cristã, pois a força de Nosso Senhor já se faz sentir e dos, já hoje, milhares de seguidores que ele deixou, discípulos partem agora mesmo para conquistar o mundo. Mas eu lhe suplico: Dê-me tempo para ir preparando a transição, mantendo por enquanto a Igreja Católica ainda unida, até chegar a hora de entregá-la ao sucessor de Bento XIV, para as graves definições finais, quando sua Igreja haverá de redimir o que de bom tiver sobrado da nossa. Agora vá, meu filho, nós lhe seremos eternamente gratos. O senhor é um privilegiado, Padre Cícero, conviveu meses a fio com Nosso Senhor. O que eu não teria dado para merecer tal oportunidade e tal honra!...

   Padre Cícero sertanejo, sacerdote por vocação, seguidor, discípulo e agora o primeiro apóstolo de Nosso Senhor Severino Zacarias, entendeu que aquele era o fim de sua presença no Vaticano e em sua Igreja. Saiu à rua andando com serenidade. Sim, caminhava em direção ao futuro, trabalharia em favor das duas Igrejas, da nova e da velha, faria o que suas forças permitissem para deixar que o cardeal Ratzinger exercesse o seu papado sem que fosse perturbado. Já era demais a dor do segredo que, certamente, o cardeal Volkmann lhe haveria de colocar sobre os alquebrados ombros quase octagenários. E o dia que o fizesse...   


terça-feira, 20 de agosto de 2013

o burro, a serpente e o passarinho

O BURRO, A SERPENTE E O PASSARINHO
MILTON MACIEL

Um burro vinha andando calmamente pelo caminho quando viu uma serpente enrolada ao sol, no maior conversê com um passarinho. O burro deteve-se a cerca de 10 metros daquela cena bizarra e filosofou:

–  Tecnicamente isso não pode estar acontecendo. Isso porque, em princípio, cobra e passarinho não falam. Ainda mais assim, em idioma português um tanto clássico. Além do que, burros não podem entender o que uma cobra e um passarinho dizem, ainda mais se falam em português assim um tanto clássico. Ora bolas, burros não falam! E, se falassem, por que haveriam de falar logo em português, com tanto idioma melhor disponível no mundo dos humanos?

 Por que não o tailandês? – continuou a filosofar o burro.

Sim o tailandês seria muito mais conveniente. A capital do país dos tailandeses é por eles chamada de "Krung thep mahanakhon amorn ratanakosin mahintharayutthaya mahadilok popnoparat ratchathani burirom udomratchanivetmahasathan amornpiman avatarnsathit sakkathattiyavisnukarmprasit". Que quer dizer Bangkok, em português.

Por aí o burro via que o português é muito menos interessante, corta o barato, diz tudo aquilo com uma palavrinha só, sem graça, chocha.

Então o burro decidiu interpelar aqueles dois caipirões num idioma elitizado, que eles não poderiam jamais alcançar. E lhes disse na lata, no mais puro tailandês moderno:

Mahanakhon buriron amornpiman!

E ficou esperando a cara de imbecis que os dois fariam.

Mas o passarinho respondeu na mesma hora, em tom igualmente altivo:

Avatarnsathit ratchathani sakkathattiyavisnukarmprasi!

Ao que a serpente aduziu, em tom sibilante e não menos orgulhoso:

Udomratchanivetmahasathan popnoparat!!!

O burro ficou passado ao ver que aqueles caipiras não só falavam tailandês, como estavam tirando uma onda com a cara dele. Não se deu por achado e perguntou capciosamente, para humilhar mesmo:

Krung thep ratanakosin?

Mas o passarinho deu uma volta no burro, pois respondeu simplesmente, com a maior desfaçatez e ares de pouco caso:

– Amorn!

A serpente caiu na gargalhada, apontando com o rabo para a cara de furioso do burro. E completou, debochando acintosamente dele:

Udomratchanivetmahasathan!

Humilhado, o burro fez meia volta e retornou pelo caminho por onde viera, ponderando ensimesmado:

Ora, aquilo tudo não fazia o menor sentido! Serpentes e passarinhos não falam português. Que dirá um idioma muito mais elitizado, como o tailandês. E saiu num trote lento, um tanto amargurado com a incoerência de toda daquela situação. Embora fosse um monogástrico, o burro ruminou palavras, inconformado: Udomratchanivetmahasathan! Udomratchanivetmahasathan! Como é que aquela serpente morfética tivera o desplante de dizer aquilo para ele?! Falta de respeito!

E, irritadíssimo, o burro tomou o caminho que levava ao chalé do escritor. O jeito era interpelar aquela cavalgadura. Na certa o imbecil tinha de novo tomado todas, enchido a cara de absinto antes de escrever este texto. Ou tinha cheirado uma carreira enorme e depois começado a escrever esta história absurda, sem pé nem cabeça, onde um passarinho e uma serpente sabem falar, além do óbvio português, o precioso tailandês. E o vexame ficava para ele, o burro. Francamente! Ah, mas aquele escritor duma figa ia ouvir poucas e boas! E em português, que a besta não sabia nem falar, que dirá escrever em outro idioma – Que dirá em TAILANDÊS! Maldito escritor!







segunda-feira, 19 de agosto de 2013

IRACEMA

IRACEMA: VIRGEM E DOS LÁBIOS DE MEL?!  
MILTON MACIEL 

Um desse dias aí, por total acaso, caiu nas minhas mãos um livro de um autor novo, um tal de José de Alencar, de quem eu nunca tinha ouvido falar. Mas um caboclo que estava na birosca do Alves me garantiu que o sujeito é cearense, que é amigo do Raimundo Fagner e que é primo do Pé Torto, o Cidão Alencar, que foi centro-avante do Fortaleza. O Cidão, para quem não lembra, foi o cara que fez o Fortaleza perder a decisão para o Ceará dois anos atrás, quando chutou um pênalti para fora. Ganhou o apelido de Pé Torto e ganhou a porta de saída do clube. Ah, e também ganhou e estrada e fugiu, que o pessoal do Fortaleza queria corrigir o pé torto dele usando uma peixeira, para arrancar o dedão fora. E, como ninguém controla turba exaltada, o Pé Torto ficou com medo que os caras quisessem cortar mais coisas e se mandou para o Acre. Mas lá também não tem descanso, porque cearense é que nem gaúcho, sempre tem um monte deles em qualquer cidade deste mundo de meu Deus.

Mas o que o desastrado do Pé Torto está fazendo aqui? Ah, sim, ele entrou porque o caboclo da birosca do Alves  me disse que ele é primo do tal Zé Alencar, o escritor. Bom o livro do cara – Iracema –  tem uma história até que razoável, as mocinhas devem gostar. Isso se entenderem a linguagem do sujeito, porque ele escreve enfeitado pra burro, tem cada palavra mais esquisita! Na certa é daqueles que escrevem com um dicionário do lado, só pra enfiar palavra maluca e curtir com a cara do leitor.

Bem, só que o Zé Alencar andou escrevendo umas bobagens. Na certa ele ouviu passarinho cantar, mas não soube onde. Algum gaiato contou pra ele a história da Iracema e ele não entendeu direito. Ou, com a mania que o cara tem de florear tudo, resolveu limpar a barra da índia.

A começar pela coisa da Iracema ser virgem. O cara entendeu tudo errado. Como é que ela pode ser virgem no ramo de negócios dela? O gaiato deve ter falado que a Iracema é DE virgem, porque esse é mesmo signo dela. Já a Mercedita Gorda, que é a espanhola sócia dela no castelo, é de Leão. O cara só tá certo quando escreve que a Iracema é bugra. Isso ela é mesmo, conheci a dita cuja muitos anos atrás, quando ela era uma índia mais novinha, ainda tinha os peitos em pé e se virava na casa da Zélia Bunda Louca. Aí, quando a Zélia se aposentou, a índia tinha um coronel forte, um tal de Belmiro, que era um matador de aluguel muito bem sucedido. E o cabra comprou o bordel pra índia. E pra Mercedita, que ainda não era gorda e era cacho dele também.

Agora, essa história da Iracema dar mole pra português, pra brasileiro, pra turco mascate, pra todo mundo enfim... bom isso sempre foi a alma do negócio dela, não é? Tá certo que hoje em dia, com a velhice, com o barrigão, os dentes e os peitos caídos, mas nem garimpeiro que está no maior atraso, meses e meses no mato sem mulher, tem coragem de se aventurar por ali.

E é daí que vem a tal história dos lábios de mel. Tá na cara que o gaiato contou tudo errado pro Zé Alencar, só de gozação. Mas também, eu é que não culpo o cara. Quando é que ele podia imaginar que aquele cearense maluco ia botar isso num livro pra mocinhas, não é mesmo? Ou então vai ver que foi o Zé que não quis escrever a verdade, justamente porque o livro é pra mocinhas que não têm preguiça de ler com o dicionário do lado.

Mas eu não tenho compromisso com esse escritor novo, nem com a velha Iracema. Tenho compromisso é com a verdade. Então eu vou contar a história verdadeira dos lábios de mel, doa a quem doer. Quem me contou a verdade foi a Mercedita Gorda, que ainda dá um bom caldo, numa noite de muita batida de limão, depois da nossa função no quarto dela. Ela tava muito tocada, muito doidona, e deu com a língua nos dentes. Me falou que a Iracema, como não consegue mais homem nenhum, nem de graça, nem ela pagando, começou a usar uma fórmula mágica das índias velhas da tribo dela, para se aliviar.

A Mercedita me contou que a Iracema passa mel lá nas partes baixas desativadas, nuns tais de lábios. E aí só fica esperando que as formiguinhas lava-pés sintam o cheirinho do mel e subam. Então a bugra fica horas trancada no quarto ou no banheiro, na maior gemeção, diz que chega a sair zonza, quase desmaiada. A Mercedita diz que o barato não é dado pelos pezinhos das formigas fazendo cócegas, mas pelas picadas que elas dão, toda vez que Iracema se mexe de propósito, para assustar as bichinhas. Tu vê!

Bem, eu contei esse segredo e a coisa se espalhou. Pois a Iracema até gostou, porque agora ela não precisa mais se esconder para usar suas formigas. Tá conversando com a gente, entornando as suas batidas de pinga com jurubeba uma atrás da outra, e tá na maior descaração, no maior geme-geme ao mesmo tempo, revirando aqueles olhos de catarata. E onde quer que ela vá, tem sempre um carreiro de formigas atrás dela. Eita índia velha arretada!

E o bobão do Zé Alencar a falar de virgem dos lábios de mel. Ora, lábios de mel! Justo a Iracema, com aquele bafo de cachaça e aquele sarro do cigarro de palha sempre na boca. Francamente! Os lábios são bem outros, meu camarada, bem outros. E haja mel!

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A Intentona de 35

A INTENTONA DE 35  
MILTON MACIEL

No terceiro copo de chope, eu já sou um cara espontâneo. No quinto, fico sincero pra burro. No sexto, ousado. Assim, depois de uns... (bom, sei lá quantos, não lembro mais, com aquela comida árabe toda, aqueles charutos de repolho) lasquei direto pro Maguito:

– Tô louco pra pegá tua irmã! Muito gostosa!

O Maguito já devia ter passado dos dez, porque ele respondeu na lata:

– Eu também! Mas essa sociedade decadente inventou essa porra de incesto...

– Tô doido pra dá uns amassos nela.

– Taí, tu tem bom gosto! Já que eu não posso, eu te ajudo.

Dei um beijo no Maguito e gritei pro garçom:

– Mais charuto de repolho. E o meu maior amigo aqui não paga nada hoje.

E o Maguito:

– Salta mais chope também. O meu cunhado aqui não quer que eu pague nada hoje.

E aí ele me segredou:

– A Sílvia tá fácil, fácil, na comemoração do coroa. E como lá só tem velho mesmo, se a gente vai, você se dá bem.

– Que papo é esse de comemoração do coroa.

– Ah, é um barato do nosso avô. Hoje é 27 de novembro. E todo 27 de novembro, ele junta um monte de caco velho que nem ele e comemoram o aniversário de uma tal de Intentona.

– Intentona? Mas quem é essa Intentona? É uma velha da patota deles?

– Não pode ser. Porque eles falam que é a Intentona de 35. O velho tem pra mais de 80 anos. Pode ser uma pilantra de 35 anos, que dá mole pros velhos e arranca uma grana deles. Se bem que, no caso do meu avô, quem dá mole é ele mesmo. Dura é que ele não vai dar.

E o Maguito se afogou com o chope, de tanto que riu do velho. Aí eu mandei ver:

– Pô, vamo logo pra essa tal de comemoração, to doidão pra pegá tua irmãzinha.

Paguei e a gente errou a saída, saímos foi no pátio dos fundos do restaurante. Lá tinha uma moto com a chave no contato. A gente montou e saiu a toda. Na porta do restaurante tive a impressão de ver o nosso garçom correndo desesperado. Mas acho que foi coisa do chope.

Porra, o Maguito dirige moto mal pra burro! Ou vai ver que foi o chope! Afinal a gente chegou no tal clube não chegou? Tá certo que antes a gente entrou numas vielas bem pau da Rocinha, uns caras lá mandaram chumbo na gente, o maior barato, a gente caiu na gargalhada, porque os panacas atiravam mal pá caralho,  não acertaram um único teco na gente! Afinal, o tal clube ficava em São Cristóvão, não sei o que o Maguito foi fazer na Rocinha, se a gente saiu do Catete.

Mas o que importa é que nós chegamos lá. Aí o Maguito perguntou onde eu ia estacionar o meu carro. Arrepiei:

– Pô, é mesmo cara, a gente foi no meu carro, de onde saiu essa moto?!

Bom filosofia numa hora dessas não adianta nada, a gente já estava no tal clube, o negócio era entrar logo, porque eu tinha dois problemas agora: Um: eu tava louco pra encontrar a irmã do Maguito e dar uns amassos nela; Dois: aquela idéia de misturar chope com comida de boteco árabe e um monte de charuto de repolho tava me causando uma rebordosa no baixo ventre. Avisei o Maguito:

– Vai desentocando a gata pra mim, eu tenho que achar um banheiro antes, emergência!

Mas nessa hora a Silvinha apareceu, toda bronzeadinha, com um vestidinho branco que acabava meio palmo abaixo da calcinha (era branca também!). Aí eu pirei. Dane-se o banheiro, pra que um homem tem força de vontade?

A Silvinha agarrou o Maguito pelo braço e disse:

– Você atrasado como sempre! E ainda traz um amigo junto. Oi, Heleno! Olha, entrem de fininho, o negócio do velho já começou tem um tempão, eu agüentei o que deu, tive que ficar até o fim do discurso do vovô. Você sabe como é horrível, todo ano a mesma coisa, A tal da Intentona de 35. Agora fiz sinal pro coroa que tinha que ir no banheiro. Mas vocês entrem de fininho, por favor. Se o velho saca que vocês não estavam na hora do discurso dele, vai ser o diabo! Olha, tem uma porta lateral pequena, com uma cortina, entrem meio abaixados por ali, sai no meio do auditório. Mas não façam barulho, pelo amor de Deus!

Eu estava hipnotizado pela boquinha da Silvia. As coxas bronzeadinhas... aaah. Pô, não saquei onde era a tal porta lateral. O Maguito muito menos. Mas ele me deu um empurrão e disse:

– Vamos, vamos, onde tiver uma cortina a gente entra.

A gente deu umas três voltas e nada de cortina. Lá dentro já estavam lascando um velho hino, pelo som devia vir de um daqueles discos de 78 rotações que o velho tinha, era uma chiadeira só. Por fim encontramos uma cortina, até que grande pra burro e nos enfiamos meio abaixados. Saímos no meio do palco!

A velharada toda de agitou. Era um monte de coroas com fardas militares antigas. Pensei: Ih, fedeu! Mas o coroa do Maguito até que foi legal:

– Isso são horas de chegar, meninos?!  Mas nós não podemos reclamar, afinal é lindo ver que a juventude de hoje ainda sabe respeitar e prestigiar os verdadeiros heróis como meu pai, o terceiro-sargento Argimiro Saldanha.

– Viva Argimiro Saldanha! – gritaram todos os velhos.

Perguntei baixinho pro Maguito:

– Quem foi esse cara?

– O pai do meu avô. Minha mãe disse que o velho era doidão. Quando era apresentado para as pessoas, dizia que era um herói, que tinha levado tiro durante um tal de levante. Foi um tiro na bunda. E aí, pra provar, ele arriava as calças e a cueca e mostrava a cicatriz na bunda mole e murcha. O vovô tem o maior orgulho desse seu pai herói.

– Pô, velho muito doidão... Devia cheirar umas carreiras pesadas, não...

– Sei lá. Mas olha: o coroa está chamando a gente pro meio do palco. Vamos lá.

No centro do palco havia uma coisa coberta com a bandeira do Brasil. O velho falou:

– Este ano vamos deixar que os jovens tenham o privilégio de abrir nosso relicário. Por favor, rapazes, vocês que representam o futuro heróico desta pátria amada:

E, com um só puxão, arrancou a bandeira de cima do... do CAIXÃO DE DEFUNTO!

Puta cagaço, quase me borro! Não, é verdade, a essa altura a coisa tava braba lá por baixo, minha barriga fazia barulho de cano d’água e eu comecei a suar frio. Um caixão de defunto!

O velho pegou minha mão, botou numa parte da tampa e disse:

– Você, meu jovem, vai ter a honra de abrir nosso esquife de 2013. Vamos homenagear nosso soldado desconhecido.

Na verdade ele é que abriu aquela tampa. Dentro tinha um cara morto, com farda do exército, um monte de coisa parecendo sangue na tal farda. Minha revolução intestina piorou muito. Mas o Maguito me deu um puxão e cochichou no meu ouvido:

– Se acalma, cagão! Eles fazem isso todo ano, é um MANEQUIM!

Olhei bem e senti que o sangue me voltava às faces. Mas algo continuava indócil mais embaixo. Caramba, eu tinha que correr para um banheiro já!

Com o tal esquife aberto, o velho comandou:

– Agora o momento culminante de nossa festividade. Todos em pé no auditório, vamos nos preparar para fazer um minuto de silêncio em homenagem a todos os valentes militares mortos pela Intentona Comunista de 35.

Eu fiquei impressionado e cochichei pro Maguito:

– Pô, essa Intentona era comunista é? E ela matou uns soldados?

– Comunistona. Irada! Matou  uma porrada de milico, cara. Daqui um pouco eles vão ler a lista, mais de 20, todo ano eles lêem.

– Intentona! Que nome. Acho que deve ser apelido. E eu pensando que era amiga do teu coroa, que ele andava de cacho com ela...

– Não, eles falam mal dela pra burro. Era inimiga deles. Acho que chamam de intentona por que devia ser uma baita gordona. Só não lembro como é que ela matou tanto homem sozinha.

– Ora, mano, só pode ter sido uma bomba! Vai ver ela era gente do Bin Laden.

Um olhar severo do avô nos impôs silêncio. E o velho me colocou um calhamaço de folhas na mão:

– Esta ano, nosso jovem visitante aqui vai receber a grande honra de ler a nossa lista de heróis mortos pela Intentona de 35¸ esse bárbaro atentado contra o quartel, levado a efeito pelos comunistas aqui no Rio de Janeiro, naquela trágica noite de 27 de Novembro de 1935. E agora, por favor, todos quietos, chegou nossa hora mais solene: um minuto de silêncio em homenagem aos nossos heróis mortos pela Intentona Comunista de 1935!...

E o silêncio começou. Eu estava pasmo. A tal Intentona não era uma mulher gordona terrorista, era um atentado de uns malucos contra um quartel. Tinham matado uns carinhas e...E tinha sido em mil NOVECENTOS e trinta e cinco! Caramba, mas que idade tinham aqueles matusalens ali, então?!

O pior é que, assim que acabasse o tal minuto de silêncio, eu ia ter que ler um monte de nomes com biografias. E eu estava tremendo. Cara, a coisa na minha barriga estava demais! A pressão aumentando, aumentando, aumentando. Até que de repente, no meio do maior silêncio daquelas dezenas de pessoas, a pressão encontrou o caminho da liberdade. É, foi por lá mesmo, que outro caminho existe?  Eu arregalei os olhos, me apertei todo, mas não deu pra segurar. De repente, saiu um barulhão de canhonaço das minhas entranhas, em revolta contra charutos de repolho e comida árabe com chope:

– Brrrruuummmmmmm!... – em pleno minuto de silêncio.

O Maguito caiu na maior gargalhada, se dobrava de tanto rir. A Silvinha, que tinha voltado e estava bem na fila da frente do auditório, fez a mesma coisa. Os velhos do auditório até que tentaram segurar a gargalhada, era falta de respeito com o manequim no caixão, mas... Também não deu, a gargalhada foi geral. E crescente, cada vez mais alta.

O avô do Maguito ficou vermelho, furioso, apoplético! Parecia que ia ter uma coisa. Nunca um desrespeito tão grande tinha acontecido numa cerimônia solene como essa, em seus mais de 85 anos. O velho passou a mão numa espada velha, dentro da bainha, e veio pra cima de mim, ia me desancar com bainha e tudo.

Mas mal deu dois passos e teve que recuar apavorado. O CHEIRO, camarada! O cheiro ali no meio daquele palco tava um horror. Eu também tava apavorado. Mas muito mais apavorado fiquei quando o tal manequim deu um pulo de dentro do caixão e deitou a correr para o auditório.  A coisa tava braba demais, nem manequim agüentava! Mas aí, quando o manequim sentou e começou a se abanar, conversando com os velhos da frente, é que eu vi que aquilo não era manequim coisa nenhuma, era um daqueles caras mesmo, se fingindo de morto.

A essa altura o Maguito tomou coragem, entrou na nuvem do cogumelo atômico de repolho e me agarrou pelo braço:

– Vamos se mandar, cara, que a coisa vai feder é pro teu lado já, já. A velharada vai te esfolar vivo assim que a tua proteção abaixar. Não precisei outro incentivo, saímos os dois correndo pra frente, ali em algum lugar a gente tinha deixado uma moto. Moto? Onde? E alguém lembrava? Pobre do garçom! O jeito foi sair correndo dali também, que as primeiras cabeças brancas começavam a apontar na porta do clube. Pegamos o primeiro ônibus que passava e nos mandamos. A Salvação!

Bem, só em parte. Depois de uns dois quilômetros eu tive outro acesso de liberdade em estado gasoso e os caras nos botaram pra fora do ônibus a tapa. Desceram junto todos eles, com cara de desespero. Escondidos, a gente viu que, depois de uns dez minutos o motorista, heroicamente, entrou e fez sinal pro pessoal: barra limpa!  Entraram todos e foram embora, maldizendo este seu pobre narrador aqui.

A Silvinha? Tá de gozação comigo cara? Até hoje, toda vez que eu não consigo me esconder dela, ela me olha e cai na maior gargalhada. E logo comenta com quem estiver perto dela. Maior vexame cara! Quem manda ser um ignorante em História  do Brasil?


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Nasce o Egito - 3a. parte


NASCE O EGITO – 3ª parte
MILTON MACIEL
(Baixo Nilo, 12 000 A.C.)

Altzcotl e seu companheiro Lerbetz, foram os únicos dentre os atlanteanos sobreviventes ao     grande afundamento de sua ilha-continente de Possêidia – que ficava no oceano Atlântico, muito a oeste das colunas que marcavam o começo do Mar Interno – a conseguirem se estabelecer nas terras dos egípcios. Estes, dotados de uma cultura ainda muito rústica, acreditaram que os estrangeiros fossem deuses e se entregaram totalmente à liderança deles.

Altzcotl e Lerbetz, ao longo dos primeiros dez anos, fecundaram centenas de mulheres egípcias mais de uma vez. Geraram assim uma larga descendência de filhos que herdaram a importante carga genética dos pais. O gene deles que determinava a altura, por exemplo, mostrou-se dominante e os filhos e filhas dos atlanteanos logo se revelaram crianças acentuadamente mais altas que os filhos dos egípcios, Eram também nitidamente dolicocéfalas, ao passo que as outras crianças tinham as cabeças mais arredondas. Assim ficou muito fácil distinguir as “crianças dos deuses” das outras crianças. Os atlanteanos, contudo, nunca permitiram que seus descendentes tivessem tratamento diferente dos descendentes dos egípcios e eram punidos os “filhos dos deuses” que se vangloriassem de sua superioridade ou procurassem diminuir os outros. Mas esses descendentes dos deuses revelaram, como esperavam eles, uma inteligência muito maior, o que fez com que a diferenciação fosse de estabelecendo de uma forma natural e, não, hierárquica.

Os atlanteanos introduziram a agricultura de diversos tipos de grãos, que foram selecionando através de intercâmbios com os brancos do Cáucaso e os negros dos planaltos a noroeste. Depois de cerca de um ano, chegaram a um cultivar de trigo com o qual puderam expandir as lavouras com grande grau de homogeneidade e alta produtividade. Ensinaram aos egípcios como poderiam aproveitar as cheias de seu grande rio, que era chamado de Neílos pelos nativos. Para o período seco, instituíram a irrigação, desenvolvendo equipamentos para bombear água do rio e distribuí-la ao longo de muitos quilômetros de canais e comportas.

Ensinaram também a domesticar os grandes animais de chifres que os egípcios só caçavam até então. Criados em cativeiro, esses animais passaram a formar grandes rebanhos e a primeira coisa que os atlanteanos fizeram com eles foi adestrar um grande número para puxar os estranhos implementos agrícolas que eles estavam ensinando os egípcios a fazer, com madeiras extremamente duras que negociavam com mercadores de outros lugares da África. Arados e outros implementos foram desenvolvidos e o uso da tração animal permitiu um grande salto na produção. Então os atlanteanos passaram a fazer o mesmo trabalho de seleção com árvores frutíferas, ensinando os egípcios a cultivarem seus primeiros grandes pomares. E também o linho, o cânhamo e o papiro, assim como o algodão, pouco anos depois, passaram a ser produzidos em grande escala.

Dessa forma, aquele agrupamento original do delta do Neílos cresceu extraordinariamente em poucos anos e sua região, abarrotada de alimentos de todos os tipos, vegetais e animais, com todos os seus subprodutos, como os couros, fios e tecidos, conheceu uma grande prosperidade, permitindo que existissem centenas de produtos para trocar com o que lhes traziam mercadores das mais diversas regiões da África e da Ásia.

Já nos primeiros dois anos, os atlanteanos começaram a formar seu primeiro exército. Explicaram aos pacíficos habitantes locais que, face ao enorme acúmulo de bens e de terras férteis cultivadas, de grandes rebanhos em expansão, seria fatal que atraíssem a cobiça de outros grupos e até de outros povos mais distantes, que viriam atacá-los para conquistar suas terras e posses. Como os homens já não precisavam gastar seu tempo na tarefa diária de coletar alimentos silvestres e caçar e pescar, tendo passado rapidamente de caçadores-coletores para agricultores, tinham tempo de sobra para serem treinados fisicamente e adestrados no manejo das novas armas que os deuses lhes ensinaram a fazer. Destas, sem dúvida, a mais importante foi o novo e elaborado arco, de enorme alcance e precisão, com o que a flechas se tornaram efetivamente uma barreira mortal para o avanço dos primeiros e mal-sucedidos invasores.

Outro grande avanço que os atlanteanos implantaram foi a sistema de casas individuais. Até então os egípcios originais viviam em grandes habitações coletivas, erguidas com adobe precário, e recobertas com o mesmo material reforçado por grandes traves de madeira. Sobre esse forro plano viviam homens e mulheres a maior  parte do dia, quando não estavam no trabalho de coletar e caçar. Ali cozinhavam, comiam, lavavam sua rudes vestes, tinham sua vida social diária. Na parte de baixo ficavam os grandes quartos coletivos e dezenas de pessoas dormiam ali em grande confusão e promiscuidade, sem privacidade alguma.

Os “deuses” impuseram uma nova norma. Os casais e as famílias deveriam construir casas individuais, de adobe agora muito melhorado pela adição de palhas e dejetos de bovinos, moldados em formas. E casas com bom distanciamento entre elas, seguindo desenhos geométricos que geraram as primeiras ruas de sua incipiente cidade, a qual se espalhou velozmente na horizontal por causa disso.

Naqueles primeiros dois anos pioneiros, os mais difíceis de todos, os atlanteanos ensinaram os egípcios a construir canoas eficientes, inclusive algumas enormes para duas dezenas de remadores, que embarcavam levando seus mortíferos conjuntos de arco e flechas e se tornaram, assim, a primeira “frota” de combate do Neílos. Mas o trabalho principal foi o de ensinar a construção e o uso dos primeiros veleiros. De início apenas canoas um pouco melhoradas, com o passar dos anos foram crescendo de tamanho e permitiram que tripulações de até 50 homens embarcassem para viagens pelo Mar Interno. Numa dessa expedições de exploração, chefiada por Altzcotl, chegaram a uma enorme ilha ao norte, onde o atlanteano descobriu, encantado, grandes aflorações de minério de cobre, de facílima extração. Encheu o barco até quase o limite de sua capacidade de carga com esse minério e ao chegar, deixou Lerbetz louco de entusiasmo.

Fizeram rapidamente fornos para produzir carvão vegetal, coisa desconhecida pelos egípcios. E, com couro e madeira, improvisaram foles e forja. E no fim do segundo dia, viram, emocionados, correr o líquido avermelhado que viria mudar tudo para eles: ali estava, com alto grau de pureza, a primeira corrida de cobre que produziam. Moldes precisos de argila finíssima foram feitos e os mais diversos objetos começaram a ser moldados. A começar, obviamente, por pontas de flechas e de lanças, espadas e lâminas para revestimento dos escudos. As mesmas lâminas, à medida que uma equipe de artesãos aprendia a lidar com elas, batendo facilmente o metal dútil e maleável, serviram para que fossem feitas as primeiras armaduras para proteção dos peitos e das costas dos guerreiros. Com isso o forte exército do delta tornou-se simplesmente invencível.

Evidentemente, com a disponibilidade de um metal, tudo mudou. Começou o que seria a Idade do Cobre para o Egito. Os grandes barcos passaram a fazer semanalmente a rota entre o delta e a grande Ilha do Cobre (Chipre, hoje em dia, nome que quer dizer exatamente cobre) e a metalurgia do cobre revolucionou toda a economia e a própria agricultura cultura. Arados, ferramentas e implementos agrícolas passaram a ser feitos de metal. Agora sim, os atlanteanos viram enfim a possibilidade de darem um salto de gigante rumo a uma nova civilização. As crianças aprendiam facilmente a ler e escrever, usando o alfabeto de Atlântida, de 26 letras. O progresso viria agora a passos de gigante.

– Precisamos agora ter a felicidade de encontrar algum minério de estanho, para fazer bronze em liga com este cobre. Nossas armas e objetos em geral ficarão muito mais resistentes e duradouros.

– Sim, Lerbetz. E, se um dia acharmos ouro e chumbo, então poderemos fazer com eles e o cobre nosso mais precioso metal atlanteano, o oricalco, com o qual tudo se pode construir.

– Ah, o oricalco! A civilização. A tecnologia. As máquinas... Quanto disso nos será dado ver ainda em vida, Altzcotl?

Quando chegaram à adolescência, centenas de filhas do deus Altzcotl passaram a exigir seus direitos sagrados de terem filhos com o  deus Lerbetz. E as deste, os de terem filhos com o deus Altzcotl. Assim, ao cabo dos primeiros vinte anos, foi completada a grande experiência de aprimoramento genético da população original. Poderiam parar naquele ponto e deixar que o cruzamento normal entre seus descendentes e entre estes e os descendentes dos egípcios originais se encarregaria, ao longo das décadas seguintes, de definir naturalmente um padrão homogêneo de população, muito mais apta física e intelectualmente.

E assim, a partir do grande delta do Neílos, por ação dos dois “deuses” atlanteanos, começou a nascer o novo Egito.