segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

DE FRANÇA E BRASIL  
MILTON  MACIEL 
Vol I: JOÃO RAMALHO, cap. 1
VAI, JOÃO, VAI CONQUISTAR O BRASIL!

VOUZELA, Portugal, 1512:
– Não vais, não vais e não vais! Está decidido! Eu sou tua mãe e tu me deves obediência. Não vais! Eu não to permitirei ou não me chamo Catarina Afonso de Balbode. E não se fala mais nisso!

Catarina de Balbode estava realmente furiosa. Ora, ir-se o seu filhote para Lisboa! Aquele filho era mesmo cabeçudo como o pai. Na certa, se ela deixasse, iria meter os pés pelas mãos. Ah, que dois gajos mais parecidos aqueles! Não havia dois mais parecidos em Portugal, não podia haver! Tinha-se-lhes que trazer de rédea curta.

O marido, o velho João Vieira de Maldonado, até que tinha aprendido a se comportar, com o passar dos anos. Dera-lhe muito trabalho, é verdade. Mais moço, era dado a correr atrás das cachopas e a enrabichar-se por elas. Não que Catarina se importasse, os homens eram todos iguais, conhecia-se um, conhecia-se todos. João Maldonado não era nem um pouco diferente daquele bode velho sempre no cio – seu pai, Joaquim Balbode, que tantos bastardos tinha espalhado pelos arredores todos de Vouzela.

Já temendo por isso num filho tão parecido com o pai – e que, ainda por cima, poderia sair ao avô mulherengo – decidira casá-lo bem moço com uma rapariga séria e de boa família. E, acima de tudo, de cuja virgindade ninguém duvidasse por ali. Ora, essa Catarina Fernandes, baixota e gorducha, com um belo buço preto maior que o da própria futura sogra, de respeitável cara feia também, não era exatamente o sonho dos rapazes do lugar. Muito menos de João Maldonado Filho. A penúltima coisa que um rapaz podia querer era casar aos dezoito anos. A última, é que fosse com Catarina Fernandes.

Mas acabou tendo que casar. Quando Catarina Afonso de Balbode botava uma coisa na cabeça, não havia cristo que pudesse tirar. Pressionou o marido e o filho por mais de seis meses. Por fim recorreu ao velho artifício de sempre: as pontadas! Caiu de cama com as célebres pontadas no coração, tão fortes que, às vezes, ela chegava a se enganar de lado, acusando-as do lado direito do peito. Queixava-se em altos brados, para que toda a vizinhança pudesse ouvir:

– Ai, que me morro! Que me morro! Mata-me este filho ingrato. Vou-me desta sem ter o gosto de segurar um netinho ao colo. Ai, que morro de pesar!

E redobrava os gritos, os ais, os gemidos. O velho Maldonado, por mais que soubesse que aquilo era manha, era teatro, acabava cedendo. Uma, porque não suportava escândalos e gritarias. Outra porque, por mais que desacreditasse das cenas de Catarina, acabava sempre ficando na dúvida: E se dessa vez fosse verdade? E se a mulher morresse mesmo, se o ataque desta vez fosse verdadeiro? Sempre havia uma primeira vez. E o pobre João Maldonado acabava cedendo.

Quando a pressão do pai veio somar-se à da mãe, já por si irresistível, João Maldonado Filho capitulou. Estava bem, casava-se com aquela moça sem graça, pela qual não sentia nada, absolutamente nada. Ao menos, também não lhe tinha antipatia. E quando soube o valor do dote da moça, ficou entusiasmadíssimo. Valia a pena, sem dúvida. Deitava-se com a rapariga, fazia-lhe o filho que a mãe tanto queria para neto e ficava livre. Inventava uma viagem ou um trabalho bem longe, em Lisboa, se conseguisse. E aí ia ficando por lá, gozando a vida.

A vida de casado não caiu nada bem ao rapaz. Não só perdeu sua liberdade de ir e vir à hora que quisesse, como também ganhou uma segunda Catarina em tudo igual à primeira. A esposa era uma cópia fiel de Catarina Balbode. Sempre de cara fechada, sempre reclamando de algo, sempre achando defeitos para colocar em tudo e em todos. E mandona! Mandona como a Catarina velha! Que desastre, onde fora amarrar seu burro!

Na cama era uma verdadeira negação. Não no sentido de que se negasse. Mas não participava de nada. Era como um pedaço de pau. Logo o rapaz perdeu o pouco de desejo que, nessa idade, um homem sente até por buraco de fechadura. Foi parando de procurá-la e ela nunca se queixou disso. Talvez por isso, ou talvez por outra causa, nunca tinha engravidado. A velha Catarina vivia atormentando o filho por esse motivo:

– Me sais um frouxo, nem trepar em cima de uma mulher sabes, para emprenhá-la. Que negação me saíste, ó gajo incapaz! Me fazes morrer sem ter um neto. Me fazes morrer. Aí, as pontadas!

Num dia de sábado, em que as duas mulheres foram cedo para a missa das seis, pai e filho tiveram um conversa decisiva.

– Meu pai, dize-me tu, como aguentas viver com uma esposa como essa, por todos esses anos? Eu estou começando a ver as mesmas coisas na minha e já não suporto mais. Decidi: vou-me embora de Vouzela!

– Ah, pois que estás certo, meu filho. Teu pai te compreende e te diz: vai-te logo enquanto é tempo. Se ficares tempo demais, como eu fiquei, acabas te acostumando e nunca mais consegues te libertar.

– Ora, meu pai, cá me vejo eu surpreso! Não pensei que me apoiasses nisso. Achei que considerarias loucura minha.

– Loucura será se, podendo partir, ficares. Aproveita que és jovem e forte, já vais fazer dezenove anos e já tens essa barba ramalhuda, toda crespa e esparramada.  Ela te faz parecer mais velho do que és, ajuda a impor respeito à tua figura.

 – Isso é verdade, meu pai. Há uns gajos, lá na Quinta, que, para diferenciar-me de meu pai, porque somos os dois João Maldonado, estão a chamar-me de João Ramalhudo. E uma cachopinha, filha do tanoeiro, a quem ando dando uns apertos lá no meio das oliveiras, chama-me agora Joãozinho Ramalho.

– Ora, ora, isso é divertido, mas até que te vai bem. João Ramalhudo. Ou João Ramalho, fica até melhor. Um nome novo para uma vida nova! Não está mal, não está mal. Mas dize-me tu, como e quando pretendes partir?

– Espero meu aniversário de dezenove anos, no mês que vem. E aí vou-me a pretexto de que consegui um grande emprego em Lisboa. Meu amigo Pedro Farias irá apresentar uma carta de um tio seu, que vive na capital, propondo-nos trabalho com uma paga muito elevada. É mentira, é claro. Mas a carta é verdadeira, já a recebemos pelo mensageiro. De qualquer forma, é na casa desse tio de Pedro Farias que iremos ficar nos primeiros tempos. Até que eu possa embarcar como grumete num navio que parta para as novas terras que Pedro Álvares Cabral descobriu para nós, as terras onde há o pau vermelho que vale como ouro para os que tingem tecidos, o pau-brasil.

– Ah, com que então estás de olho nas riquezas da nova colônia, hein, malandrote! Pois fazes muito bem, tivesse eu tua idade e coragem, ia-me embora para essas terras de futuro também. Mas dize-me, como te vais arranjar em Lisboa? Com que dinheiro vais viver e comer, até que arranjes lugar num navio?

– Ah, meu pai, andei escondendo algumas moedas de Catarina, vou vender meu cavalo e os arreios e me arranjo com isso. Não preciso comer todos os dias, estou bem forte e lustroso, posso agüentar um pouco de fome, a causa é nobre.

– Não, não! Não criei filho meu para passar fome. Fica tranquilo, teu pai te ajudará. Tenho também muitas moedas e outros valores, que venho escondendo da Catarina tua mãe também, desde muito tempo. Sabes, sempre alimentei a esperança de que um dia eu teria coragem de dizer adeus a essa tua mãe e aventurar-me pelo mundo. Para isso fui ocultando algumas posses. Mas o tempo pegou-me, a saúde das juntas também, enferrujei de corpo e de alma. Mas agora, ao saber da tua aventura, tu me enches de novo ânimo e entusiasmo. Já estou velho demais para escapar-me daqui, mas viverei a tua empreitada como se fosse minha. E esse dinheiro que guardei para minha fuga do cativeiro, dou-to todo a ti.

– Meu pai, quanta generosidade! Vais me fazer um grande bem. Mas não é justo que gastes todo teu patrimônio comigo. Dá-me menos, haverei eu de arranjar-me, já ia fazê-lo com uns poucos trocados mesmo.

– És um bom menino, meu João Ramalho. Sempre foste muito amigo de teu pai. Pois agora é a hora de teu pai mostrar que é teu grande amigo. Vamo-nos à casa, enquanto aquelas duas carolas bigodudas não chegam. Vou abrir um bom vinho, que tenho escondido também, e vou mostrar-te – ou melhor, já vou dar-te – o dinheiro que vai garantir o sucesso de tua aventura. Vem, vamo-nos já.

Dois meses tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João filho. Ou João Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e arreganhada!

Pois agora Catarina-mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:

– Ah, mais tu não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te consideras um homem capaz de desobedecer teu pai?

– Mas meu pai nunca que me disse para eu não partir para Lisboa! Ele sabe que é uma oportunidade de ouro para mim.

– Ora, não disse porque é um frouxo igual a ti! Vocês são dois gajos que não têm coragem de nada. E, muito menos, terão coragem de me desobedecer. João, ó João, onde estás, infeliz? Onde estás que não vens dar uns tabefes na cara desse teu ramalhudo de meia-tigela.  E olha que, se tu não dás, acabo-os dando eu mesma, sim senhor!

E Catarina mãe arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na cabeça do filho, que se retirou rindo. Passou por Catarina-esposa, que assistia a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.

João voltou-se para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo, sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho:

– Até nunca mais, sua rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus bigodes!

Minutos depois estava com o pai e com Pedro Farias na bodega de Aristides Manco. O pai já tinha trazido mais cedo a pequena trouxa do filho, sem que as Catarinas o tivessem percebido. Pedro Farias já estava com a sua também. A despedida foi rápida e cheia de emoção, mas os dois Joãos souberam disfarçá-la. Dando um longo e apertado abraço no filho, João Vieira de Maldonado despediu-se com lágrimas fugazes nos olhos e falou-lhe, quase ao ouvido:

– Vai, meu filho. Sei que nunca mais meus olhos haverão de te ver. Mas tu hás de desbravar as novas terras para ti. Vai, cumpre teu destino, conquista esses Brasis e faz-te um homem rico e importante. Eu sei que tu podes, tu hás de triunfar!

No minuto final, ainda tirou do dedo seu anel de família e o colocou no dedo do filho. Depois, dando-lhe um puxão na barba arrepiada, falou pela última vez:

– Vai-te, João Ramalho, vai conquistar o Brasil!

E, dando as costas aos dois rapazes, afundou-se para a parte de trás da bodega, onde podia chorar sem ser percebido pelos outros homens.

João Maldonado filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima, surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois consigo mesma:

– Adeus, João Ramalho, vai com Deus.

Tinha lágrimas nos olhos e apoiava as duas mãos sobre o ventre. Ali dentro, em segredo, começava a crescer o primeiro dos inúmeros descendentes de João Ramalho – o único do Velho Mundo.


Era o ano da graça de 1512.

Nenhum comentário:

Postar um comentário