quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO ROMANCE
(do Curso de Formação de Escritores Auto-editores O ESCRITOR PUBLICÁVEL)
MILTON MACIEL

Parte III - OS PERSONAGENS EM JORGE AMADO

Começo este bloco transcrevendo um pequeno texto, extraído de uma entrevista que Jorge deu, em Junho de 1981, a Roberto Espinosa, do Literatura Comentada:

R.E  – Quer dizer que você começa tentando apreender a pessoa no personagem e acaba prisioneiro do personagem?

J.A.  – O PERSONAGEM É QUEM FAZ O ROMANCE! Quando é o autor que faz o romance, o romance não presta. Pelo menos no meu caso. Sou incapaz de contar uma história.

Zélia, minha mulher, senta aí com os netos e inventa as histórias mais maravilhosas. Eu fico fascinado, sou completamente incapaz de inventar histórias. Quando vou para máquina de escrever, tenho na cabeça os personagens, os ambientes, as ideias... Tanto que o começo de qualquer livro é sempre extremamente difícil para mim.

E isso dura até que eu coloco de pé, ou seja, até que os personagens começam a se colocar de pé. Aí eles vão e constroem, eles próprios, a sua história. E eles não só constroem, como às vezes se recusam a fazer o que eu quero.

R.R. – Dê um exemplo.

J.A. – Bem, certa vez eu estava ali na máquina, escrevendo o final do livro “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Minha sobrinha Janaína me perguntou “como é que vai terminar o livro, meu tio?”

Eu respondi: Como eu estou vendo a coisa, ela vai se entregar ao Vadinho, mas como é muito marcada por esse preconceito todo, é uma pequeno-burguesa cheia de preconceitos, vai ficar desesperada. E, como ela já fez o ebó para ele ir embora, no momento em que ele for... ela vai com ele! Eu penso assim, uma coisa meio poética, os dois desaparecendo, o outro marido entrando e vendo ela morta na cama.

No dia seguinte, revi a cena e fui continuar. O que aconteceu então? Depois que Vadinho fez amor com ela e foi embora, o marido entra no quarto, possui Dona Flor e ela acha ótimo! Então ELA, e não eu, resolveu ficar com os dois. Eu não esperava que Dona Flor fosse capaz de romper aqueles preconceitos todos. Mas o amor é muito forte, você sabe, e quando são dois amores, fica mais forte ainda. Dona Flor impôs o fim do livro.

Toda vez que o personagem está conduzindo o livro, você sabe que o livro está andando. E, toda vez que o personagem reage contra qualquer coisa, é você que está errado.


COMENTÁRIOS: Escolhi este pequeno trecho de entrevista para demonstrar uma grande realidade. Nós, escritores, escrevemos muito mais com o nosso inconsciente do que com nosso consciente. Nós fazemos um delineamento, imaginamos um enredo, cenários, épocas e então esbarramos no que há de mais importante num romance: os personagens. É ao redor deles que tudo gira. A importantíssima arte do diálogo em ficção só faz sentido a partir dos personagens que dialogam. Ou seja, como muito bem disse Jorge Amado, O PERSONAGEM É QUEM FAZ O ROMANCE.

A mesma coisa acontece, obviamente, comigo. Em meu romance “LOLITA DE ARACAJU, A Mais Jovem Dona de Bordel do Mundo”, minha personagem principal, a protagonista, é uma garota paulista de 16 anos hiper sexuada, que engana o amante de 51 anos com vários surfistas na Praia do Francês, em Alagoas. Até que um deles, um carioca bom de bico, a convence a fugir com ele para o Rio, onde, garante ele, ela poderá se tornar uma grande artista. Uma grande artista do sexo, essa é a ideia oculta do rapaz, que é um cafetão com várias meninas se virando para ele na Lapa. A garota rouba 15 mil dólares que o amante tem escondidos, mas, ao chegarem em Aracaju, o surfista  cafetão descobre e rouba esse dinheiro, abandonando-a à própria sorte em Sergipe.

Mas, a partir daí, a história toma um rumo totalmente diferente daquele que eu tinha planejado. Minha outline dançou solenemente! “Adotada” pela arrumadeira do hotel, antiga gerente do melhor castelo de mulheres de Aracaju, Lolita se transforma. Ela começa a ver em sonhos a falecida dona do bordel, a francesa Madame Lammounier, e desabrocha então todo um lado de espiritualidade e sensitividade que ela não imaginava poder possuir. A personagem passa a construir, capítulo a capítulo, uma trajetória que vai transformá-la na dona de um castelo de altíssimo nível, em sociedade com a ex-gerente. E ela faz com que toda a enorme renda desse bordel venha a ser usada para combater a prostituição de crianças, retirando das ruas e estradas as meninas forçadas à prostituição e impedindo que elas tenham que seguir vendendo seus corpos. E combatendo, a ferro e fogo, os cafetões e traficantes de drogas, que exploram essas crianças.

Na verdade, o catalisador da transformação de Lolita é a baiana Zezé, de 50 anos, a arrumadeira do hotel e ex-gerente do castelo da francesa, que ao surgir na história de uma forma secundária e quase adventícia, assume proporções gigantescas na trama, pois é ela que traz, em si, o conhecimento do ramo e a capacidade de administrar a casa. No fim , graças à interação entre essas duas personagens é que eu consegui misturar um pouco de erotismo e muitíssimo humor para fazer o que, isso sim, era meu projeto chave desde o começo: criar uma isca que atrai os leitores, em especial os homens, para um assunto que, pelo geral, eles não querem ver nem pintado de ouro. Tanto que, no Brasil, os pouquíssimos livros que foram escritos sobre prostituição infantil tiveram péssimo desempenho nas livrarias, exceção feita ao velho livro-reportagem de Gilberto Dimenstein, de 1993, o Meninas da Noite.

Já em “O CERCO, que publiquei em 2013, estou engessado pela realidade. Trata-se de um romance histórico, que retrata o avanço dos hunos de Átila e seus aliados pela Gália, em 451 A D. Os locais são reais, as grandes batalhas decisivas são reais, os cenários também. No entanto, uma futura rainha dos francos, Vérica, tem fraco delineamento histórico, sabe-se pouco mais do que o seu provável nome e que casou com o rei dos francos salianos, Merovech, mesmo este de existência parcamente documentada.

Ora, personagens assim controversos são um prato cheio, o campo ideal para a atuação do romancista histórico. Já que a história tão pouco sabe deles, o romancista concede-se a “licença histórica” e romanceia os personagens à vontade. Merovech vira Meroveu em português, sua esposa é Vérica e deles sairá a dinastia dos francos merovíngios, que vai unificar todos os francos no futuro imediato e dar origem a uma grande nação moderna: a França.

No romance aparece uma cidadela fictícia, sob o cerco de uma brigada huna, uma fortaleza defendida por esse rei Meroveu e apenas 540 soldados, bem no epicentro da tormenta, onde vai se travar, dias depois, a grande batalha final, verídica, a Batalha dos Campos Catalaúnicos, onde se decide o destino de toda a Europa, em junho de 451 AD. O lugar abriga hoje a cidade francesa de Châlons-en-Champagne.

Pois eu passo a solução de todos os problemas logísticos e bélicos à competente gestão de três sacerdotisas celtas imaginárias, que por terem a Visão e servirem à Deusa – e por serem, todas elas, grandes guerreiras também – estabelecem as estratégias para que os francos de Meroveu, os romanos de Flávio Aécio, os visigodos de Teodorico I, os Alanos de Sangiban e os burgúndios de Gordioc (todos eles personagens históricos reais) possam enfrentar os hunos, alamanos, ostrogodos e gépides.

As sacerdotisas são avó, mãe e filha. Esta filha, eu fiz a ser a Vérica dos francos. Elas têm 43, 29 e 17 anos. Tem exatamente o mesmo físico, são ruivas, altas, fortes e belas, parecem irmãs gêmeas.

Pois a sumo-sacerdotisa Kina, a sábia, era a minha protagonista. A filha desta, a grã-sacerdotisa Alana, exímia cavaleira, mãe de Vérica, seria a segunda em importância. Não aguentaram nem 9 dos 45 capítulos do livro. A jovem aprendiz de sacerdotisa, Vérica, simplesmente tomou a história em sua mãos de fantástica arqueira. Cresceu em importância, em temperamento, audácia, coragem, sinceridade, perícia. Conduziu sua própria iniciação sexual usando o rei franco como seu pseudo gamo-rei celta, depois fez gato e sapato com ele, morto de paixão. E seduziu também a mim, que passei a ser seu admirador incondicional. Me fez rir e me fez chorar inúmeras vezes

Foi só quando estava chegando perto do final que eu percebi qual era o propósito inconsciente dessa substituição de protagonistas: dar continuidade à história, permitindo a produção de uma trilogia, montada com base num roteiro cinematográfico. Ora, a continuidade só podia se dar através de Vérica, por que é ela que vai, poucos anos depois de 451 A D, se tornar a rainha dos francos salianos.

Só que eu tinha uma janela histórica real de três anos entre a batalha final contra os hunos e o casamento real de Meroveu com Vérica. Então aproveitei para levar as três sacerdotisas de volta para a Bretanha (azar de Meroveu, ele que espere!), onde se desenrola o segundo volume da série, todo ele girando somente em torno das tradições celtas druídicas, da importância das mulheres nessas comunidades e dos combates finais dos celtas e bretões contra os romanos que são forçados abandonar a Bretanha. É, inclusive, quando Vérica tem enfim um gamo-rei autenticamente celta e pode, assim, conceber e dar à Deusa uma menina, que será a sua sucessora na ordem sacerdotal. A menina será entregue os cuidados da nova avó, Alana, quando Vérica tiver que deixar as terras celtas da Bretanha para assumir seu papel histórico de criadora da futura França moderna.   O terceiro volume, evidentemente, se dá em solo franco saliano, no que hoje é a Bélgica, e vai até a unificação de todos os francos sob o comando de Clóvis, exatamente o neto (real) de Vérica e Meroveu, e o nascimento da França.

“O Cerco”, que no livro impresso tem 420 páginas, foi criado em 43 dias, escrevendo e postando um capítulo (8 a 12 páginas) por dia no meu blog Milton Maciel Escritor. Nesse curto intervalo de tempo, a principiante Vérica tomou a história das minhas mãos e fez exatamente o que tinha que fazer. Do meu jeito inicial, ia sair bobagem. Que a Grande Deusa a recompense e abençoe, sacerdotisa Vérica.



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