sábado, 11 de janeiro de 2014

DRA. FUMIKO  
MILTON MACIEL

TÓKIO

Quando recebeu o chamado urgente da mãe, Helena levou um susto. Estava em Nagoya, terminando seu estágio no laboratório de biologia molecular da Universidade, parte fundamental de seu doutorado já concluído. Voou para Tókio no dia seguinte, aflita. No hospital, falando com ela, ficou sabendo da gravidade da situação e da seriedade da cirurgia de emergência. Tiveram menos de uma hora para conversar, antes que os enfermeiros viessem levar a paciente para o centro cirúrgico. Durante a conversa, o que a mãe lhe revelou foi estarrecedor.

– Minha filha, o que eu vou contar para você agora é muito grave. Ouça com paciência, até o fim, antes de julgar sua mãe. É um terrível segredo que você não conhece.

– Credo, mãe! Assim você me assusta.

– Tenho que falar rápido, daqui a pouco vêm me buscar para a cirurgia. E você sabe que eu vou ter um longo, longo pós-operatório, com resultados finais ainda não definíveis. Isso eu já lhe expliquei com detalhes há pouco, como médica que sou. Por isso eu preciso lhe falar tudo agora, falar toda a verdade.

Um arrepio mostrou a Helena que seu nervosismo crescia:

– Fale, mãe. Seja o que for, fale tudo, por favor!

– Bem, filha, quando eu saí correndo de Bastos, a história foi a seguinte: eu tive um amante, um outro médico e traí seu pai com ele. E fiquei grávida desse amante. Então resolvi contar tudo e enfrentar as consequências. Eu queria o divórcio. Mas seu pai ficou possesso, saiu com um revólver escondido, deu dois tiros no rival e o matou. E fugiu para o Paraguai. Ele não morreu como eu lhe contei. Está vivo.

Helena sentiu uma bola embrulhando seu estômago:

– Meu pai está vivo?! E matou um homem?! Mas por que você me falou que ele tinha morrido, mãe?

– Bem, filha, a coisa é muito mais terrível ainda. Eu fugi aqui para o Japão por duas razões: uma, por causa do seu pai, que me jurou de morte e jurou que ia matar também a criança que ia nascer. E fugi também para aliviar meu pobre pai. Ele era um homem à antiga, seguindo aqueles preceitos rígidos da moral japonesa. E era um líder respeitadíssimo na comunidade. Imagine como ele ficou arrasado, quando uma filha dele provocou todo aquele escândalo, arranjando uma gravidez fora do matrimônio e sendo pivô de um crime passional. Isso acabou com ele. Ele se retirou de todo convívio social, isolou-se naquela granja enorme, recusou-se a receber visita até dos amigos mais íntimos. E eu entendi que, naquele dia da desgraça, eu tinha morrido para ele.

– Ele lhe disse isso, mãe?

– Não. Mas ele me olhou com um olhar de uma mágoa tão profunda, de um horror tão imenso, que eu senti que era isso o que tinha acontecido. No mesmo dia fiz nossas malas, chamei um taxi e corri para Bauru, onde fiquei uma noite na casa de uma colega. Ela providenciou as passagens para mim, eu já tinha viajado com você ao Japão uma vez, nós tínhamos os documentos todos em ordem. Na noite do dia seguinte nós embarcamos de Guarulhos aqui para Tókio. Eu tinha umas boas reservas, deu para segurar a vida aqui nos primeiros meses, até eu começar a trabalhar.

– E o meu pai, mãe?

– A família do médico que ele matou era influente. Pagaram gente da polícia, botaram detetive particular, acharam seu pai no Paraguai. Imagine, ele estava de passagem comprada para Tókio, tinha nos descoberto aqui, vinha para cumprir o que prometeu.

– Meu Deus, quanto ódio! Ele vinha para matar uma criança inocente?

­– Sim, ele admitiu no julgamento.

– Julgamento?

– Sim, os homens o sequestraram no Paraguai e o entregaram à polícia em Bastos. Aí ele foi a julgamento em Tupã, que é a sede da comarca. E foi condenado a 25 anos de prisão.

– 25 anos? E não saiu antes, por bom comportamento?

– Não. Anos depois ele matou outro homem numa briga na prisão, pegou uma nova condenação, ainda está lá, em Presidente Prudente.

Helena sentiu uma vertigem. Jogou-se na poltrona do quarto de hospital e percebeu o coração disparar. Com que então o pai que ela havia cultuado, em sua infância, como um herói, um bravo que tinha morrido ao tentar salvar uma família de um assalto em São Paulo, como a mãe lhe contara, estava bem vivo e era apenas um reles assassino. Um duplo assassino! Então lembrou-se de uma pergunta crucial:

– E a criança, mãe? Meu irmão ou irmã. O que aconteceu com ela?

– Ah, eu perdi a criança, filha. Já vim muito mal durante o vôo de São Paulo para cá, eu sou médica, sabia que estava perdendo a criança. Foi emoção demais, desgraça demais, meu organismo não aguentou...

–Pobre mãe! Que horror o que você passou. E parece que a mesma coisa aconteceu com meus avós, porque eles morreram logo depois. Morreram os dois de desgosto e de vergonha?

– Sua avó morreu dois anos depois, mas eu não sei a causa. Foi então que eu tive, mais do que nunca, a certeza que eu é que tinha morrido. Morrido para eles, entende? Eles tinham como me localizar por telefone e correio. Nunca o fizeram. Quando eu fui informada da morte de minha mãe, fiquei tão perturbada pela rejeição deles que resolvi me vingar. Quer dizer, na hora eu pensei que era isso. Então matei o meu pai também, na minha cabeça. E menti para você que ele também tinha morrido. Afinal, ele nunca iria entrar em contato comigo mesmo. O pior, o que eu não aceitava, é que ele não se importasse com você, a única neta dele, que não tinha culpa nenhuma pelas cabeçadas da mãe dela.

– Uau! Meu avô não morreu, mãe?! Nem depois? Está vivo até hoje?

– Está, sim, minha filha. E é só por isso que eu resolvi lhe contar tudo hoje. Pois pode ser que eu é que venha a morrer antes dele. Então eu quero lhe pedir uma coisa...

– Peça, mãe. Seja o que for.

– Eu quero lhe pedir que você vá ao Brasil e procure o seu avô. Independente do que acontecer comigo hoje, sobreviva eu ou não. Eu sei que ele está mal, teve derrame ou está com Alzheimer, não sei ao certo. Isso já faz tempo. E ele está com 77 anos agora.

– Ainda em Bastos?

– Na mesma granja onde você cresceu, minha filha. Mesma casa, que é ao lado da que foi a nossa, a casa da sua infância.

– Meus mortos são mortos-vivos, Santo Deus! Um pai vivo num presídio em Presidente Prudente. Um avô vivo em Bastos, na mesma granja de sempre. É demais...

­– Eu sei, minha filha, é muito peso para os seus 24 aninhos. Mas procure entender a sua mãe. Eu quero que você tente conversar com o seu avô, ver se ele pode reconhecer você ainda, se está lúcido o suficiente. E, se estiver, esta é a razão principal de sua viagem, filha...

– O que, mãe?

– Se ele puder entender quem é você, filha, eu peço que você leve a ele o meu pedido de perdão. Eu nunca pude fazer isso pessoalmente. Eu sei o quanto eu o magoei, não tanto pelo que eu fiz, que foi amar profundamente outro homem, mas pelas consequências que isso trouxe para ele na comunidade. Ele era um homem antigo, não pôde tolerar. Diga que eu compreendo sua reação, que eu também tentei matá-lo dentro de mim. E diga que eu não consegui. Não consegui, eu continuei e continuo a amá-lo de todo o meu coração, mesmo não aceitando o que ele fez com você, sua neta inocente. Mesmo sabendo que, embora eu possa aceitar suas razões até para essa crueldade, ele nunca vai aceitar as minhas para minha loucura de amor.

– E quem era esse outro médico que morreu nas mãos do meu pai assassino?

– Ah, filha, disso eu não quero falar agora. Eu não posso! Mas não se preocupe, eu deixei tudo o que lhe falei e também as informações sobre o grande amor da minha vida em uma carta para você. Se eu morrer, uma pessoa amiga vai lhe procurar com essa carta. Se eu não morrer, prometo que conto tudo eu mesma. Mas agora eu tenho medo de me emocionar demais falando dessa pessoa e isso vai prejudicar a minha cirurgia.

– Está bem, mãe. Você não vai morrer coisa nenhuma, vai dar tudo certo com sua operação. E eu vou fazer tudo o que você me pediu. Assim que eu tiver certeza que você está bem, eu vôo pra o Brasil e vou procurar meu avô em Bastos.

– Não, minha filha, eu quero que você viaje AMANHÃ!

– Amanhã, mãe??! Mas isso é absurdo! Como é que eu vou viajar e deixar você aqui, sem saber o que vai lhe acontecer.

– Minha filha, eu sou médica. E sou uma excelente médica, você sabe. O que vai acontecer depois dessa cirurgia é que eu vou pegar várias semanas de UTI. Se eu morrer, não vai ser na primeira semana, nunca aconteceu em casos assim. Se eu não aguentar, então vai chegar o dia que os meus colegas vão explicar tudo para você e você é que vai dar a eles autorização para desligarem os aparelhos. E eu lhe suplico que você faça isso, se chegar a hora, não tente me segurar em um vida vegetativa. Você tem que me prometer isso também.

Helena sentiu uma profunda tristeza, era a primeira vez que percebia que sua mãe estava como que se despedindo dela.

– Mãe, por favor, não me deixe sozinha neste mundo, mãe! Tem sido sempre nós duas, só nós duas, e você é tão moça ainda, só 46 anos. Você tem que me prometer isso, mãe. Você também tem uma coisa pra me prometer: Prometa que vai viver.

Dra. Silvana, sempre tão controlada, sentiu um estremecimento de emoção e passou a mão levemente pelos cabelos lisos da filha:

– Ah, minha menina... Eu prometo que vou lutar dez vezes mais para resistir a tudo isso. Mas você vai me prometer, agora, que parte para o Brasil amanhã mesmo. O Dr. Kanashiro já ficou encarregado de lhe remeter um boletim diário por Internet, sobre o meu estado. Vá, a viagem é longa, mas em uma semana você vai e volta e, quando chegar aqui de novo, os colegas ainda vão estar lutando para saber se eu sou ainda sou uma médica ou se já sou um repolho vegetando.

– Ai, mãe, que horror! Não fale assim... Mas tem outra coisa, como é que eu vou resolver todas as coisas e ir para o Brasil amanhã? Não dá tempo, mãe.

– Dá tempo sim, filha. Abra a minha bolsa aqui e você vai encontrar as passagens e os dólares. E sua mãe já conversou com seus orientadores de doutorado de Nagoya. Falei hoje de manhã com eles e eles vão facilitar tudo para você.

Naquele momento uma batida delicada na porta anunciou que os enfermeiros haviam chegado. Helena sentiu pânico, abraçou-e a mãe a não conseguiu mais aguentar: caiu no choro. Silvana ficou firme:

– Mocinha, eu acho que você é que tinha que estar me dando força. E não o contrário. Vá, vá, vá se preparar, saia já deste hospital. Ligue para o Dr. Kanashiro daqui a pelo menos seis horas. Se ele lhe disser que o repolho já subiu para a UTI, então pode se aprontar para a sua viagem amanhã. Até você voltar, não terá acontecido nada de novo comigo, pode ter certeza, ainda estarei dormindo em coma induzido.

Uma enfermeira delicada e sorridente aplicou um sedativo na veia da Dra. Silvana que, minutos depois, perdeu a consciência parcialmente. Num último gesto, de dentro da maca que já avançava pelo largo corredor, jogou um beijo para a filha.


BRASIL

Remexendo-se no banco do ônibus-leito, Helena acordou com o corpo dolorido. O dia amanhecia. Consultou o celular na escuridão ainda reinante ali dentro: 5:47 da manhã. Acabou de despertar completamente e aproveitou para ir ao banheiro, antes que estivessem para chegar à rodoviária da cidade e a concorrência ficasse muito acirrada. Fez o máximo de higiene que aquele precário cubículo sacolejante lhe permitia e retornou ao banco, sem que nenhum outro passageiro tivesse acordado. Lembrou do longo vôo de Tókio ao Rio de Janeiro. De viagem curta dali até Viracopos. E, ali em Campinas, tinha entrado à noite neste ônibus que avançava agora pela madrugada paulista.

O ônibus deveria chegar à estação rodoviária de Bastos por volta de sete da manhã. Isso lhe fora afirmado pelo próprio motorista, quando fizeram aquela parada em Marília, ainda madrugada alta. Tinha mais de uma hora para dormir, se tivesse sono. Não tinha. Aproveitou então para repassar na mente toda aquela viagem e toda a loucura que ela representava em sua vida.

Silvana, sua mãe, havia nascido, assim como ela mesmo, Helena, na pequena cidade de Bastos, no interior de São Paulo. Era médica pediatra. Vivia em Bastos com o marido e a filha, numa casa maravilhosa dentro da propriedade do pai, o venerável Takeo Toshyiuki, um importante líder da comunidade japonesa. Toshyiuki san possuía uma das mais importantes granjas do município, já então o maior produtor de ovos do país.
CONTINUA 

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