quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

DRA. FUMIKO – 6ª. parte
Um Amor que vence o Não e a Vida exorta
MILTON MACIEL

Fim da 5ª. parte:
A outra fotografia era dela mesma! Era a pequena Helena Fumiko, com seus sete aninhos, feliz e inocente, com os dois dedinhos da mão esquerda fazendo o V da Vitória. Comemorava sua classificação como melhor aluna da classe! Poucos dias antes que a grande desgraça sobreviesse para as duas...

6ª. parte:
Sinhana explicou que aquele era um segredo que só ela e Dona Fumiko conheciam. Sempre que o marido se afastava, para Bastos ou em viagem, a avó se trancava a chave na sala de jantar e colocava o quadro virado do avesso na parede.  E ficava horas a fio lá dentro. Do lado de fora, Sinhana nunca a ouvia chorar. Mas sempre a ouvia rezar muito e cantar em japonês, quase o tempo inteiro.

Da sala, Marcelo e Aristides ouviram a nova explosão de emoção da visitante. O rapaz abriu as duas mãos com as palmas para cima e fez um muxoxo com os lábios, como quem perguntasse a Aristides o que era tudo aquilo. O taxista, intuitivamente, fez com as mãos e o rosto um gesto correspondente, como a dizer que não tinha a menor ideia. Marcelo desconversou voltando para o velho:

– Painho não quer casar mesmo? Olhe só, a moça tá chorando de novo. Tenha dó, painho!

Nesse momento, Donana entrou na sala e falou aos dois homens:

– Não estranhem, a moça estava desabafando comigo, coisa de mulher, sabe? Teve uns problemas sérios de família, parece que está com uma mãe morre-não-morre longe daqui. Estava visitando uns amigos em Iacri quando soube, o Seu Aristides foi buscar a menina, está levando pra pegar o ônibus em Bastos esta noite, vai pra Campinas. Ela está no banheiro agora.

Falou isso olhando fixamente para o motorista, que entendeu que devia corroborar a história. Era evidente que a moça tinha preferido não dizer quem era para Marcelo. Não competia a ele atrapalhar os planos dela, já chegavam todos os sofrimentos que a coitadinha estava vivendo, ainda mais com a mãe numa UTI entre a vida e a morte. E essa mãe era a sua Silvana, o grande amor do seu passado. Houvesse o que houvesse, ele estaria sempre do lado de uma filha de Silvana. Confirmou imediatamente a meia mentira de Sinhana, paciência!

– É, a moça está mesmo muito mexida com a doença da mãe, é coisa grave, UTI de hospital, morre-não-morre. É melhor a gente não fazer nenhuma pergunta pra ela, qualquer coisa ele se derrete, está sofrendo demais a pobrezinha.

– Sim, isso mesmo, Seu Aristides. E Marcelo: é melhor a gente tentar distrair a coitada, faça das suas palhaçadas. Que ela pergunte pra gente o que quiser, a gente evita perguntar coisas pra ela. Não parece bem assim?

– Claro, claro, você tem razão, Sinhana. Pode deixar que eu vou tentar ajudar a moça como eu puder.

– Você é um amor, meu filho. Isso, faça assim mesmo. Mas agora traga seu painho pra mesa, está na hora do almoço, vamos fazer um almoço bem descontraído, deixar a pobre da moça à vontade, longe dos medos e das tristezas dela. Instale o Seu Chiquinho na cadeira alta dele, que eu vou trazer a comida. Aliás, pra facilitar, enquanto o Marcelo acomoda Seu Chiquinho, o senhor até que podia me dar uma mãozinha na cozinha, me ajudando a trazer as travessas e as jarras.

Seu Aristides entendeu, deu um salto da poltrona onde estava e já se encaminhou atrás de Sinhana, em direção à cozinha. Menos de três minutos foi o que ela precisou para explicar tudo ao taxista. Logo depois ele chegava com as duas travessas maiores. Marcelo não deixou escapar a deixa:

– Que vergonha, Sinhana! – gritou para a cozinha – Fazendo um visitante de sua copeira, que folga criatura! Olhe só, painho, que desabusada – comentou, rindo para o velho e entregando, mais uma vez, sua origem nordestina.

Sinhana chegou com o restante dos pratos e, nesse preciso momento, Helena voltou à grande sala de jantar. A mesa já estava toda posta, seu avô, Marcelo e Seu Aristides já sentados a ela e o grande quadro de dona Fumiko de volta a seu lugar na parede, em frente à mesa.

Marcelo ergueu-se rapidamente, puxou uma cadeira para que ela sentasse e iniciou uma animada conversa sobre os pratos que iam ser servidos no almoço. O principal, um delicioso surubim que ele mesmo havia pescado na noite anterior. Isso deu vez a que ele contasse toda a pescaria, caprichando na palhaçada para tentar descontrair a moça visitante.

Contou como tinha ido atrás de Seu Chiquinho, que era o maior pescador de toda a região, para suplicar que ele não acabasse com todos os peixes do rio. A contragosto, Seu Chiquinho tinha concordado por fim, devolvendo para a água três enormes peixes, todos com mais de 30 quilos, que ele tinha pescado nos primeiros dez minutos.

– Pescador como Painho não tem no Brasil. É o maior, não é painho? Olhem só, ele é modesto, não diz que sim nem não. Mas é maior mentiroso, também. Porque não pode existir pescador sem mentira de pescador.  Quanto a maior o pescador, maior a mentira. Sabe qual é a última de painho, Seu Aristides?

– Não sei, mas fico sabendo se você me contar.

– Pois aí vai, acredite se puder: Pois painho me contou ontem à noite de uma pescaria danada que ele fez na represa de Avaré. Pois ele pegou e puxou sozinho um tubarão, uma enorme arraia de 80 quilos e mais de 20 bacalhaus da Noruega. Verdade painho?

Caiu na gargalhada, piscou para o velho, deu-lhe um piparote debaixo do braço. O velho voltou para ele aqueles olhinhos felizes de adoração. Helena podia jurar que eles estavam rindo.

– Mas esses bichos não são de água salgada, Marcelo?

– Claro que são, Seu Aristides. Por aí é que se vê a grandeza de painho pescador. Primeiro ele isolou uma pontinha da represa e mandou jogar lá dentro mais de cem carretas de sal. Aí ele trouxe os peixes e as arraias tudo filhotinho. E foi deixando a bicharada crescer e criar. Aí, no tempo certo, ele vai lá e pesca um pouco de bicho, pra não dar problema de super-população. Só que os bacalhauzinhos cresceram numa parte que ficou com sal demais, por isso, quando se pesca, eles já saem salgados e secos. E  também aconteceu que o tubarão que ele matou foi um que andou pulando do cercado de painho pra dentro da represa e começou a gostar de água doce. E aí começou a devastar os outros peixes e a crescer rápido demais. E antes que ele virasse um monstro de filme americano de tubarão, painho resolveu dar um fim naquele abusado. Pulou de calçãozinho na represa, levando só o canivete de escoteiro dele, que tem mais de cem lâminas. O pessoal que viu diz que foi uma luta terrível. O tubarão mordia painho, engolia ele inteiro, e painho cortava a barriga do bicho com canivete, saía dela e ia se jogar, com toda a coragem, na boca do bruto de novo. Aí era mastigado, engolido, a coisa toda se repetia e ele abria outro buraco na barrica do monstro e saía de novo. No fim o tubarão acabou morrendo, de tão furado que ficou no baixo ventre.

– Notável – falou animada a moça Helena, que agora já estava rindo contente – Mas se o tubarão mordeu tanto o Seu Chiquinho, como é que ele conseguiu sair com vida e não ficou todo rasgado. 

– Ah, mas a moça não faz idéia de como é grosso e duro o couro de painho! Quando ele terminou de içar o tubarão morto pra fora d’água, o pessoal todo viu, contou, recontou e confirmou: o tubarão não tinha um único dente inteiro. Tinha quebrado tudo contra o couro duro de painho. Já painho tinha um único corte feio na altura do ombro, mas isso ele acabou confessando que foi ele mesmo que fez com o canivete. Afinal, justificou, era uma vergonha se ele saísse daquela luta tremenda sem nenhum arranhão. E também tinha aquele monte de mocinha do lado de fora e ele queria impressionar as garotas com um ferimento grave. Painho é que contou tudo isso, gente. Mas pescador é sempre mentiroso... Não é, painho?

E lá veio a sonora risada. Aquele, de fato – pensou Helena – era um homem de bem com a vida... Não seria ela que iria botar minhocas na sua cabeça, revelando quem era.

Terminada a história de pescador, momentos depois terminava também o almoço. Sinhana trouxe um cafezinho, com grão moído na hora, depois de encerrar o menu com doce de leite e papo de anjo, como sobremesa. Há muitos e muitos anos que Helena não comia aquelas delícias caseiras de sua infância. A refeição havia sido, antes de mais nada, uma viagem gastronômica ao seu passado e dela a moça participara com um deleite que não era somente físico, mas que tinha sido muito mais emocional. Vó Fumiko fazia pessoalmente doces brasileiros e portugueses para a filha e a neta, que não eram muito chegadas em comida japonesa tradicional.

E também tinha sido, aquele almoço, uma janela da qual ela podia espiar, a todo instante, sem chamar atenção, o semblante mirrado de seu avô. Dentro de poucos minutos ela teria que achar condições de falar aquilo que viera falar a ele. Que certamente não saberia quem estava lhe falando e, muito menos, poderia entender suas palavras. Quando chegasse o momento propício, Sinhana e Seu Aristides fariam o combinado antes do almoço, o taxista levaria o moço para fora para examinar o seu novo taxi e, nesses escassos minutos em que o rapaz aceitasse se distanciar um pouco do velhinho, a neta diria o que tinha que dizer ao avô. Era um curto discurso, de uma interlocutora somente, um monólogo inútil. E então tudo o que viera fazer no Brasil estaria pronto.

Teria que se despedir de Sinhana, que lhe falava já ao coração. E teria que dar adeus àquele moço impressionante, alto e bonito no porte, mas incomparavelmente mais bonito na alma. Depois chegaria a hora de apertar a mão daquele homem que parecia tão bom e dar adeus definitivo a Seu Aristides. Na hora de sair faria algumas fotografias da granja e das pessoas, para mostrar a sua mãe que, com a graça de Deus, haveria de se recuperar e apreciá-las.

Enquanto degustavam o cafezinho, Sinhana começou a dar um rumo estranho à conversa, deixando Helena um pouco intranqüila:

– Marcelo, você conversava com seu painho sobre a filha dele e o que aconteceu aqui?

– No começo, não, Sinhana. Eu era muito moleque e não entendia bem aquilo, só sabia que painho, que então eu chamava de padrinho, não admitia nunca que alguém falasse sobre isso. Ficava uma fera. Mas eu sabia também o que a madrinha me falava. E ela falava sempre com tanto amor daquela filha e da netinha dela e eu via que ela sofria tanto porque elas tinham ido embora. Inúmeras vezes eu pensei em ir buscar as duas lá no tal de Japão, pra fazer uma surpresa pra madrinha, ver a madrinha feliz outra vez. O padrinho tinha começado a me dar uma mesada e eu não gastava nada dela, absolutamente nada, nem um tostão; ia juntando tudo pra tal viagem de ida e volta ao Japão. Até que, já maior, um dia me explicaram onde ficava o tal Japão e o quanto custava a tal passagem de avião. Fiquei desesperado.

– E aí?! – quis saber, ansiosa, uma interessadíssima visitante jovem.

– Foi aí que aconteceu a única vez na vida em que eu tentei ser desonesto. Eu sabia onde painho tinha um monte de dinheiro guardado em dólares, era numa caixa escondida, não era num cofre. E eu fiquei tentado em roubar aquele dinheiro pra ir pro Japão, vejam só. A essa altura eu já sabia calcular direitinho quanto ia precisar para minha passagem de ida e volta e para as passagens das duas. Aí resolvi que a minha ia ser só de ida, assim eu precisava roubar menos do padrinho, o pecado ia ser menor.

– Ué, mas como só de ida, meu filho?

– Sim, vejam só: eu chagava lá, achava a filha e a neta, comprava as duas passagens delas, só ida para o Brasil. E, ficava eu por lá mesmo, ia arranjar algum trabalho em alguma fazenda de café ou de gado, eu me virava pra sobreviver.

Helena riu alto, divertida. Mas estava com aquela bola atravessada na garganta. Que criança incrível era aquela! E conseguiu falar:

– Fazenda de café no Japão? Ou uma grandona, cheia de boi nelore?

Todos caíram na gargalhada, Marcelo mais do que qualquer um:

– Pois veja, moça, como eu não sabia nada sobre o Japão. Mas no fim eu não tive coragem de roubar. Fui pedir perdão pra madrinha por causa disse, contei para ela onde estavam os dólares, se ela quisesse roubar ela mesma e viajar... Mas aí ela me falou que sabia muito bem onde estavam aqueles dólares. E me disse que não precisava roubar, que tinha dinheiro dela mesma guardado. Mas que uma mulher honesta tem que fazer o que o marido manda. E o padrinho não deixava ela viajar pra buscar a filha e a neta e não havia nada que ela pudesse fazer. Então, pouco antes de morrer, ela me contou que o padrinho tinha deserdado a filha e me explicou o que era isso. Foi a única vez na vida que eu vi a madrinha com lágrimas nos olhos.

– E você?

– Seu Aristides, eu fiquei passado, era a primeira vez que eu achava feia uma coisa que o padrinho tinha feito. Pra mim ele era o homem mais perfeito da face da Terra. Me lembro que, por muitas noites, eu perdia o sono tentando encontrar uma explicação pra isso, que não deixasse aquele ponto escuro na admiração incondicional que eu tinha por ele. Mas não encontrei. Nunca encontrei. Então aprendi que ninguém é perfeito neste mundo. E isso não alterou em nada o amor que eu já sentia por ele.

– Coisa séria isso, não é mesmo? Tanto sofrimento causado por um preconceito, por uma coisa tão antiga. Ou, como diria minha filha jornalista, por um machismo rançoso.

– Pois é, Seu Aristides. Aquilo era terrível mesmo. De um lado painho, com seus princípios antigos de milênios, sua moral duríssima. E do outro toda a sua família: a esposa, a filha, a neta. Como uma coisa de tradição podia fazer sofrer tanto quatro pessoas que eram todas boas. A neta porque era uma criança ainda. Mas a madrinha e o padrinho eram pessoas boníssimas. E da filha deles, eu só ouvi falar coisa boa a vida inteira. Não era só a mãe dela não, todo mundo que eu ouvi, que se referisse a ela, longe dos ouvidos de painho é claro, só falava bem dela. Foi assim que eu aprendi o que é preconceito. E jurei pra mim mesmo que eu nunca haveria de ser preconceituoso.

Sinhana botou mais lenha na fogueira:

– E você sabe o que aconteceu com a moça e com filha dela que foram pro Japão?

CONTINUA...


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