sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O  BOITATÁ DE “O DEMÔNIO E A SRTA. PRYM” 
MILTON MACIEL

Era uma noite toda estrelada e eu saí às 11 horas para observar aquele céu fantástico. Fui andando pela estradinha de terra, depois entrei pelo campo e caminhei por mais de 15 minutos, lentamente, parando a todo instante para contemplar o firmamento. Foi quando eu vi a trilha luminosa de um meteoro riscar o céu e se perder no horizonte. Minha atenção chamada naturalmente para aquele ponto, vi que, bem perto dali, uma nuvem luminosa como que se elevava do chão, como uma chama, no topo da coxilha. Boitatá!

Sou fascinado pelo boitatá, aquela estranha luminescência fosforescente, causada por resíduos de ossadas animais no campo. O nome é indígena, vem de m’boy tatá, cobra de luz. Quase corri para o topo da colina, para ver de perto o fenômeno. É claro que não existiria nenhuma cobra de fogo ali. Mas, quando cheguei, me deparei com algo muito mais insólito: havia duas figuras humanas dentro do boitatá! Convenhamos, aquilo não fazia o menor sentido, principalmente porque as figuras pareciam tão diáfanas e transparentes quanto o próprio boitatá. As figuras se moviam e pareciam envolvidas em animada discussão.

Pensei: Puxa, eu bebi vinho na janta, mas isso foi três horas atrás! Quando dei por mim, estava falando alto sozinho:

– Que é isso? Isso é só um boitatá!

Para minha surpresa, o boitatá respondeu, alto e bom som:

– Claro que eu sou um boitatá, qualquer um pode ver. Mas sou também o Demônio e a Srta. Prym.

– O que??!!!

– Isso aí. Sou um boitatá e sou o Demônio e a Srta Prym.

– Mas como pode? São esses dois caras aí, dentro de você?

– Que caras dentro de mim? Eu sou tudo isso, é uma coisa só.

– Mas tá errado: boitatá é boitatá, é coisa de osso somente, de fósforo branco, de ignição.

– Você é que está errado, não sabe nada de boitatá. Tá assim de boitatá de personagens de ficção. Como eu. Aliás, se você andar uns dois quilômetros para o sul, vai encontrar o boitatá de Otelo, o mouro de Veneza.

Sacudi a cabeça desesperado:

– Inaceitável. Você não existe, não pode estar falando. Boitatá não fala!

– Pura verdade, boitatá não fala. Boitatá comum. Agora, boitatá de personagem... Ah, você nem pode imaginar o boitatá de Quincas Berro D’água e a turma dele. Aquilo é que é palavrório, um conversê sem fim! Nem eu aguentei ficar perto muito tempo.

– Tá bom, tá bom! Vou deixar a coisa seguir, depois eu sei que volto ao normal, só pode ter sido aquele maldito vinho. E daí?

–Daí o que? Que eu sou um boitatá do Demônio e a Srta Prym?

– Sim. Se for verdade!... O que isso significa?

–Significa o seguinte: esses dois, depois que a história do livro terminou, acabaram se casando e agora vivem na maior discussão, por causa das barras de ouro, que não podem carregar. Vivem quebrando o pau. Por outro lado, como não param de falar do autor da história deles, um tal de Paulo Coelho, que quanto mais o povo metido a literato fala mal dele, mais livro vende e mais rico fica, eles se queimaram e resolveram vir para o campo, procurar um boitatá de casal. E me acharam aqui. Há coisa de uns dez meses. Agora a gente é uma coisa só, uma família só.

– Mas isso é muito louco. Eles são só personagens, não têm existência real!

– Mas como você é primário mesmo! Desde quando um personagem de livro com milhares, quando não milhões de leitores, não tem vida real? Como é que você pode dizer uma barbaridade dessas?

– Ué, mas como...

– Mas como! Claro que personagens de livros lidos por um enorme número de pessoas têm existência real. Veja o Otelo, de que eu falei há pouco: foi criado há quase 400 anos e todo mundo ainda hoje fala dele e sabe muito bem que ele é sinônimo de ciúme doentio. E o Hamlet? E o Machbeth? E Romeu e Julieta? E Ana Karenina? E Madame Bovary? E Edmond Dantes? E D'Artagnan? E Jean Valjean?

– Mas...

– Mas!... Ora, você vai dizer que a Gabriela, cheiro de cravo, cor de canela não tem vida? Francamente! E o capitão Rodrigo, do Érico Veríssimo? E o João Grilo, do Suassuna? E Riobaldo, Diadorim, Hermógenes? E Capitu? E Policarpo Quaresma?

– Mas... têm vida onde? Onde?!

– Ora, têm vida no Imaginário das pessoas, que é um universo paralelo sem fim, muito mais importante do que esse mundinho tolo em que vocês vegetam. Passam-se os anos, as décadas, os séculos e esses personagens sempre sobrevivem, às vezes mais do que a lembrança dos seus criadores. Isso, acaso não é vida? Quem escreveu a história de Job, na Bíblia? Você sabe? Nem eu! Mas a tal paciência de Job e o velho Job são lembrados todos os dias, estão mais vivos do que nunca.

– Quer dizer que, se um personagem desses que têm vida no imaginário das pessoas achar um boitatá comum, os dois se juntam e fazem um boitatá como você?

– Isso mesmo! Qualquer personagem, desde que venha de uma obra com muitos leitores. Isso é uma garantia de imortalidade.

Esse encontro se deu há exatamente cinco anos. O boitatá do Demônio e a Srta. Prym me convenceu. Ora, eu sempre aspirei a imortalidade. Vai daí que tive uma ideia incrível.

Primeiro transformei em personagem a mim mesmo. Apesar de ter só 39 anos, escrevi uma fenomenal história sobre mim, uma saga, um épico – não uma autobiografia! -  que publiquei com pseudônimo, às minhas próprias expensas, para que ninguém soubesse meu segredo. Na epopéia sobre minha vida heróica, eu morria aos quarenta anos, um autêntico campeão, defendendo os fracos e oprimidos.

Então só precisei investir o resto das minhas economias em propaganda. O país inteiro engoliu, meses a fio, violenta campanha de divulgação do meu livro. Valia muito, para isso, que o autor, de nome estrangeiro, se recusasse terminantemente a aparecer e a dar entrevistas. Todos os veículos de imprensa saíram feito loucos atrás do misterioso escritor. Ora, a gente sabe muito bem: um livro é um produto. E, para o sucesso de venda desse produto, o importante não é o produto, mas a propaganda. Depois de meses de campanhas apregoando que o meu era o melhor livro do ano – e do gênero – e eu o mais importante herói contemporâneo, as vendas explodiram vertiginosamente.

Com isso, meu livro atingiu o primeiro lugar na lista de Best Sellers por mais de 40 semanas, quase um ano inteiro. Eu tinha, enfim, conseguido o que queria: eu era um personagem de livro que vivia na memória e imaginação de mais de um milhão de pessoas.

Bem, aí foi fácil o final:

Fiz uma lauta refeição de despedida, um jantar, sem esquecer o vinho, aquele mesmo moscatel de cinco anos atrás. Saí para o campo às onze da noite, caminhei até achar um boitatá. Por sorte era comum e estava livre. Pedi licença, entrei dentro dele, deitei no chão e adormeci em seguida.

E hoje estou aqui, atingi a imortalidade, sou um boitatá de mim mesmo!

De vez em quando voltamos ao nosso berço, para nos reabastecermos de brilho com os restos dos meus antigos ossos. Que maravilhosa vida eterna eu alcancei !



Nenhum comentário:

Postar um comentário