sábado, 22 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES – 17ª parte - A luta pela vida (penúltimo capítulo) 
MILTON MACIEL 

Fim da 16ª parte:
– Mas eles são prisioneiros. Estarão manietados, acorrentados!

– Outro engano seu. Eles não são somente prisioneiros. São Kelvin da Bretanha e Lucius Dracus. Eles estarão prontos, pode ter certeza! Eles lutarão. Nós lutaremos.

– Que os deuses os protejam, então, Alline de Troyes. Boa sorte. Vou preparar o cerco agora.

– Boa sorte, centurião. Estou entrando na floresta agora.

17ª parte: A luta pela vida (penúltimo capítulo)

Alline desapareceu rapidamente de vista e Caius Marcellus ficou por um momento olhando para o ponto da escura floresta onde ela havia sumido, pensando, admirado: que coragem! Embrenha-se sozinha numa floresta com mais de quatro centenas de bandidos da pior espécie, armada apenas com um arco, flechas e um punhal. Lá dentro os dois homens mais importantes de sua vida são mantidos prisioneiros, manietados, totalmente incapazes de se defender, que dirá de lutar. O centurião, por um momento, sentiu um aperto no coração. Algo lhe dizia que havia visto Alline de Troyes com vida pela última vez. Com iria sentir falta daquela gaulesa valente e generosa!... Mas teve que afastar de si esses pensamentos, porque precisava coordenar o avanço dos legionários na manobra de cerco ao acampamento dos alamanos de Walmaric.

Alline, travestida em Gilles de Troyes, avançou rapidamente, numa corrida veloz contra o tempo, exigindo o máximo de sua força nas pernas e de sua resistência respiratória. Levou mais de quinze minutos correndo, até avistar, ao longe, as luzes das fogueiras dos alamanos. Então parou de correr e começou a caminhar com muito cuidado, para não fazer nenhum ruído que pudesse chamar a atenção de sentinelas mais avançados. 

Quando chegou suficientemente perto, começou a circundar o acampamento a uma distância prudente, à procura de uma tenda que tivesse guardas postados à entrada. Finalmente conseguiu identificá-la. Ali estavam, com certeza, seus dois homens. Como sempre fazia em tais casos, Alline procurou uma árvore convenientemente alta e convenientemente próxima, do alto da qual pudesse flechar quem estivesse próximo à tenda dos prisioneiros. Subiu com muito cuidado, tratando de se movimentar apenas quando os sentinelas estavam voltados para o outro lado ou conversando entre si, encarando-se mutuamente. Quando se sentiu suficientemente segura e oculta, relaxou, preparou o arco para o arremesso, conferiu a firmeza da aljava e relaxou. Agora era esperar e tratar de fazer a calma imperar sobre o tumulto em que estava seu coração. Precisava o máximo de lucidez e sangue frio, para não falhar quando os alamanos viessem executar seus homens.

A gaulesa, viveu um instante de expectativa que parecia interminável, infindos minutos, até  que o fatídico toque de trombeta se fez ouvir repetidas vezes. O toque veio do norte e Alline compreendeu imediatamente a manobra de Caius Marcellus. Provavelmente um trombeteiro com, no máximo, uma centúria de legionários, devia ter se deslocado para o norte. Ao som de sua trombeta, os alamanos pensariam imediatamente em fugir para o sul. Mas tinha sido exatamente pelo sul que os legionários tinham chegado. Então, dispondo seus homens numa espécie de meia lua, com centro na posição sul, o centurião conseguiria abocanhar o grupo em fuga com um mínimo de deslocamento de sua tropa. Mentalmente, a jovem cumprimentou Caius Marcellus. Ali estava um centurião que, sem dúvida alguma, mereceria sua promoção a tribuno.

O soar repetido da trombeta romana despertou e causou o maior alarido no acampamento alamano. Todos os homens correram, já com suas armas, para preparar os cavalos para a fuga. Walmaric berrava como um louco, ao mesmo tempo em que afundava suas mãos dentro de um dos carroções, para apanhar sacos de objetos valiosos, que amarrou à sela do seu cavalo. Outros alamanos o secundaram, fazendo a mesma coisa. Imediatamente, eles seguiram a trilha deixada por seus companheiros montados, que já tinham se embrenhado desordenadamente pela mata, em direção ao sul, para fugirem dos romanos que vinham do norte.

Mas Walmaric, retendo alguns homens consigo, fez exatamente aquilo que o druida, Lucius e Alline imaginaram que ele faria. Caminhou rapidamente para a tenda dos prisioneiros. Do alto da árvore, Alline viu que eram onze homens ao todo, contando com o chefe. Os sentinelas não estavam mais lá, já haviam fugido. Mas onze eram homens demais! Quando eles se aproximaram da entrada da tenda, Alline ficou em pé sobre a árvore e começou a disparar suas flechas tão rapidamente quanto conseguia rearmar seu arco. Cinco homens foram atingidos mortalmente, mais dois feridos gravemente, antes que os alamanos atinassem que o ataque vinha de um único ponto acima deles, situado na copa de uma árvore alta. E não da legião romana, que já tivesse chegado.

Walmaric ordenou aos outros três homens que revidassem com seus arcos e eles passaram a alvejar a árvore de onde lhes parecia ter vindo o ataque. Alline, tendo que se abaixar e esconder atrás do largo galho que escolhera para ser seu escudo, viu angustiada quando Walmaric, armado de arco, entrou na tenda. Ela estava completamente impedida de fazer qualquer coisa. O desespero a invadiu e, por causa dele, ela fez algo impensável: jogou-se do alto da árvore, numa queda livre de mais de seis metros, tentando atingir o solo sobre os pés. Com inacreditável agilidade e destreza, resultado de centenas de saltos treinados com seu abade-general, conseguiu aterrissar na vertical, por trás do grosso tronco da árvore, flexionando as pernas para absorver a maior parte do impacto. Presos ao corpo, levava aljava e arco.

Com a surpresa, os três arqueiros alamanos se desconcentraram e, por instantes, não conseguiram localizar o alvo de suas flechas. Mas o mesmo não aconteceu com Aline: os três alvos eram perfeitamente focalizáveis. E detrás daquele tronco partiram as três setas que prostraram por terra os três saqueadores. Alline correu então em direção à tenda, a tempo de ver sair de dentro dela o cruel Walmaric, que tinha nos lábios um sorriso de triunfo. Ao ver aquele franzino gaulês com uma flecha apontada para ele, o chefe alamano deu um salto para o lado, impressionantemente ágil para um homem com toda sua corpulência, e a flecha que o atingiu cortou-lhe apenas a carne do ombro.

Walmaric armou seu arco antes que o gaulês rearmasse o seu e despediu sua seta. O homem foi atingido em pleno peito e tombou para trás, mortalmente ferido. Então o alamano correu para o inimigo e, sacando de sua espada, levantou-a para cortar o pescoço do homem. Mas nessa hora, de forma não só inesperada, como inimaginável para ele, o pequeno adversário ergueu-se parcialmente e afundou-lhe um punhal no ventre.

O bandido levou as duas mãos ao ponto da ferida e, reequilibrando-se, retirou o punhal de seu ventre e cravou-o fundo no peito do inimigo. Depois, ele mesmo tombou ao chão, de barriga para cima, perdendo muito sangue. Mas tinha a certeza que o maldito gaulês morreria e que ele poderia resistir, porque a área atingida não era letal. Precisava, contudo, rolar para a parte da mata cheia de arbustos e esperar escondido, torcendo para os romanos não o vissem.

Foi quando começou a se mover para levantar que viu o impossível à sua frente: o gaulês, com uma ferida de punhal no lado esquerdo do peito e uma flecha enterrada fundo no lado direito, esvaindo-se em sangue, estava de pé, sobre ele. Como é que aquele demônio não morria? Pois o homem pequeno fez algo ainda mais inacreditável: reuniu todo o restante de suas forças, agarrou a flecha com as duas mãos e, dando um grito impressionante de dor, arrancou-a de um só golpe do fundo ferimento. E a seguir, reposicionando-a nas duas mãos, abaixou-se sobre Walmaric e espetou-lhe fundo o peito, na altura do coração.

Uma última surpresa colheu o cruel Walmaric, que morria, quando o gaulês falou, no mais perfeito idioma alamano, entre gemidos e palavras entrecortadas:

– Irônico: Você me mata com meu punhal e eu mato você com sua flecha. É o fim, maldito! Para nós dois... Que o inferno lhe seja... pesado...

A última visão da vida do bandido alamano foi a de um pequeno gaulês claudicante, que se arrastava pelo chão, apoiado em um arco, em direção à tenda dos prisioneiros.

Quando Alline de Troyes conseguiu penetrar na tenda e seus olhos se acostumaram à pouca visibilidade proporcionada pelas  fogueiras lá fora, sua pior expectativa foi brutalmente confirmada:

Ali, deitados de costas, o homem com roupa de druida tinha duas flechas cravadas profundamente nas costas. E o homem com vestes de abade tinha três flechas nas costas. O maldito alamano os tinha flechado enquanto dormiam, de barriga para baixo.

Alline de Troyes, no limite de suas forças, sentiu-se feliz por estar às portas da morte. Não havia mais por que lutar e resistir. E suas últimas palavras, mais pensadas do que faladas, pois voz não havia mais, foram:

– Meu Mestre, meu Amor, aqui vou eu com vocês. Me esperem. A morte não vai poder nos separar...

Como que para confirmar o que dissera, teve a nítida visão dos rostos de Kelvin e Lucius, que se abaixavam sobre ela e diziam coisas que ela não lograva ouvir. Mas sabia que estava pronta para ir com eles. Abriu um amplo sorriso e um último laivo de respiração saiu de suas narinas.
CONTINUA: Há um triunfo, afinal  (último capítulo)

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