quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 8a. parte: GILLES DE TROYES E MONSIEUR L’ABBÉ  
MILTON MACIEL  

Fim da 7ª parte:
E então o centurião compreendeu perfeitamente que Gilles de Troyes era o nome do jovem gaulês atrevido que lhes fora apresentado amarrado na noite de sua chegada ao acampamento. Gilles de Troyes era simplesmente Alline de Troyes em sua identidade masculina.

8ª parte:  
Confiando em sua conclusão, o centurião resolveu testá-la, dirigindo a palavra à jovem gaulesa, que estava totalmente absorta em conseguir que o alamano ferido deglutisse mais alguns goles de água, o que demandava esforço e paciência:

– Gilles de Troyes, por favor...

A moça respondeu sem se voltar, absorta totalmente no que fazia:

– Um momento só, senhor.

E, falando no idioma alamano, continuou exortando o prisioneiro a se esforçar para engolir a água. Quando enfim se deu por satisfeita, voltou-se para a voz que a chamara e reconheceu Caius Marcellus, parado à entrada da tenda. E só aí se deu conta que ele a tinha chamado de Gilles.

– Bom dia, senhor. Ou boa tarde, nem sei que horas são agora.

– É boa tarde, Monsieur Gilles de Troyes, já passa de uma hora desde que o sol passou pelo meridiano. E, pelo que eu soube, o senhor, como um gaulês tinhoso que é, não comeu nada ainda, desde que levantou. Ficamos sabendo de suas peripécias na tenda dos romanos feridos. Mas o que mais me surpreendeu foi ver você aqui, ajudando os inimigos feridos. Poucas horas atrás, tanto eu como você estávamos era tratando de abrir essas feridas mortais neles.

– É verdade, senhor. Naquele momento era eles ou eu. Se eu não os matasse, eles me matariam. Mas agora é completamente diferente. Este não é mais um guerreiro inimigo, avançando com uma arma contra mim. É apenas um homem muito ferido, a caminho da morte, se não receber ajuda. De mais a mais, como saber se este não é um dos muitos a quem eu mesma atingi?

– Estranha forma de raciocínio, jovem Alline. Chega de chamá-la de Gilles. Apenas o fiz para mostrar que eu decifrei sua charada de ontem à noite. Estranha forma mesmo. Porque, se você ajuda esse homem e ele fica bom, será mais um inimigo que poderá atacá-la no futuro. Não pensa assim?

– Francamente não, centurião. Por enquanto, para mim, é só um ser humano desvalido, precisando de ajuda. Digamos que eu o salve. Se, amanhã ou depois ele me atacar como um combatente inimigo, então terçaremos armas e o melhor vencerá. Terá sido uma luta limpa e um duelo justo. E, talvez, eu venha a matá-lo, e estará tudo certo. Ou talvez ele me mate, o que também estará certo.

– Continuo não entendendo a sua lógica, moça. Mas isso não vem ao caso. Por favor, venha comigo, o general Jovinus esteve muito aflito com seu desaparecimento. Eu mesmo a procurei durante horas por todo o acampamento e nos arredores todos dele. Custamos a saber que você estava nas tendas dos feridos. Venha. Vamos nos juntar ao general e aos outros oficiais, vamos comer, você precisa se alimentar.

– Ah, centurião, o senhor está vendo esse pobre homem todo manchado de sangue, dormindo encolhido no chão, quase ao seu lado? Pois este é o único enfermeiro que ficou cuidando destes pobres prisioneiros feridos. Esse, sim, é um homem admirável. Passou a noite toda em claro cuidando de dezenas de alamanos em mau estado. E, quando entrei aqui esta manhã, ele continuava firme em seu posto. Precisei mentir que o general me havia mandado substituí-lo, para que ele concordasse em parar e descansar. E caiu imediatamente nesse sono profundo, coitado. Quando ele estiver desperto, eu quero saber o nome desse enfermeiro e quero ter a honra de apertar-lhe a mão.

– Estranha lógica ainda, moça gaulesa… Mas isso não é o que importa. O que importa é que você tem que sair daqui agora mesmo e ir se alimentar, fazer seu refeição em nossa companhia.

– Estranha lógica essa sua, centurião. Pois a única coisa que importa de verdade é ajudar estes feridos. E eu não sairei daqui, apenas para comer, se não tiver ninguém para ficar no meu lugar. Vá almoçar com seus colegas e o general. Agradeço muito o seu convite, seria uma honra, mas eu não posso.

– Não pode porque tem que ficar ajudando um maldito inimigo em quem você horas atrás podia estar jogando flechas mortíferas?

– Isso mesmo, senhor! Vejo que entendeu muito bem. Então, se me dá licença, há outros homens precisando de ajuda urgente – e virou-se de costas para o centurião, indo retirar as bandagens sujas de um prisioneiro que delirava.

– Mas… Mas… Isso não faz sentido! Você não come nada desde ontem…

– Grande coisa, centurião!... Passei três dias sem comer na floresta, seguindo os movimentos destes alamanos e nem por isso morri ou fiquei fraca. Comer não é a coisa mais importante do mundo. Por favor, agora vá, está começando a me atrapalhar, desculpe a franqueza. Apresente meus agradecimentos ao general pelo convite. E por ter se preocupado comigo, não havia necessidade.

E, com um esforço inimaginável para seu corpo delgado, a gaulesa suspendeu o enorme homem e o recolocou em outra posição no catre. Caius Marcellus quase esfregou os olhos, para ter certeza que não estava tendo miragens: Como?! De onde tirava ela aquela força? E por que não lhe pedira ajuda ? Mas, a seguir, respondeu a si mesmo: certamente ela pensa que eu não ajudaria um inimigo. E estaria certa em pensar assim! E eu? Estarei eu certo? Ah, essa gaulesa me faz raciocinar muito mais do que eu gostaria!...

Vendo que a moça nem mesmo olhava mais para o seu lado, o centurião fez meia-volta e retirou-se, indo ter com o general Jovinus, que ficou estarrecido com o que ouviu. Mas deu uma ordem imediata, determinando que outro enfermeiro, dos que estavam com os feridos romanos, fosse substituir Alline na tenda dos alamanos. Com isso, cerca de dez minutos depois, viram a moça gaulesa sair de lá.

Flavius Jovinus adiantou-se e a saudou efusivamente. O general estava cada dia mais fascinado por aquela menina. Mais uma vez lembrou de seu filho primogênito e desejou, fundo em seu coração, que ele fosse como Alline de Troyes. Não era! Perto dela, era um pusilânime, um covarde.

– Que bom que veio, Alline. Pode comer conosco agora.

– Ah, general, quanta bondade a sua! Mas eu acabo de sair do contato com homens feridos e doentes. Preciso urgentemente de um bom banho. Vou para o riacho. Não, centurião, desta vez não precisa vir comigo. Avise apenas a todos os homens que Alline de Troyes vai nadar levando seu arco e suas flechas para dentro do rio. E que terei prazer em cuidar das feridas dos sobreviventes entre aqueles que tiverem ousado me espiar.

E saiu rapidamente, passou por sua tenda, pegou panos limpos e todos puderam ver que ela, de fato, saiu dali para o riacho levando seu arco e a aljava de flechas. Estímulo suficiente para que os soldados, agora não mais sob os efeitos do vinho gaulês, tratassem de ficar bem comportados e longe do riacho, subitamente tornado muito perigoso.

Cerca de meia hora depois, a gaulesa apareceu vistosa, de roupas limpas e de cabelos molhados, na frente da tenda onde tinha sido armado o pálio sobre as mesas de refeição dos oficiais. Estes ainda desfrutavam dos melhores alimentos que foram apresados nas carroças dos alamanos. Alline aceitou o convite para sentar ao lado do general e do centurião e serviu-se enfim de algo para comer. Alguns poucos pedaços de carne salgada, queijos e algumas frutas. Algo extremamente frugal, para quem não comia desde o anoitecer do dia anterior.

O assunto, às mesas de refeição, era evidentemente a intervenção extraordinária da jovem guerreira no homem flechado moribundo, o cunhado de Caius Marcellus. E também a estranhíssima atitude de tentar curar inimigos feridos na outra tenda. Ou seja, como nos últimos dias, o assunto era sempre Alline de Troyes. Todos se calaram quando ela chegou, mas o general estava por demais impressionado para fazer o mesmo:

– Caríssima, assim que terminar a sua refeição, aceitaria conversar com um velho guerreiro, para continuarmos nossa fala de ontem à noite?

Alline, no momento ocupada com um cacho de uvas, fez sinal com a cabeça que sim. Mas, assim que ela mostrou que estava satisfeita, o general não se conteve:

– Minha jovem, antes de voltarmos ao assunto de antes, que evidentemente iremos abordar em sua ou na minha tenda, em particular – que dizer, com o centurião Marcellus também – eu queria lhe perguntar algo que gostaria que todos aqui ouvissem: De onde vieram os seus conhecimentos da arte de curar?

– Simples, general. Da abadia de Troyes. Uma parte aprendi com o senhor abade, muito pouco aliás. E quase tudo com o sábio druida Kelvin, o velho mágico, como era chamado na abadia.

– Que estranho! Isso dá a entender que havia um druida celta dentro de uma abadia cristã. Era isso mesmo?

– Sim, senhor Marcellus. Nosso abade era um homem de grande visão e não era, de forma alguma, um sectário católico. Ele acolheu e concedeu todas as distinções possíveis ao velho Kelvin. E costumava dizer que era a primeira vez que tinha a felicidade de encontrar uma mente muito mais brilhante que a dele, com quem podia dialogar e aprender. Tornaram-se grandes e inseparáveis amigos, nutrindo um pelo outro um enorme respeito.

– Esse seu abade é um padre muito diferente dos outros todos que conheci, moça.

– De fato, general. Logo, logo os senhores compreenderão por quê. Mas foi, sem dúvida, o velho Kelvin quem me ensinou quase tudo o que sei sobre a ars curandi. Inclusive a preparar e administrar seus incríveis remédios.

– Como aquele que aplicou hoje de manhã no pobre Eurico, meu cunhado?

– Isso mesmo, centurião. A propósito, dêem-me licença, vou à tenda dos feridos ver como está esse meu paciente.

E saiu com passo ligeiro, compenetrada, sem esperar resposta de ninguém. Mas antes de desaparecer, voltando-se rapidamente, falou para o general e o centurião.

– Se quiserem me dar a honra, senhores, espero-os na minha humilde tenda para prosseguirmos com nossa conversa. Daqui a meia hora, se puderem.

Os dois homens consultaram o relógio de sol e menos de uma hora depois, anunciaram-se à entrada da tenda da gaulesa, que já os esperava lá dentro.

–  Muito bem, Alline de Troyes, não é necessário lhe dizer o quanto estamos interessados na continuação de nosso assunto de ontem. Marcellus já me fez ver que Gilles de Troyes é a identidade daquele gaulês atrevido que nos invadiu, nos humilhou e nos salvou a seguir.

–Exatamente, senhor. Esse é o meu nome masculino. Monsieur L’Abbé foi quem o colocou em mim. Acho que vamos retomar nossa narrativa a partir deste ponto mesmo.

E, novamente, Alline de Troyes assumiu o papel de narradora única da história:

“Naquela tarde, quando terminou de atender a todos os fiéis da região, na fazendola de meus pais, o senhor abade convocou nova reunião com toda minha família. E lhes disse, de imediato, que tinha ficado tão impressionado comigo e com minhas qualidades, que decidira tomar-me como sua serviçal particular. Seria uma espécie de ajudante geral, cuidaria da sacristia e da congregação, da biblioteca e das salas de aula. E poderia ajudar a ensinar as crianças a ler e escrever.

Meus irmãos levaram um susto, ao verem nosso grande segredo revelado. Olharam apreensivamente para nosso pai, que tinha o queixo caído e a expressão aparvalhada. Minha irmã e minha mãe não tinha entendido nada. Então o abade ordenou a meus dois irmãos:

– Corram a seus aposentos e tragam-me algum material escolar de vocês. Os dois meninos fizeram isso com velocidade relâmpago, ainda temerosos da reação de nosso pai. Assim que voltaram com alguns papiros e duas tábuas de cera para cálculos matemáticos, o abade falou para mim:

– Muito bem, Alline, agora mostre para nós se seus dois irmãos, estes rapazes admiráveis e, sem dúvida, os seus grandes amigos, foram bons professores.

Levantei e comecei imediatamente a ler tudo o que ali estava escrito, de forma precisa e rápida. Em seguida tomei de uma das tábuas de cera e operei os cálculos ali armados. Quando quis pegar a segunda tábua, o senhor abade me interrompeu:

– Chega! Já estou mais do que convencido. Parabéns, rapazes, vocês são mesmo ótimos professores. Vou pensar em usá-los também, como ajudantes de escola. Phillipe e Marcel ficaram exultantes, embora ainda olhassem nosso pai com desconfiança. Então o abade completou:

– Viu só, senhor Deauville, que filhos inteligentes e capazes o senhor tem? E que moça inteligente e maravilhosa é esta sua filha? O senhor deve ter o maior orgulho deles. Especialmente destes dois rapazes corajosos, que ousaram desafiar sua proibição e ensinaram tudo que aprenderam à sua brilhante e heróica menina. Isso é que é amizade entre irmãos, senhor! É a verdadeira fraternidade que o Mestre pregou. E eles com medo que o senhor os castigue. Que absurdo! Pois se eles só merecem elogios e agradecimentos de sua parte.

Meu pai recuperou enfim a fala, depois de ficar por minutos completamente embasbacado, mudo e sem ação:

– Sabe, senhor abade, se alguém tivesse me contado isso, eu teria ficado furioso com eles e os castigaria. Mas depois de ver o que vi aqui nesta sala, depois de ouvir suas sábias palavras, mais uma vez tenho que reconhecer a minha estupidez. Fui um grande estúpido ao seguir a tradição e negar o estudo a esta minha filha extraordinária. Que acaba de demonstrar como é inteligente, além de corajosa. E seus irmãos, sim, é verdade, não merecem castigo algum. Se alguém merece castigo aqui, é a minha burrice. Ainda bem que vocês  desobedeceram seu pai, meus filhos.

Minha mãe, a esta altura, deixava transparecer no rosto toda a sua contrariedade. Ela é que se sentia traída por meus dois irmãos e por mim. Mas o senhor abade era por demais perspicaz. Olhou para ela e falou suavemente:

– Duzentas ave-marias parecem-lhe pouco, madame?

Minha mãe entendeu imediatamente que sua máscara facial fora decifrada pelo abade e tratou de sorrir:

– Certamente que não, reverendo padre. Mas acatarei qualquer número que me determinar.

Então o abade continuou a apresentar sua ideia, dizendo que precisava de uma moça como eu a seu serviço. Que eu teria ótimas acomodações, refeições, estudos e uma paga, que ele mandaria entregar a meu pai semanalmente. Com isso ganhou a imediata aprovação até mesmo de minha mãe. Só em minha irmã era possível ler uma expressão de desagrado e de inveja.

Meu pai perguntou se eu queria ir para a abadia e eu, mais do que rapidamente, fui buscar minha trouxa que já estava pronta há horas, apresentando-a como resposta:

– Meu pai, a abadia fica a apenas duas horas a cavalo daqui. Será muito fácil que nos visitemos com frequência.

E foi assim que segui, montada no meu próprio cavalo, atrás do senhor abade, feliz a caminho de Troyes. Depois de cavalgarmos cerca de uma hora, ele parou e me fez sinal para descer. Ofereceu sua mão para ajudar, mas eu já tinha descido com um salto, como fazia sempre. Ele riu e me disse:

– É, você é o tipo de moça que não precisa desta espécie de ajuda mesmo! Mas vamos nos sentar um pouco aqui nesta relva, e observar o espetáculo maravilhoso do céu. Enquanto isso, há algo que eu quero combinar com você, Gilles de Troyes.

– Com assim, senhor? Gilles?! Este é um nome de homem, ao que me consta.

– Justamente, mocinha. Essa é a ideia. Se você quer frequentar a escola junto com seus irmãos, vamos ter que recorrer a uma mentira piedosa. Seu abade desde já a absolve do pecado – disse isso e caiu na gargalhada.

Então ele me fez ver que, se eu me vestisse de homem e apertasse meus seios com um faixa, por muito tempo eu poderia frequentar a escola como se fosse um menino. Meus dois irmãos mantiveram comigo um grande segredo por muitos anos. Pois agora teriam outro: iriam se tornar os melhores amigos de seu novo colega, o gaulês Gilles de Troyes.

Eu fiquei simplesmente encantada e excitada. Ia poder ficar livre daquelas horrorosas roupas de mulher, me vestiria como um rapazinho qualquer, o que eu tinha feito durante a maior parte da minha vida. E não despertaria a discordância de todos na abadia, que não aceitariam a presença de uma mulher entre os estudantes. Só que, então, lembrei de um problema:

– Mas... e os meus cabelos senhor? Como poderei escondê-los? Minha mãe me obrigou a deixá-los crescer até ficarem esta massaroca enorme e incômoda.

Como resposta, o abade tirou de sob a sela do seu cavalo uma pequena adaga bem afiada e falou:

Pois vamos aproveitar que a noite não está escura e vamos livrar você desse estorvo já. Disposta?

– Certamente senhor – e voltei-me de costas para ele, suspendendo minha vasta cabeleira para o alto com as duas mãos. O abade operou da melhor maneira que conseguiu, a enorme mancha de cabelos castanhos foi ficando cada vez maior sobre a grama. A cada corte que ele dava, eu exultava mais e mais, como se estivesse me livrando de um grande peso que pairasse sobre mim. No final, ele me disse:

– Bem, isso é tudo que eu posso fazer agora. Cubra a sua cabeça com o manto, amanhã, à luz do dia, tentarei fazer um serviço melhor, usando tesouras. E trate de improvisar, com suas próprias vestes, algo que fique um pouco menos feminino. Use este meu manto preto, que ficará enorme em você, mas permitirá que se cubra da cabeça aos pés. Vamos voltar a cavalgar e dentro de pouco tempo o meu novo ajudante de ordens, o jovem gaulês Gilles de Troyes estará jantando comigo na abadia. Eu contarei a meus pares como tive a felicidade de encontrar um jovem tão inteligente e que sabe ler muito bem, em plena região camponesa.

E assim começaram, senhores, aqueles que seriam os três anos mais felizes da minha vida.

Continua: O druida celta e a descoberta do amor

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