sexta-feira, 4 de julho de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 2a. Parte  
MILTON MACIEL

Fim da primeira parte:
– Ah, com que então estás de olho nas riquezas da nova colônia, hein, malandrote! Pois fazes muito bem, tivesse eu tua idade e coragem, ia-me embora para essas terras de futuro também. Mas dize-me, como te vais arranjar em Lisboa? Com que dinheiro vais viver e comer, até que arranjes lugar num navio?

– Ah, meu pai, andei escondendo algumas moedas de Catarina, vou vender meu cavalo e os arreios e me arranjo com isso. Não preciso comer todos os dias, estou bem forte e lustroso, posso agüentar um pouco de fome, a causa é nobre.

2a. parte:

– Não, não! Não criei filho meu para passar fome. Fica tranquilo, teu pai te ajudará. Tenho também muitas moedas e outros valores, que venho escondendo da Catarina tua mãe também, desde muito tempo. Sabes, sempre alimentei a esperança de que um dia eu teria coragem de dizer adeus a essa tua mãe e aventurar-me pelo mundo. Para isso fui ocultando algumas posses. Mas o tempo pegou-me, a saúde das juntas também, enferrujei de corpo e de alma. Mas agora, ao saber da tua aventura, tu me enches de novo ânimo e entusiasmo. Já estou velho demais para escapar-me daqui, mas viverei a tua empreitada como se fosse minha. E esse dinheiro que guardei para minha fuga do cativeiro, dou-to todo a ti.

– Meu pai, quanta generosidade! Vais me fazer um grande bem. Mas não é justo que gastes todo teu patrimônio comigo. Dá-me menos, haverei eu de arranjar-me, já ia fazê-lo com uns poucos trocados mesmo.

– És um bom menino, meu João Ramalho. Sempre foste muito amigo de teu pai. Pois agora é a hora de teu pai mostrar que é teu grande amigo. Vamo-nos à casa, enquanto aquelas duas carolas bigodudas não chegam. Vou abrir um bom vinho, que tenho escondido também, e vou mostrar-te – ou melhor, já vou dar-te – o dinheiro que vai garantir o sucesso de tua aventura. Vem, vamo-nos já.

Dois meses tinham-se passado desde aquele sábado memorável para João filho. Ou João Ramalho, como o próprio pai passara a chamá-lo daquele dia em diante. Até que era bom, se as pessoas se acostumassem com esse nome, nunca iriam confundi-lo com o do pai. Gostava: João Ramalho, João barbudo, João da barba crespa e arreganhada!

Pois agora Catarina-mãe estava tendo um dos seus velhos ataques de pontada, entremeado de terríveis momentos de falta de ar e dor de estômago. Com se tonta estivesse, a gorda mulher se escorava nas paredes e gritava:

– Ah, mais tu não vais, não, senhor João Ramalho! Então porque tens uma barba ramalhuda já te consideras um homem capaz de desobedecer teu pai?

– Mas meu pai nunca que me disse para eu não partir para Lisboa! Ele sabe que é uma oportunidade de ouro para mim.

– Ora, não disse porque é um frouxo igual a ti! Vocês são dois gajos que não têm coragem de nada. E, muito menos, terão coragem de me desobedecer. João, ó João, onde estás, infeliz? Onde estás que não vens dar uns tabefes na cara desse teu ramalhudo de meia-tigela.  E olha que, se tu não dás, acabo-os dando eu mesma, sim senhor!

E Catarina mãe arrancou o avental da grossa cintura e ameaçou bater com ele, enrolado, na cabeça do filho, que se retirou rindo. Passou por Catarina-esposa, que assistia a tudo atentamente da entrada da casa. João encarou-a com um sorriso estranho e ela o olhou com deboche, dando toda razão à sogra, evidentemente.

João voltou-se para a casa e encarou as duas Catarinas. A moça, roliça e feia, do lado de fora; a velha, feia e roliça, na soleira da porta. E João, o ramalhudo, sentindo-se um grande homem, falou bem baixinho:

– Até nunca mais, sua rolhas-de-poço de maus bofes! Quedem-se por aí a retorcer seus bigodes!

Minutos depois estava com o pai e com Pedro Farias na bodega de Aristides Manco. O pai já tinha trazido mais cedo a pequena trouxa do filho, sem que as Catarinas o tivessem percebido. Pedro Farias já estava com a sua também. A despedida foi rápida e cheia de emoção, mas os dois Joãos souberam disfarçá-la. Dando um longo e apertado abraço no filho, João Vieira de Maldonado despediu-se com lágrimas fugazes nos olhos e falou-lhe, quase ao ouvido:

– Vai, meu filho. Sei que nunca mais meus olhos haverão de te ver. Mas tu hás de desbravar as novas terras para ti. Vai, cumpre teu destino, conquista esses Brasis e faz-te um homem rico e importante. Eu sei que tu podes, tu hás de triunfar!

No minuto final, ainda tirou do dedo seu anel de família e o colocou no dedo do filho. Depois, dando-lhe um puxão na barba arrepiada, falou pela última vez:

– Vai-te, João Ramalho, vai conquistar o Brasil!

E, dando as costas aos dois rapazes, afundou-se para a parte de trás da bodega, onde podia chorar sem ser percebido pelos outros homens.

João Maldonado filho, o João Ramalho, e seu amigo Pedro Farias correram a encarapitar-se na carroça de Antonio Tanoeiro, que partiu para dar início à etapa inicial da viagem que levaria os dois rapazes para Lisboa. De trás de uma árvore próxima, surgiu a filha do tanoeiro, que gritou uma despedida ao pai e cochichou depois consigo mesma:

– Adeus, João Ramalho, vai com Deus.

Tinha lágrimas nos olhos e apoiava as duas mãos sobre o ventre. Ali dentro, em segredo, começava a crescer o primeiro dos inúmeros descendentes de João Ramalho – o único do Velho Mundo.

Era o ano da graça de 1512.
CONTINUA

Nenhum comentário:

Postar um comentário