terça-feira, 19 de agosto de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO - 17a. Parte  
MILTON MACIEL

Final da 16a. parte:

– Vai saber, João,. Vai saber. João agora é índio, vai aprender tudo, até a remar direito, sem atrapalhar os outros.

E caiu na gargalhada, no que foi secundado pelos outros. Inclusive João Ramalho. Que estava feliz, bem alimentado e ansioso para começar logo a subida. Ao fim dela, não importa o quanto tivesse que andar depois pelo planalto, uma indiazinha bonita e sensual estaria de braços abertos à sua espera. E essa era agora a grande motivação de sua vida: Potira!

17a. parte: Aqui Paranapiacaba !
Como Jamari antecipara, o grupo começou a subir facilmente, andando por dentro do rio, que descia com águas ainda relativamente mansas pela parte menos íngreme da subida da serra. Ali a profundidade era minúscula de fato, com água à altura dos joelhos. A caminhada era rápida e agradável. Um pouco mais desconfortável para João Ramalho, que não conseguia se desfazer de suas velhas botas, por mais que o amigo insistisse para que as abandonasse:

– João não é índio no pé. Se deixa bota, aprende em seguida que pé fica grosso e se defende sozinho. Experimenta.

Mas o português desconversava e seguia calçado, trotando agora com as botas pesadas de tanta água. O barulho esquisito que isso fazia e os escorregões que ele levava nas pedras largas e limosas do fundo faziam com que, a toda hora, seus companheiros rissem ostensivamente dele.

Cerca de meia hora durou esse autêntico passeio por dentro do rio, na sua parte de menor aclive. Depois, este começou a aumentar sensivelmente e as águas, então, passaram a correr com velocidade cada vez maior. A profundidade foi também aumentando e verdadeiros caudais se formavam, dividindo o leito em estreitas gargantas espremidas entre as rochas. A correnteza e a profundidade cada vez maiores inviabilizaram o deslocamento pelo leito, de forma que, num certo ponto, sem que nenhum dos índios tivesse dito nada, todos eles saíram de repente de dentro do rio e passaram a andar pela margem esquerda, também ela eivada de obstáculos naturais, como lajes de rocha escura e escorregadia.

Esses obstáculos foram se tornando cada vez mais difíceis de transpor e chegou um momento em que os rapazes que iam à frente começaram a escalar um rochedo enorme e liso, de cerca de cinco metros de altura. Ao lado dele, a margem toda se erguia agora num paredão quase vertical, não deixando outra alternativa senão a escalada.

Os índios logravam fazê-la com evidente facilidade, acostumados que estavam a isso. Mas, para o beirão, aquilo transformou-se num verdadeiro suplício. Foi quando ele se convenceu que, com suas botas rangedeiras e encharcadas, de solas lisas e duras, jamais conseguiria grimpar-se ao rochedo. Então, seguindo a recomendação dos companheiros, fez o óbvio e inevitável: descalçou as botas e deu um jeito de prendê-las amarradas ao redor do pescoço, usando para isso dois pedaços de cipó buscados por Jamari num pequeno mato adjacente, que era também interrompido por abrupto paredão lateral.

Alguns minutos, vários escorregões e duas quedas sem maiores conseqüências, exceto as gargalhadas do companheiros, e João Ramalho conseguiu chegar ao alto do rochedo. Para ter que reiniciar de imediato o sofrimento, porque agora tinha que descê-lo, numa altura desse lado estimada por ele nuns três metros.

E esse foi só o começo da dureza para o português. Logo a seguir o rio encapelou-se em uma cachoeira de 6 metros de altura e a única forma de continuar implicava na escalada do íngreme paredão lateral, o que os índios começaram a fazer com a maior naturalidade, ao mesmo tempo em que conversavam e riam animados. Apoiavam os pés em minúsculas saliências da rocha, abraçavam-se a ela com um esforço que aparecia em seus músculos intumescidos e a iam contornando e subindo. Quando chegaram à metade, passaram todos para um conjunto de arbustos que margeavam a rocha, presos à vertente íngreme da lateral.

Agarrando-se agora à vegetação, conseguiram subir mais rapidamente e com maior facilidade. E, chegando no topo, começaram a chamar João Ramalho, que, apavorado, ainda permanecia lá embaixo. Solidário, Jamari esperava com ele. E lhe falou:

– Agora João tem que subir. Não tem medo, João. Faz tudo o que Jamari fizer. Tudo igual, onde eu piso, João pisa. Onde eu agarro, João agarra. E não olha pra baixo, bobage. Pensa que tem que subir, que isso é só começo. É parte mais fácil.

– Fácil?! Com a breca, queres tu dizer que vai ficar mais difícil mais à frente? Mas estão isso é impossível, homem de Deus!

– Impossível, nada. João aprende. Difícil só primeira vez. Depois aprende e perde medo. João vai se queixar é de dor nos braços e nos pés, mais isso passa. Vem, João, lembra que lá em cima tem recompensa muito boa: Potira espera João.

O português imaginou a bela Potira a esperar sorridente por ele, a abrir-lhe os braços amorosos. No instante seguinte imaginou-a abrindo-lhe também as pernas e isso inflamou-o instantaneamente. Tudo o que ele queria agora era vencer aqueles malditos rochedos, nem que, para isso, tivesse que se arrebentar inteiro.

Jamari deu um salto e agarrou-se na parede lisa. João Ramalho fez exatamente a mesma coisa, tratando de pisar e agarrar-se nos mesmos pontos que o amigo havia abordado. Deu certo!  Gemeu sob o enorme esforço feito com os braços, mas percebeu que dessa forma tinha firmeza. E galgou o rochedo na mesma velocidade de Jamari. Quando chegou à parte em que saiam da rocha para a capoeira íngreme de arbustos, uma touceira deles se desprendeu com o seu peso e ele balançou no ar prestes a cair lá embaixo. Mas o braço firme de Jamari o susteve a tempo.

– Ai, obrigado, amigo, que quase que me estuporo todo lá embaixo! Pode ser que me tenhas salvado a vida, homem. Fico a dever-te esta.

– Bobage! – foi tudo que Jamari falou, rindo tranquilo. E explicou como João devia agarra-se a ramos e arbustos com mais atenção, sem jogar-se afoitamente a eles:

– Até porque pode ter cobra e pode ter aranha venenosa ali.

– Hom’essa! Agora mesmo é que me deixas apavorado, ó Jamari! Com que então não basta eu morrer estabacado lá embaixo, posso também morrer picado por cobra ou por aranha! Ai, Jesus, será que chego lá em cima? Aí, minha Potira, será que vais virar viúva antes de casar-te comigo?

– Bobage, João aprende. Usa olho, se tem cobra, aprende a ver. Se tem aranha, aranha é grande, aprende a ver. É fácil. Olha primeiro, bota mão depois. Fácil.

Mas a via crucis do português continuou por mais duas horas, escalando paredões cada vez mais altos e mais íngremes, contornando cachoeiras, atravessando o rio várias vezes, a nado e lutando contra a corrente turbilhonante, porque o caminho pela margem oposta era menos complicado naquele trecho. O cansaço e a dor nos braços forma se acentuando cada vez mais, mas João Ramalho só pensava em duas coisas:

Uma, que ele não podia fazer feio, que se os rapazes à frente dele subiam, ele tinha que subir também. A outra, o que mais o ajudava, era usar sua imaginação para criar cenas em que entrava num rio ou se embrenhava no mato com sua Potira nuazinha. Ajudou-o o fato que a tarde foi escurecendo e a noite se aproximando, de forma que ele já não podia se impressionar com o abismo, cada vez mais fundo a seus pés, coisa agora de centenas de metros, já que não podia mais vê-lo na escuridão.

Continuou seguindo os companheiros e o infatigável Jamari, que ficava o tempo todo ao seu lado, orientando-o e animando-o. A um sinal deste, João começou a perceber que agora não havia mais escaladas a fazer, que estavam se afastando do rio, subindo por um percurso menos íngreme, por dentro de uma floresta pouco densa. O ruído intenso da água despencando pelas ravinas do rio foi se atenuando até desaparecer, a aclividade diminuindo progressivamente, até que, num dado momento, em plena escuridão, Jamari e os outros rapazes pararam de repente e começaram todos a comemorar.

Riam e batiam os pés com força no chão. E abraçavam João à maneira dos europeus, como tinham aprendido com ele.

– João chegou, aqui Paranapiacaba! Serra é nossa, João venceu. Agora nós vai descansar, comer e dormir. E fazer fogueira pra esquentar, que vai fazer frio demais pra João.. Tem outro rio aqui perto, bom pra pescar de noite. Nós pega peixe e lenha agora.

Para João era inacreditável que os índios caminhassem ali, em plena noite, como se fosse dia, como se enxergassem tudo normalmente. Para ele a noite, sem lua, com céu cheio de estrelas, era puro breu. Mas em pouco tempo havia fogueira, muita lenha e vários peixes sendo assados. O paraíso!

Os rapazes improvisaram rapidamente um abrigo com galhos de árvores e folhas de palmeira, para atacar o vento do alto da serra. João deitou-se no chão seco, o mais perto que pôde da fogueira e, de barriga mais do que cheia, dormiu imediatamente, sentindo cada músculo do corpo dolorido pelo enorme esforço que fizera na subida. 

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