quinta-feira, 30 de outubro de 2014

JOÃO RAMALHO NO PARAÍSO – 29ª Parte
MILTON MACIEL

Fim da 28ª parte:
– Chega, João. Assim não vai sobrar nada para Irani, coitada. Não esqueça que ela está para chegar.
– Mas...Mas tem que ser hoje?! Meu amor, por favor, eu nem conheço sua prima direito...
– Mas vai conhecer e, por causa disso, vai amar Irani. Pode deixar, eu conheço Irani por nós dois. Eu garanto. Ela é boa demais.
– Boa demais és tu, meu anjo. Boa como ninguém pode ser neste mundo de Deus.
– Ah, João, deixa esse teu Deus de castigos e proibições de lado! E, pelo amor que eu sei que tens por mim, eu te peço: recebe Irani no teu coração, como recebeste a mim. E assim nós três seremos muito, muito felizes. Nós quatro, quando André chegar e tiver duas mães que cuidem dele. Agora, vem, deixa que eu termine de te lavar e te preparar para tuas novas núpcias.

29ª parte: Um amor que europeu não entende

Uma hora depois o sol tocou o horizonte oeste e terminou de incendiar em rubro as nuvens e o céu, que se olhavam nas águas calmas do riacho. Junto com o ocaso, chegou Irani!

Bartira correu a receber efusivamente sua prima e levou-a para dentro da oca, onde João Ramalho acendia a primeira tocha. À luz bruxuleante, o português contemplou pela primeira vez, de forma lenta e cuidadosa, o rosto e o corpo da prima de sua esposa, daquela que ele tinha, quisesse ou não, que tomar como sua esposa nesse momento.

A primeira impressão foi de fato muito favorável. A mocinha era realmente atraente, de belo semblante e – impossível não reconhecê-lo – bastante parecida com Jamari. E, pareceu-lhe também, ter alguma semelhança com a própria Bartira. Eram ambas mais altas que a média das índias, assim como os pais delas, Tibiriçá e Caiubi, eram homens bem mais altos também.

Os corpos era idênticos, iguais aos da maioria das jovens índias que ainda não tinham tido filhos: rijos, suaves, cabelos lisos e escorridos, seios túrgidos, ventre reto, a pequena depressão saliente ao final dele dando aquele ar de delicadeza e feminilidade extremas. Sim, fisicamente ao menos, Irani era realmente bela!

A indiazinha esperava, constrangida, que João Ramalho terminasse de fazer seu minucioso exame. Era evidente que estava extremamente nervosa, a ponto de mostrar um certo estremecimento. O rapaz percebeu isso e sentiu-se um pouco culpado, ao lembrar que a menina devia estar numa tensão muito grande há um bom tempo, receando, talvez, uma recusa e sua vergonhosa devolução a Jurubatuba. Então João falou pela primeira vez à sua jovem pretendente, procurando acalmá-la e, ao mesmo tempo, acalmar a si próprio:

– Sê bem-vinda à nossa casa, ó Irani. Tens a simpatia de teu irmão Jamari e a beleza de tua prima Bartira.

A indiazinha falou com um fio de voz, que mal lhe saía da garganta apertada pela angústia:

– E João Ramalho... deixa... deixa Irani... ficar? – terminou a pergunta já com lágrimas nos olhos.

Bartira adiantou-se ao marido na resposta:

– Claro que ele deixa, Irani. Pois ele não acabou de dizer que achou você bonita? Qual homem seria estúpido de recusar uma esposa como Irani? O nosso João é que não – disse isso sorrindo para o seu homem, que haveria de ser, a partir daquela noite, o homem das duas primas. E reforçou:

– João Ramalho aceita Irani como sua esposa, não é? – e tomando a mão delicada da prima, colocou-a dentro da mão enorme do peró de Vouzela.

João olhou as duas moças ainda perplexo, viu o olhar de confiança em uma doce Bartira, o olhar de pânico em uma trêmula Irani e respondeu, com voz ainda arrastada:

–  Aceito, pois.

Bartira sorriu, semblante iluminado. Irani emitiu um ruído estranho e desabou no chão, desmaiada!

Bartira sentou-se ao chão e tomou a prima no colo, dando-lhe suaves batidas no rosto e nas mãos, enquanto emitia sopros sobre o seu nariz. A um sinal seu, João correu a buscar uma cuia com água, que ela jogou com suavidade no alto da testa da moça, dizendo:

– Pobrezinha. É o medo, João. Medo é uma coisa horrível! Pobre menina, deve ter sofrido um horror com medo de ser achada feia e sem graça, de ser mandada embora.

João Ramalho olhava aquela cena estupefato: Quanto amor ele via nos olhos e nas mãos carinhosas de Bartira, quanta nobreza naquela mulher tão jovem e já tão sábia! Só então ele foi capaz de se colocar no lugar de Irani e de avaliar o tormento pela qual a garota passara. Imaginou-a andando sozinha toda a enorme distância entre Jurubatuba e a oca de Bartira e João, cada passo entremeado pelo medo de ser recusada no dia do seu casamento. E concluiu consigo mesmo:

Eu sou uma besta, um ignorante, um grosseirão! Um português parvo e cheio de preconceitos, indigno de viver com as pessoas generosas deste povo guaianá. Pobre mocinha, a sofrer tanto por minha causa, pudesse eu imaginar isso... Mas não, não sou capaz, eu sou um primitivo, um tapado, o selvagem aqui sou eu. E elas são a bondade e a doçura. E Deus – ou seja o que for – me concede essa benção em dose dupla, na forma de duas jovens e formosas mulheres! Ah, mas eu não as mereço, não as mereço mesmo... 

Felizmente Irani começou logo a recuperar a consciência. E, envergonhadíssima pelo desmaio, aninhou-se ainda mais no colo de Bartira, escondendo o rosto dentro dos longos cabelos sedosos da prima. João sentiu-se tocar ainda mais pelo comovente daquela cena. Sim, ele aceitava Irani como esposa, mas o fazia porque essa era a vontade de Bartira. E ele não teria coragem de negar nada a ela. Simplesmente porque ela merecia tudo!

As duas moças, após algum tempo, ergueram-se com graça e encaminharam-se para o pequeno fogão que João Ramalho fizera na oca, à maneira dos fogões de Portugal. Conversando e sorrindo, as duas preparam rapidamente uma refeição substancial. Depois sentaram-se ao chão com João Ramalho e desfrutaram dos alimentos com verdadeiro deleite. Era o banquete de núpcias!

Então Bartira fez todos levantarem e levou-os para as peles, que João Ramalho havia montado à maneira de uma cama alta européia. Apagou a tocha e falou:

– Vocês já estão casados desde o momento em que João Ramalho disse eu aceito. Mas estão os dois muito sem jeito e Irani deve estar esgotada, cansada demais. Então vamos dormir, descanso é o que mais vocês precisam. Amanhã eu ajudo vocês e consumarem o casamento, a brincar de amor.

Aliviados e agradecidos, os dois beijaram Bartira e trataram de dormir o mais rápido que puderam.

CONTINUA

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