quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

LUCAS – Mais Um Conto de Natal 
MILTON MACIEL 

   Lucas encostou o corpo (Corpo?!... Aquilo era corpo? Bem, ossos, digamos. Ossos, cabelos, sujeira, unhas, cachaça. Agora sim! Essa é uma versão melhor para a figura de Lucas Balmarin. Gaúcho de nascimento, filho de colonos, neto de italiano com bugra, mendigo de profissão, duas fraquezas fatais: jogo e cachaça. Ou melhor, três: mulher de bunda grande, também).

  Lucas encostou o corpo (Espera aí! dever de justiça: Lucas já teve um corpo até que razoável. Naquele tempo, rapaz novo da colônia, bom de enxada e de jogo de osso, corrias as casas de chinas, atrás das de traseiro empinado. É... mas já faz tanto tempo, besteira perder tempo lembrando. Hoje ele é só osso, cabelo, sujeira... Melhor seguir com a história, o leitor se impacienta).

  Bem, então Lucas encostou o corpo (Corpo! Já pensou? Um metro e oitenta de macho gaúcho reduzidos a uns cinqüenta quilos e olhe lá! “Bá, tchê! Que baita fria essa de descer do caminhão do Baixinho em São Paulo!”  Pois o Baixinho não era flor de camarada? “Só falava da sua Paraíba e de uma tal de Campina Grande, cidade buena que só ela, lugar de se viver regalado, muita cachaça, muita mulher.” Não tinha era trabalho, mas isso Lucas não queria mesmo. Pois o Baixinho não o levava de carona para a Paraíba? Já não estava tudo acertado? É, mas na hora H, posto-restaurante em Guarulhos, muito calor, bebida mais quente ainda, de repente aquela idéia besta de ficar... Lucas acabou sumindo. Coitado do Baixinho, já falava compadre prá cá, compadre prá lá. Mas a vida é assim, cada homem tem seu destino, acaba tomando seu rumo, se quer ou se não quer.

  Lucas encostou o corpo para descansar (Descansar? E essa agora?  Só se cansou os queixos, de tanto beber no gargalo.   É, até que o dia tinha sido bom. Batizado na Igreja do Brooklin, gente bacana, esmolas mais gordas, parecia até os bons tempos. Bêbado de sorte: numa crise braba dessas, batizado realizado logo após missa de sétimo dia, intenção da alma de industrial recém-suicidado, crise feia... Mas, como se diz no Sul, “Criança e borracho, Deus anda com a mão por baixo”. Bêbado de sorte! Logo depois esmolas gordas, batizado de criança importante, na certa um lorde-bebê lá do Morumbi. Deu pra uma garrafa inteirinha, das boas).

   Lucas encostou o corpo para descansar (Ah! Por falar em Morumbi: Lucas adorava o Morumbi. “Bairro de gente bacana.” E tem mais: era são-paulino roxo. “Sô pó-de-arroz” (Acho que porque torcia para o Fluminense carioca, também; e aí fazia confusão). Adorava o Morumbi, o São Paulo e, é lógico, mulher de bunda grande. Mas esse negócio de mulher... Bem, coisa do passado. Há quanto tempo não sabia o que era uma? Afinal, Lucas não é qualquer mendigo. “Bêbado eu sô, maloquero, não! Sô pó-de-arroz.” É, Lucas não dormia com moloqueira, mulher chinfrim, suja de rua. Preferia assim. “É minha vida, pô!” Tá certo, cada um come o que quer. Ou não come. Pois, como bem diz o Lucas, “Pues não hay, neste loco mundo, lugar até pra vegetariano, um esquisito que não come churrasco porque não qué? E até pra faquir, um santo que vive só de jejum, de só comê ar e reza?”).

   Bom, mas como eu dizia, Lucas encostou o corpo para descansar. Bem no nicho da parede da casa de Madame (Perdão, esqueci de dizer: Lucas estava de volta ao seu Morumbi, seu bairro do coração, lugar de gente bacana, do São Paulo. Grande Morumbi, perfeito “Se não tivesse tanto guarda particular cavalo, sempre empurrando os pobre dos magro, se fosse nos bons tempo eles iam vê!”

Estava no Morumbi, no nicho da casa de Madame. Era uma casa muito grande, toda rosa-escuro, numa daquelas ruas bem largas, cheias de árvores enormes. Lucas adorava as árvores enormes, lembravam a serra gaúcha. E adorava mulher de... Bem, isso eu já disse. Mas essa era uma das razões de Lucas gostar daquela casa: a filha mais velha de  Madame  tinha um traseiro  que  “Bá, tchê! Cosa de cinema, cosa de praia do Rio, que não morro sem ir lá!”)

  Lucas era um voyeur de classe. Legítimo. Só olhava. “Bueno, olhar não tira pedaço.” Ainda bem! Se tirasse, coitada da filha de Madame. Da filha mais velha, porque a outra: “Pobrezita, dá pena tchê, é um desbunde só.” Lucas olhava com respeito. Mais. Olhava com devoção. Devoção de voyeur de classe, de artista ante sua musa. Lucas tinha alma de artista. Embora, neste caso, a musa não fosse propriamente a moça, mas sua bunda empinada. Pobre Lucas... Ninguém jamais lhe disse que ele é um voyeur, ele adoraria saber disso. “Francês é língua de bacana, deve tar assim de francês no Morumbi.”

   Bem, mas onde estávamos? Ah, sim, Lucas encostou o corpo, etc. Sim, encostou ali no nicho (Nicho, providencial, primor da arquitetura do Morumbi: cabia certo um homem bem magro, oculto pela folhagem das trepadeiras). “Nome más sem-vergonha! Não gosto de erva com esse nome em casa de gente que respeito.” Lucas era respeitador, a longa abstinência o fizera até pudico. Olhava, é claro, que olhar não tira pedaço nem nada. Mas pensar em passar a mão... “Tá loco, tchê?! Más respeito com a bunda da mocinha. É cosa de arte, vê se tu entende.” Bom sujeito, o Lucas. Respeitador, calmo, uma alma de artista. Artista, só?!  Não, filósofo. E que filósofo!

   Mas, filósofo ou artista, o fato é que Lucas encostou o corpo no nicho da parede da casa de Madame. Madame era a outra razão de Lucas vir a essa rua, a essa casa bendita. Madame era o máximo! “Coitada, deve tar mal das perna, sem gaita, dinheiro curto, não tem guarda. Bom pra mim, mas é injusto. Mundo ruim, desgraça de uns, sorte de otros.” Para Lucas, Madame não merecia estar de dinheiro pouco, crise mais sem-vergonha, mais desrespeitosa, não reconhecia uma pessoa boa no meio das outras. “Mundo velho sem portera, planeta de doido!”

   Lucas se encolheu contra a parede. Seu corpo (corpo?) conseguiu ficar mais magro ainda. Acho bobagem. Do jeito que vai, daqui um tempo só uma folha já o esconde. Magro demais, esse Lucas! Mas o encolhimento fora causado pela chegada da filha mais velha de Madame, que acabava de estacionar o carro. “Oba!  Do otro lado da rua. Que bom, dá prá ver más tempo!”. A moça trancou o carro, atravessou a rua, entrou em casa, Lucas murchou. “De novo de saia! Isso não vale. Governo más mole esse! Eu, presidente, baixava decreto: só pode usá saia mulher sem trasero. As otra, era tudo no shortinho ou na calça comprida.”

   Mas era um filósofo, logo se consolou. Afinal, muito mais importante era Madame. Mas continuou espremido contra a parede por muito tempo, força do hábito. “Sabe como é, se me enxergam vão pensar que sô bandido. Mundo loco, este. Hay gente mui malvada: os guarda particular, os polícia, os ladrão que roubam armado, os que desrespeitam mulher e gente velha. Se pego um, eu mato!”

  E, enfim, o momento supremo: Madame ia rezar. Lucas distendeu-se todo, relaxou os músculos, fechou os olhos assim que viu a luz trêmula das velas na alta vidraça fosca e colorida. Preparou-se. A música ia começar. “Cosa más linda, tchê! Parece até que é Deus no céu, que tá tocando sua cordiona! Um som más diferente, cosa de aparelho. Mas que faz a alma da gente subir que nem fumaça no campo.” Lucas encostou a cabeça na parede, para ouvir melhor a doce voz de Madame:

    “Almerinda, seu traste! Já não mandei avivar a lareira do meu quarto quando vou meditar? Idiota! Agora vou passar frio com o collant de ginástica.” Mas, enfim, fez-se silêncio. Madame ligou o aparelho, Deus começou a tocar cordiona no céu... Lucas estremeceu, esperou a prece de Madame. Perdeu as palavras iniciais, mas isso não tinha importância. Ele não entendia nada mesmo. Era “palavreado em língua enrolada, dos estrangeiro, com cantoria, chamava um tal de OOMMM. Deve de sê um grande santo o então um anjo dos graduado.”

   Mas a parte melhor, aquela que ele adorava mesmo, essa ele sempre ouvia, já era em língua de gente:  “É prá mim, pros como eu!”, emocionou-se. Madame entoava: “... minhas vibrações pelos aflitos, Senhor. Pelos que sofrem, pelos que passam frio e fome neste mundo ingrato. Pelos bêbados na rua, pelos doentes nos hospitais, pelos presos nos cárceres, pelas infelizes protitu...”

  Mais não conseguiu ouvir, só o barulho inesperado de guinchar de freios, porta de carro batendo, motor de moto rugindo, gritos. Saiu do êxtase, meio tonto de enlevo, meio tonto de cachaça. Não entendeu bem o que se passava. A filha mais moça de Madame descia do carro, aos gritos. Dois homens a seguravam, deviam ter vindo na moto, um mulato e um branco. O mulato segurava um revólver. O branco, o pescoço fino da filha de Madame.

  Despertado, enfim, do seu torpor, Lucas ficou enfurecido: “Os bandido! Tão querendo pegá a filha da Madame! Devem sê cego, ela nem tem bunda.” Por um rápido instante passou em sua mente a imagem da filha mais velha, sua musa: podia ter sido com ela e isso o deixou mais furioso ainda. No instante seguinte lhe veio a imagem de Madame, coitada, sofrendo, os bandidos levando sua filhinha por aí, fazendo maldades com ela. Pobrezinha, nem bunda tinha. Foi demais! O sangue italiano explodiu, misturado ao de índia charrua, sua avó. Lucas saltou do esconderijo sobre os dois homens, dando um berro horroroso de raiva e indignação.

   Foi tudo tão rápido, mal dá pra contar. Os bandidos (que não queriam nada com a garota magricela, queriam era entrar na casa para roubar) e a própria moça levaram todos o maior susto de toda a vida deles. Aquele vulto terrível, alto, esquelético, desgrenhado, sujo, enorme cabelo meio claro meio imundo, um farrapo cobrindo todo o corpo e, o que é pior, saindo do nada, no lusco-fusco do início da noite. Do nada? Pior, o bicho tinha saído era de dentro da parede, como é que pode?!  Só podia ser coisa de assombração, coisa do outro mundo, alma penada, o próprio cão em pessoa. Aí os três, vítima e atacantes, danaram a gritar ainda mais alto que o Lucas. Mas eram berros de puro cagaço, pavor total, absoluto.

    O mulato, com agilidade de bicho acuado, se precipitou sobre a moto e partiu como um furacão, cuidando da própria pele e deixando o companheiro para distrair o demônio. “Bruto castigo! pensou, olha o que me espera, hoje mesmo largo esta vida de bandido, viro beato, faço promessa, pago novena. Aí, Meus Deus, tenha piedade!!!”

 O bandido branco viu que estava na pior, não tinha saída, ia vender caro a pele ao coisa-ruim:

“Minha alma ocê num leva, seu cão dos inferno!”

Viu o revólver que o mulato deixara cair – Cagão duma figa, deixava-o nas mãos do diabo! Agiu mais rápido do que pensou. Jogou-se ao chão, catou a arma, descarregou o tambor. Três em direção ao covarde que fugia na moto, errou, longe demais. Voltou-se para a aparição do demo, deu mais três vezes no gatilho. “Te esconjuro, alma do cão!” O vulto, magro demais para ser atingido, cresceu em sua direção. Uma dor horrorosa lhe entrou na altura da orelha, sentiu, com desespero, o cheiro que deve ter o próprio inferno, cheiro de coisa podre, de coisa ruim. Devia ser o tal de enxofre de que falavam. Deu um empurrão na coisa, pernas prá que te quero, deve estar correndo até hoje.

   Lucas limpou a boca, cuspiu uma coisa, sentiu um gosto esquisito. No chão, rolou um pedaço de orelha branca, com brinquinho de ouro e tudo. Lucas não viu nada, no escuro. Voltou-se à procura da menina, que já batia o portão de entrada atrás de si. Gritava ainda, sem parar, descontrolada, apavorada com o vulto horrendo que a atacara e aos bandidos. Voltou-se, terrificada, ainda um último instante, enquanto o portão se fechava. Uma fração de segundo, o suficiente para ver que o a criatura tinha sangue na boca. Deus do céu, era um vampiro!

  Dentro de casa o susto foi terrível também. Madame, a filha mais velha, as empregadas, Almerinda aos prantos, gelada com a visão do vampiro. Ela é que abrira o portão para a menina, providenciara o rápido resgate, puxando com toda a força a garota, que estacara a tremer totalmente travada, aos berros.

   Mas Madame agiu rápido. Era prática, era uma mulher de negócios. Não acreditava em vampiros, “Isso é bobagem de novela, de filme idiota de terror”. Indiferente aos gritos de “liga prá polícia!”, ligou foi para a mansão do vizinho do quarteirão de cima. Dois minutos depois, dois dos vigilantes da casa do vizinho, industrial importante, chegavam correndo. Madame chamou-os ao canto, explicou logo: “Besteira essa história de vampiro. Tenho certeza que vi um homem bem assim, alto e magro, todo esfarrapado, com um cabelo de assombração. Vi umas duas vezes, andando nestas imediações. É evidente que os bandidos assaltaram a minha filha e tenho certeza que esse homem a salvou. Deve ser um louco, perigoso com certeza. Quero que vocês procurem bem. Se acharem, já sabem: surra de criar bicho! Assim o desgraçado nunca mais põe os pés por aqui.”

  Madame falou, escorregou algumas notas para as mãos grossas dos vigias. O suficiente para eles saírem loucos de raiva, prontos para exorcizar vampiro favelado. Ceará, o maior deles, foi logo encontrando Lucas, a poucos metros dali. Ceará estava possesso, chegou batendo, chutando, gritando pelo companheiro. Este assistia a tudo, divertido: estava ocupado, tentando tirar um brinquinho de ouro de um pedaço de orelha caído na calçada; encontrara logo ao sair, noite de sorte. Além disso, não precisava bater também no mendigo.

   Ceará era suficiente. Além disso, estava necessitado, coitado. Há dias que não brigava, mais de semana sem dar porrada em ninguém. Ceará ficava com os nervos à flor da pele. Em boa hora aparecia aquele mendigo providencial. Com certeza agora, depois de descarregar uns bons sopapos, ia se acalmar. Aí ficava romântico, cantava bolero dor-de-cotovelo, chegava a encher os olhos de lágrimas, homem sensível estava ali. Um bom camarada, o Ceará, se pudesse distribuir uns chutes e porradas regularmente.

Mas agora era preciso acalmar o homem, arrancá-lo de cima da presa.  Quando chegou lá, levou um susto: “Pára, Ceará, o cara é magro demais, assim tu mata ele, vai dar a maior mão-de-obra pra sumir com o corpo”. Corpo?  – pensou o vigia – vai é espalhar osso pela rua toda, é só chamar os cachorros, imaginou divertido. A caro custo conseguiu retirar o companheiro da presa; encolhido no chão, o farrapo de homem, dentro dos farrapos de pano, não gritava, não fazia escândalo, só gemia.

Devia estar acostumado a apanhar, o desinfeliz. “Mermão,  assim que tu pudé andá, se manda daqui na carreira. Se a gente te encontra outra vez nestas banda, tu é um vampiro morto. Ah, por falar nisso: toma, leva a orelha, tu mereceu. Afinal tu foi herói, é o teu troféu. O prêmio, a dona já mandou o Ceará providenciar pra ti. Eu fico com o brinco.”

   Madame, informada do acontecido, deu-se por satisfeita. Recusou, mais uma vez, o oferecimento que os vigias já lhe haviam feito: um primo do Ceará para vigilante de sua casa, PM recém-expulso da corporação, coisa fina, de primeira. “Não, muito dinheiro, não vale a pena, com tanto guarda na casa de vocês, aí em cima.” Recolheu-se, contrafeita.

   “Que dia, meu Deus! Uma pobre mulher não pode mais nem meditar em paz, orar pelos aflitos, demonstrar generosidade e desprendimento.” Xingou outra vez Almerinda, aquela burra, a lareira estava apagada. Xingou os bandidos, o mendigo, os guardas, os empregados, os fornecedores, até se acalmar. Aí acendeu de novo as velas e os incensos, colocou os cristais sobre os chakras, sentada em pose de lótus, dentro da pirâmide de varetas de alumínio.

   Não conseguiu se concentrar logo, era uma tristeza ver os pneus em sua cintura, quando estava sentada assim. “Preciso criar vergonha, dar mais atenção a mim, parar de pensar só no bem dos outros, fazer uma lipo. Ou vou pro Spa, só três mil dólares, mas e o tempo, meu Deus, e o tempo?...” Aí lembrou-se de seus Mestres Ascensionados. Mestres espirituais encarregados de pessoas da sua importância, do seu nível social, certamente não eram Mestres comuns, como os que cuidam da gente inferior. Na certa não iam gostar de vê-la com preocupações tão materiais neste momento. Melhor que se concentrasse logo em sua meditação, que elevasse sua mente, que fizesse suas poderosas orações.

    Suspirou, estendeu o braço, ligou a música, os sintetizadores trouxeram o alfa imediato; Madame sentiu-se enlevada, puro espírito a pairar muito acima das coisas mesquinhas desse mundo material. Muito acima dessa gentalha inferior que a servia em casa e na empresa, muito acima de suas próprias filhas, pedantes universitárias a fazer pouco de suas práticas espirituais, sem saber dar valor ao nobre espírito superior que tinham o privilégio de ter como mãe. E orou, sua voz agora muito doce:

   “Aceitai, Senhor, as poderosas vibrações de minha mente generosa e de meu coração cristão, desdobradas em amor por toda a humanidade; por nossos irmãos sofredores, pelos enfermos nos hospitais, pelos presos nos cárceres, pelos bêbados nas sarjetas, pelas infelizes prostitutas. Daí, Senhor, teto e alimento para eles, escola para as crianças, força, disciplina e obediência para os trabalhadores. Preservai, Senhor, as nossa sábias instituições, protegei as propriedades contra os assaltos e as fazendas contra as invasões, iluminai a mente do nosso bondoso presidente, sustentai sua maioria no Congresso. Daí novo alento ao mercado das fibras de algodão. Fazei, suplico-vos com Amor, subirem as ações da Telefônica no pregão de quinta-feira. E eu, em troca, vos darei cada vez mais minha fé, as vibrações amantíssimas de meu coração  e minha infinita devoção, meu Senhor e meu Deus...”

   O alfa virou delta. Instantes depois a música acabou e só sobraram, altos e compassados, os roncos de Madame. O que a contrariava demais: não conseguia levar muito longe sua disciplina espiritual, logo vinha aquele sono incoercível, dormia horas assim. Acordava toda doída, babando, com frio. Muito chato. Os Mestres iam ter que dar um jeito...

   Ah, sim! O Lucas, não é? Bem ele não se recuperou totalmente, até hoje. Não por causa da surra, estava acostumado. Só duas costelas quebradas, uns arranhões, dor pelo corpo todo (corpo?) que acabou passando, como sempre. Uma viatura da PM o recolhera e levara ao pronto-socorro, os soldados assustados com seu estado, os médicos dizendo que até furo de bala ele tinha, na pelanca da coxa. “Frescura, tchê! Que bala, que nada. Então eu não ia sabê?!”

   O duro mesmo, o pior, é ter que suportar a falta da casa de Madame. Não poder ir mais naquela rua, depois de ter salvo a filha de Madame... que ironia cruel. “Mundo loco, barbaridade cabeluda!” A falta da musa não o incomodava tanto: “Bueno, bunda grande hay por todo lugar.” Já tinha até localizado uma outra casa no Morumbi, lá pros lados do Hospital Israelita, com uma babá de calça branca bem justa “mui bem dotada, mas uma Raimunda...”  Mas, que fazer, quem vê cara não vê...

   O duro mesmo, o que maltrata, “É ficá sem a santa que é a Madame, sem suas música, sem suas reza, aquela parte que fala dos bêbado... Ah, Madame! Alma de Deus, anjo na Terra, que saudade!” E Lucas chora...


   Acabou. Como? Ah, você está reclamando por causa do subtítulo, não é? “Mais um conto de Natal.” Ora, acorda! É um conto para o seu Natal, deixe para reler quando chegar o dia. Ou você acha que gente como o Lucas tem direito a Natal? Acorda, cara!


Do livro  "HELLO, TCHÊ ! - Contos do Norte e do Sul"  -  MILTON MACIEL, Idel - 2013

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