sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O  AMIGO  CAMELO  AZUL (um conto com vapores etílicos)
MILTON  MACIEL 

O Betão tinha bebido demais. Pelo menos umas dez, não vinte, não... bem, uma porrada de doses de uísque – ou era vodka? – com cerveja. Esse era o número mais exato que ele conseguia lembrar. Aliás, lembrar... lembrar, ele não estava conseguindo lembrar de nada agora. Mas uma coisa era certa: ele estivera num restaurante com a turma, numa confraternização de... bom de uma porcaria qualquer, como é que ele ia saber?!  Era em algum lugar na região da Paulista. Ou será que era em São Miguel Paulista? Ou vai ver era em Paraguaçu Paulista e ele estava no interior. Bom, isso não tinha importância agora.

O que importava é que ele tinha que ir ao banheiro. Pra fazer o que?... Não tinha bem certeza. Mas ia descobrir quando achasse um. Um garçom gordo de bigode, que parecia dois – ou o cara tinha um irmão gêmeo trabalhando ali? – Bem os dois garçons, então... falaram e apontaram, juntos, que ele tinha que passar por uma porta larga lá na frente para chegar ao banheiro. Ele procurou a porta mais larga que viu e passou por ela. Foi dar em um corredor largo prá burro. Cheio de elevadores.

Estranhou que, para chegar ao banheiro, tivesse que usar elevador. Tinha uns... tinha uma porrada de elevadores por ali, ele entrou num de porta aberta e apertou um botão. Mas aí lembrou que ele não sabia em que andar ficava o banheiro, então apertou todos. Poxa, tinha uns... uma porrada de botão naquele painel maluco! Betão foi apertando um por um e o elevador começou a subir no tranco. Devia estar com defeito aquela porcaria, porque parava em tudo que era andar. Droga, ele estava apertado!

Bem, depois de alguns minutos, Betão chegou ao último andar do prédio. Resolveu sair porque tinha que desaguar com urgência absoluta. Mas o corredor estreito que ele achou, mal iluminado, só levava para uma escada. Betão achou que aquela era a escada do banheiro, só podia ser. Subiu. A escada terminou noutra escada. Ah, essa é que era a escada do banheiro, só podia ser! Era uma escada de metal, bem íngreme. Betão subiu nessa também. E acabou desembocando em um terraço enorme. Acima dele, só o céu cheio de nuvens e de poluição, o que tirava qualquer dúvida: ele estava era em São Paulo mesmo! Bom, era um terraço. Apertado como estava, Betão se chegou a uma mureta, fez pontaria pra cima e mandou uma ducha de cerveja quente lá pro outro lado. Que alívio!...

Mas acima dele, a rigor, tinha mais alguma coisa, sim. Tinha um treco grande e esquisito, enorme e esquisito, filha da puta de grande e esquisito! O treco era feito de uns... uma porrada de peças de metal e em cima tinha um monte de outros trecos redondos que nem bandeja de pizza, só que grandes pra cacete.

Aí o Betão viu um cartaz e se aproximou. Ficou esperando que o diabo do cartaz parasse de dar voltas para poder ler. Mas a porcaria do cartaz ficava girando junto com o terraço e o treco esquisito cheio de coisa redonda esquisita lá em cima. Ah, tinha uma porrada de luzinhas vermelhas no treco giratório, também. Que diabo podia ser aquilo lá em cima do terraço do restaurante?

Aí o cartaz deu uma vacilada, parece que parou pra dar uma respirada e o Betão conseguiu ler: “TORRE DE MICROONDAS. Não se aproxime.”

Pô, então era isso! Mas que puta microondas enorme aquele! Bom, devia ser da cozinha do restaurante. Poxa, ali dava pra botar uns mil pratos pra esquentar. Ah, então aqueles trecos redondos lá em cima estavam explicados: eram os pratos esquentando no microondão dos caras. Poxa, como é que a comida não caía toda no chão, se os pratos grandes estavam todos na vertical. Ora, devia ter cola naquele grude, coisa de gororoba de restaurante. De mais a mais, por que é que ele tinha que entender de microondas gigante? Vá se catar!

Pensando nisso, o Betão resolveu se catar, pra ver que raio de coisa tinha nos bolsos, que estavam estufados pra burro. Achou duas garrafas de uísque – ou seria vodka? – e dois copos. As garrafas estavam pela metade. Betão ficou chateado: Pô, deve ter dado um trabalhão pra afanar no restaurante e eu só tenho, matematicamente, uma única garrafa. Diabo de uísque, devia escapar da garrafa, mesmo estando ela com a tampa! Diachonão fazem mais garrafas como antigamente... Por isso mesmo, ele resolveu se apressar e beber logo tudo o que restava, antes que aquilo sumisse também.

O primeiro copo ele colocou no parapeito daquela mureta, por sobre a qual tinha mijado. Mas aí esbarrou no copo e ele caiu do outro lado. Como não ouviu barulho de vidro quebrando, ele se inclinou sobre a mureta para olhar do outro lado. Que cagaço!  Pô, do outro lado da mureta tinha o maior precipício! O copo ainda devia estar caindo. Só aí o Betão se tocou que estava no alto de um prédio de uns vinte, uns trinta... de uma porrada de andares. Ficou apavorado, ele tinha mijado em São Paulo inteira! Deu o maior frio na barriga, tremedeira nas pernas, tinha pavor de alturas. Lá embaixo, uma avenida inteira, cheia de carros de faróis acesos, ficava girando também, que nem os trecos do terraço. E dizer que ainda havia ignorantes que duvidavam que a Terra gira ao redor do Sol e o que o homem já chegou à Lua! Santa ignorância...

Encagaçado, paúra de altura, Betão resolveu sentar no chão mesmo. Botou no chão copo e garrafa e serviu-se de uma dose pequena, só até à boca do copo. Foi quando começou a beber que descobriu que não estava sozinho no terraço do microondas. Atrás dele estava um simpático camelo. Um camelo dos grandes, com aquele típico pelo azul escuro brilhante, inconfundível. E umas... bem, uma porrada de corcovas, como um camelo tem que ter, pra ser camelo de fé. Aí o Betão, muito solidário, achou que o camelo devia estar com fome, por isso estava miando alto daquele jeito. Se bem que podia estar era com sede, pois ele tanto miava como latia, tudo ao mesmo tempo. Betão tentou consolar o camelo, falando no seu linguajar misturado de tu e você:

– Olha, amigão, tu é um puta dum cara corajoso prá ficar nestas alturas. Mas eu acho que você deve estar com fome, porque eu não estou vendo comida pra camelo aqui. A propósito, o que é que camelo come mesmo?... Ah, que burrice a minha! Come areia, é claro. Pô, amigão, eu não tô vendo areia aqui, tu se ferrou, camarada. A não ser que caia comida lá de cima dos pratões do microondas e tu fature as sobras, seu malandro.

Mas o camelo não confirmou essa ideia. Fez cara de chateado e mugiu como boi. Então o Betão, muito caridoso e humano, sacou qual era a dele:

– Já sei, meu chapa, tu tá é a fim do meu uísque, malandro. Pois tá certo, vamos dividir esta garrafa aqui. Tu bebe no copo e eu bebo na garrafa. Desculpa, eu tinha outro copo, mas o desgraçado resolveu voar de parapente e se estatelou lá em baixo. E Betão encheu generosamente o copo até à boca de novo, passando-o para o camelo.

O camelo pegou o copo com a mão direita, que devia ter pra lá de dez dedos, todos cheios de anéis, e emborcou tudo de um gole só.

– Pô,  camarado, assim tu se dá mal, essa coisa sobe pra cabeça e te deixa muito doidão. Tu tem que beber com moderação, sacou, como na propaganda, como eu bebo.
Moderação, malandro.

E voltou a encher o copo do camelo, que desta vez bebeu com moderação, dois goles para acabar com um copo. Betão aprovou, deu um tapão amigo nas costas do camelo, fazendo saltar a gravata de bolinhas vermelhas no peito dele:

– É isso aí, camarado. Assim é que se faz. Moderação.

E continuaram a beber o resto da noite, a garrafa tinha uns... uma porrada de uísque lá dentro, não dava pra imaginar como é que os caras conseguiam engarrafar litros e mais litros numa garrafa normal só. Tecnologia!...

Bem, sabe como é: Apesar de os dois beberem com moderação, o uísque acabou subindo mesmo. Aí o camelo começou a fazer confidências, contou que saiu da África porque tinha muitas dúvidas a respeito de sua verdadeira vocação, seu sonho era ser guarda-noturno e leão de chácara de boate. Também estava muito inseguro, porque uma prostituta da boca do lixo tinha dado uma verdadeira surra nele na cama. Botou-o de barriga pra cima, montou nele e mostrou que ele não era de nada, não era páreo pra ela.

Solidário, Betão resolveu apresentar uma confidência besta qualquer, mas que desse força pro coitado do camelo. Confidenciou, entre lágrimas, que quando era garoto e tomou sua primeira bebedeira, foi comer uma prima na casa dela e, quando acordou, estava deitado era na cama do irmão dela, o primo mais velho, aprendendo na dureza que o dito popular “negócio de bêbado não tem dono” é uma pura e dolorosa verdade.

O camelo ficou mais consolado, viu que não estava sozinho em seu drama sexual, e os dois passaram a madrugada toda cantando rock anos 80 e bolero mexicano dor de corno, Como nenhum deles sabia nem letra, nem música de bolero, que não era do tempo deles, tiveram que compor as músicas e letras ali mesmo. Ainda bem que o camelo era muito bom no violão. O Betão nunca tinha tocado bateria, mas um delas apareceu andando por ali, como quem não quer nada, e o camelo explicou para ele como é que se fazia. E em coisa de dois minutos o Betão já estava fera na batera.

Bom, no fim, quando o dia já ameaçava amanhecer, os dois caíram num sono ferrado, dormiram abraçados de conchinha. Horas depois os seguranças do prédio acordaram o Betão e ele viu que o camelo, os instrumentos musicais, a garrafa e o copo não estavam mais por ali. Só tinha uma coisa esparramada pelo chão e, pelo cheiro, o Betão foi logo se tocando que o porco do camelo devia ter vomitado ali. Pô, o cara era fraco pra bebida! Aí os homens levaram o Betão escada abaixo até o elevador, apertaram um botão e, tempos depois, ele estava saindo do edifício, andando pela calçada, chamando em altos brados o seu novo amigo camelo. Poxa, camarada legal estava ali! Bela voz, boa afinação e tocava um violão como poucos! Na certa tinha descido a fim de tomar um café bem forte, pra curar a bebedeira.

O mais engraçado é que, daquele povo todo que passava ali na Avenida Paulista, ninguém, mas ninguém mesmo, tinha visto um camelo azul em nenhum boteco, tomando cafezinho. Pô, uma baita camelo daqueles! Ô povo mais alienado, só querem saber de trabalhar!...

Ele parava as pessoas pra perguntar se tinham visto um camelo azul grandão, com uma gravata de bolinha vermelha, ali na Paulista. E eles olhavam pro Betão com cada cara mais esquisita!... Povo doido, sô!

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