sexta-feira, 27 de novembro de 2015

LUA  OCULTA – 16   
MILTON MACIEL  

16 - A ÚLTIMA SEMANA DO MÊS!
Fim do cap. 15: "– Rondelli acabou de tranquilizar sua menina, que foi para casa com gosto de quero mais: Que pena que o chefe tinha ido embora assim, de repente. Não tinha conversado nada legal com ela. E era tão bom conversar com ele!" 

Naquela semana que se seguiu, a última de Outubro, coisas importantes demais aconteceram: Na terça-feira, chegaram as seis carretas com os 84 automóveis novos e seminovos, que vieram de Ribeirão Preto. No mesmo dia, às duas da tarde, chegaram as vendedoras Paula e Jennifer, que eram mais duas jovens e belas mulheres do esquadrão fatal de Celso Teles.

A passagem daquele desfile de enormes caminhões-cegonha foi o grande acontecimento da cidade por vários dias. Nunca os habitantes tinham visto tantos carros de alta qualidade, todos como zero quilômetro, juntos. De propósito, Celso havia ordenado um trajeto em que eles passariam por vários pontos vitais da cidade, além da zona central. Depois os veículos ocuparam as ruas que definiam a grande praça em frente à Revendedora e ali permaneceram tranquilos, expostos à intensa visitação pública. Mais propaganda do que isso era desnecessário!

Até os Schlikmann, todos os três, vieram contemplar aquelas jóias raras da Teles Automóveis. Os Silva também, capitaneados por Madame Silvá, que foi arrancar o velho Valdemar de sua transportadora e o trouxe a pulso para ver aquele mundão de automóveis, a maior parte dos quais ninguém tinha igual em Amarante.

Antes mesmo que a Revenda fosse inaugurada, as moças de Celso Teles tiveram que atender a dezenas de interessados. As pessoas cercavam as carretas e esperavam pelo desembarque e acomodação de cada veículo no enorme pátio interno, onde eles seriam lavados e polidos, antes de poderem entrar para os amplos salões de exposição internos. Muitos acompanhavam um determinado carro já gritando para os outros:

– Esse é meu. Ninguém tasca, eu vi primeiro.

Nessa batida, a primeira encrenca já surgiu antes de meia hora. Neco Palhares e Jonas Miúdo, ambos sócios destacados do Clube dos Imigrantes, foram às vias de fato por causa de um Audi zero quilômetro. O “ninguém tasca, eu vi primeiro” não valeu para Neco Palhares, em que pese Jonas Miúdo ter acompanhado o Audi desde a descida da carreta e estar com os braços envolvendo o capô empoeirado, o paletó branco completamente em miséria ante o abraço carinhoso ao veículo. Mas Neco Palhares discordou:

– Que besteira é essa, Miúdo? Por que o carro tem que ser seu? Eu também quero. E estou disposto até a pagar um ágio sobre o preço dele. E garanto que levo, duvido que você tenha poder de fogo pra cobrir minha oferta.

Imediatamente o pau degenerou. Aquilo tinha passado de uma simples disputa por um automóvel para o campo da ofensa pessoal: O desgraçado está me chamando de pobre!

E sentou um murro na cara de Palhares na mesma hora, Mas, como o apelido já dizia, Jonas era mesmo miúdo, de forma que o soco atingiu foi o peito gordo do súbito desafeto. Que revidou na mesma hora também, atingindo a cabeça desguarnecida do baixinho. A turma do deixa disso entrou imediatamente em ação, segurando os dois contendores, que ficaram se xingando e colocando os podres pra fora, um do outro:

– Rolha de poço! Mastodonte!

– Baixinho corno.

– Viado!

– Filho da puta!

Foram a avisar Celso do tumulto lá fora. Ele estava com Fúlvio Rondelli e ambos saíram correndo para a frente da loja. Ante a baixaria, Celso foi rápido e rasteiro:

– Podem parar, senhores, a causa é perdida. Infelizmente para vocês este  carro já está vendido.

– Como?? Pra quem? – berraram em uníssono os dois brigões, interrompendo os tapas.

– Para meu amigo e colega Fúlvio Rondelli, é claro.

Fúlvio levou um susto, Mas entendeu logo qual era a jogada do patrão e entrou na dança convicto:

– Isso mesmo, estou esperando há dois meses por esse carro.

– Mas... você? Ué, de onde tirou dinheiro pra isso? Você sempre foi um durango, que eu sei.

– Engano seu, meu amigo – atalhou Celso Teles – Sempre, não. Agora ele tem outra condição, é o maior salário da empresa. Mas, independente disso, uma parte do valor do carro faz parte dos nossos acertos para a compra da oficina dele.

Os dois ex-brigões murcharam. Olharam atônitos um para o outro, tinham feito papel de trouxas, brigado por nada afinal. Aquele maldito italiano durango é que ia curtir com a cara deles. E o resto do pessoal ali presente também, que já apontavam para ambos e se dobravam de rir. Inclusive Celso Teles, fazendo um enorme esforço para parecer discreto.

A esta altura a  experiente Carmen tinha chegado apressada, para saber o que tinha acontecido, o que tinha feito o chefe e o mecânico saírem correndo da loja. Uma refinada vendedora e resolvedora de conflitos nata, tomou a iniciativa de imediato:

– Ah, mas que pena, ver dois amigos se desentendendo por tão pouco. Se eu soubesse disso, se eu estivesse aqui, teria evitado tudo isso.

– Mas como, moça? – arriscou um impressionadíssimo Jonas Miúdo, que não conseguia tirar os olhos daquela boca carnuda da espanhola.

– Ora, os senhores discutindo por um Audi quando eu tenho uma carreta inteirinha só de Mercedes importados, alemães legítimos,  para descarregar, aquela última da fila.Aqueles sim são carros para quem pode, para quem tem uma posição social de elite, como os senhores dois. Venham comigo.

E dirigiu-se para a última carreta, arrancando um aplauso discreto de Celso Teles, que ficou com Fúlvio Rondelli por ali. Todos os outros espectadores do pugilato correram juntos, atrás de Carmen e dos lutadores. Queriam ver os Mercedes, deviam ser um luxo só. Mas tinham a secreta esperança de que a briga recomeçasse, com os dois, outra vez, se embeiçando pelo mesmo automóvel.

Mas isso não aconteceu. Neco Palhares logo voltou, desiludido. Para ele, automóvel era Audi e fim de papo. Ou era um Audi, ou era nada. Falou isso para Celso, que prontamente sugeriu:

– Por que o senhor não procura se entender com o Rondelli aqui. Ele recebeu o carro pelo preço de lista, o preço FIPE. Mas, se receber um bom ágio por fora, quem sabe...

Rondelli arregalou os olhos. Que jogada do chefe, aquilo era uma águia!

Neco Palhares, animadíssimo de novo, foi direto ao ponto, sem perder tempo, aproveitando enquanto o desgraçado do tampinha não voltava e não se metia de novo no negócio dele:

– Eu posso dar dez mil hoje mesmo. É um excelente ágio.

– Só?! – estranhou Celso, com cara de incrédulo.

– Só?... estranhou Palhares que Celso estranhasse.

– Bem, é que me disseram que o senhor é um dos homens mais ricos, dos mais respeitados desta cidade, por isso.

Atingido em seu orgulho, golpe certeiro encestado pelo paulista, Palhares aumentou a oferta:

– Doze mil.

Mas Celso tinha feito sinal para Fúlvio não aceitar por enquanto. Então o mecânico falou, com ar de enfado:

– Não, não me interessa. Por essa merreca eu não deixar de ter o prazer de desfilar por Amarante com o meu Audi Zero.

Neco imaginou a humilhação pela qual passaria, aquele pé-de-chinelo desfilando com o carro que ele tinha chegado a disputar a socos. Viu-se ridicularizado, os outros sócios do clube gozando com cara dele, o italiano contando para todos sobre a oferta de um ágio que só um pobre ofereceria. Começou a entrar em pânico:

– Vinte mil! Vinte mil e não se fala mais nisso!

Agora Celso fez sinal de positivo para Fúlvio. Este deu-se por vencido:

– Está certo, Doutor Neco, eu me rendo – pelo menos estava promovendo o trouxa do Neco Palhares a doutor, como gostava de fazer.

Saíram dali para dentro da loja, para lavrarem os documentos e nota fiscal de venda à vista. Antes, Neco Palhares preencheu e entregou a Rondelli um cheque de vinte mil reais, ao portador. Era a primeira venda da loja ainda não inaugurada de Celso Teles em Amarante. Era necessário que as normas fossem respeitadas. Uma vendedora devia fazer todo o processo e embolsar a respectiva comissão. Celso hesitou um pouco, mas viu, por trás de Rondelli, que Gládis apontava discretamente para Larissa.

Bingo, sua espanholita esperta e generosa como sempre! Chamou Fúlvio e Gládis de lado e confabulou rapidamente com eles. Então fez sinal para que Larissa se aproximasse:

– Sua colega Gládis, a subgerente da loja, que decide sempre que a gerente, Carmen, não está presente, acaba de indicar você para fechar este processo de venda, Larissa. Por favor, assuma o controle com o senhor Neco Palhares, Seu padrinho e a própria Gládis vão ajudá-la com os documentos, não é nenhum bicho de sete cabeças.

E afastou-se logo, para deixar a boquiaberta Larissa à vontade para desempenhar seu primeiro papel de vendedora. Voltou-se de longe, já à porta do seu escritório, a tempo de ver Larissa, com os olhos molhados, apertando as duas mãos de Gládis entre as suas. Já sabia o que ela estaria dizendo, sem  sombra de dúvida:

– Deus lhe pague!

Ah, como era bom ter Larissa ali na loja e na oficina. Como seria miserável uma vida sem ela ao alcance dos olhos e dos sonhos!

Minutos depois Rondelli apareceu triunfante, com um sorriso de Papai Noel, comentando:

– Sucesso total, doutor. O homem já pagou o carro e minha afilhada fez toda a tramitação, seguindo a orientação da espanholita filha. Que garota de ouro essa sua, patrão!

– Sim Rondelli, todo o meu povo é assim, só gente de muito, muito valor. Gládis poderia ter escolhido a ela mesmo, sua mãe ou Paula ou Jennifer. Mas, como você viu, pensou primeiro em Larissa. Por essa e por outras é que eu faço qualquer coisa por essa menina, o que ela quiser e precisar.

Rondelli lembrou-se do cheque e o entregou a Celso:

– Olha aí, doutor, o cheque, o ágio, os vinte mil mais moleza que o senhor já ganhou.

– Que eu ganhei, Rondelli?! Você pirou? O homem pagou o ágio para você, o Audi era seu.

– Mas como, doutor? Aquilo era só figuração, para enganar aquele idiota do Neco.

– Engano seu, Rondelli. Não era nem figuração, nem para enganar. Era uma forma de punir aquele pavão. E de fazer ele dar uma grana bem razoável para você.

– Para mim?! Mas o senhor vai ter um prejuízo enorme!

– Deixe de dizer besteira Rondelli, eu não vou ter prejuízo algum. Acabei de vender o carro pelo preço certo, de tabela, fico com o lucro normal, depois de descontados os custos e a comissão da vendedora Larissa, inclusive.

E entregou o cheque de volta a Fúlvio.

Que levantou da cadeira de um salto, deu um abraço no chefe, murmurou um muito obrigado carregado de emoção e correu para mostrar o cheque para sua menina. Ah, ela precisava ver aquilo. Não pelo valor do cheque em si, altíssimo, mas pelo valor imensamente maior da ação daquele homem incomparável.

Estava fazendo isso, emocionados os dois, quando Fúlvio olhou para fora e falou rápido:

– Xi, seu pais estão chegando, estão vindo para a loja. Vamos correr para a oficina, tire esse casaquinho azul de uniforme das vendedora de Teles. É certo que eles vão querer ver você na oficina comigo, é só uma questão de tempo. Vamos embora, vamos botar um montão de peças nas bancadas e no chão, aí você brinca de classificar. Vamos. Rápido.

Valdemar Silva ficou um bom tempo do lado de fora, apreciando os automóveis que ainda estavam nas carretas e os que estavam sendo descarregados. Aí viu que havia um grande número de carros já estacionados no patio interno, alguns sendo lavados. E comentou com a esposa, Madame Silvá:

– Esse rapaz parece louco. Onde ele espera vender todos estes carros de luxo? Aqui em Amarante? Ora, aqui, com muita sorte, vende no máximo uns vinte. E bem devagar. Preciso dar uns conselhos para esse moço.

– Mas vamos entrar logo, marido. Vamos, antes que apareça compadre Schlikmann e compre o carro mais caro da loja. Esse carro tem que ser nosso, Grand Dieu!

– Criatura, para de falar comigo nesse idioma arrevesado! Já lhe disse que eu não suporto essa sua exibição. Comigo não, violão.

– Ah, marido, sabe como é, passei tanto tempo em Paris, a gente se acostuma como a língua, os costumes, o caviar, as baguetes, os...

– Você passou dois meses em Paris, criatura! Só dois meses. E quer que eu acredite que virou francesa. Pra cima de mim, não.

– Ah, mas você não compreende. É como se eu tivesse voltado pra casa. Não importa o tempo que fiquei lá, tenho certeza que vivi em Paris na minha encarnação anterior. Eu me sinto completamente francesa.

– Tá bom. Mas na minha frente não, senão eu vou ter que falar pra todo mundo, lembrar você inclusive, que você é só uma colona italiana da Linha Mangelli, uma menina da roça analfabeta e bonitinha que eu achei um dia por ali.

Madame Silvá fechou-se em copas. Não adiantava, aquele seu marido era um grosso, não tinha finesse, nunca teria la grande éducation, nunca seria um Monsieur Silvá. Tinha sido, continuava sendo, seria para sempre só um caminhoneiro bronco e mal educado. Mas, pelo menos, ficava mais rico a cada ano, e isso deculpava todo o resto.

Ela era a grande Madame Silvá, a mulher mais rica da cidade. E era também a mãe da mulher mais bonita de Amarante. Tinha motivos de sobra para se orgulhar. E para exigir que aquela gentalha toda lhe devesse render tributo.

Estava ali para obrigar aquele mão-de-vaca a comprar o carro importado mais caro daquela firma nova. O mais caro, não importava a marca, desde que fosse novo, zero quilômetro, é claro. Por isso tinha pressa, queria resolver isso logo, antes que Adolfo Schlikmann chegasse com a mesma ideia. E queria fazer o marido trocar o carro da filha. Afinal, Larissa já tinha aquele SUV há mais de dois anos e não ficava bem, para gente como eles, que vissem a filha andando sempre no mesmo carro, como se eles fossem uma gentinha qualquer.

E também estava na hora de mostrar para aquele moço de São Paulo, que parecia tão rico, quem eram as pessoas mais ricas do lugar. Ele que botasse a viola no saco e aprendesse a respeitar os Silvá!

Assim que entraram, foram recepcionados por uma jovem de incrível beleza e maior simpatia, que se identificou com o nome de Gládis. Ela perguntou se eles eram os pais da jovem Larissa e, recebendo resposta positiva, derramou-se a fazer elogios à beleza e à finesse da moça. Ao pronunciar a palavra francesa, ganhou de imediato a simpatia de Madame Silvá. Sim, sua filha tinha muita, muita finesse.  Assim como ela mesmo, sua mãe. Era uma questão de berço. Na certa, também ela havia vivido na França na encarnação anterior.

– A filha de vocês é uma moça notável. Além de ser a mulher  mais bonita que eu já vi, é de uma bondade sem fim. Imaginem que ela vem para cá todos os dias e fica, feliz da vida, ajudando o seu padrinho na organização da oficina. E isso sem ganhar um tostão sequer, não é nossa funcionária.

– Minha filha é mesmo maravilhosa – falou, orgulhosa, Madame Silvá. E ela foi Miss Amarante, sabia?

Gládis fez sinal com a cabeça que sim, não queria que a mulher entrasse naquele assunto e fosse ficar contando papagaiadas horas a fio. O marido dela comentou:

– Filha minha e mulher minha não precisam trabalhar fora. Não precisam, nem eu deixo. Vão precisar de três gerações para gastar todo o meu dinheiro, essas dondocas.

CONTINUA

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