domingo, 20 de dezembro de 2015

LUA  OCULTA – 32   
MILTON MACIEL  

32 – UM PROMOTOR GAÚCHO
Fim do cap. 31: "o pistoleiro sumiu para sempre, toda cidade sabia que aquilo era negócio entre o Silva e o Amaral. E um negócio tão escancarado, feito tão na cara-de-pau, que o Amaral mudou para uma casa de aluguel do Silva na mesma semana, ganhando escritura de posse meses depois.
– Caramba, a coisa é ainda pior do que eu tinha pensado!" 

– Põe pior nisso, doutor! Se o Silva se impacientar com a demora do habeas corpus, sai pela porta da frente da delegacia a hora que bem entender. Enquanto o Amaral for delegado aqui, nada vai mudar para melhor. Aliás, quem vive apregoando isso aos quatro ventos é o promotor, o Dr. Turíbio Freitas.

– E esse, qual apito que ele toca?

– Um moço honesto, doutor. Honesto e bem no início da carreira. Veio para cá há dois anos, é gaúcho de Santa Maria. E um daqueles que faz questão de afirmar que é macho gaúcho, que não tem medo de homem, que não tem medo de ameaças. Tocou adiante o processo contra o pistoleiro fugido do Silva, o homem mais importante da gang do baixote, e conseguiu que ele fosse condenado à revelia: 23 anos de cadeia, o Dr. Trindade bateu o martelo.

– Opa, esse é macho mesmo! E o Silva?

– Ficou possesso, mandou fazer um monte de ameaças, um dos seus homens peitou o promotor na entrada do cinema, esbarrou nele de propósito, puxou briga na hora.

– E aí?

– O capanga do Silva apanhou feio! O Dr. Turíbio meteu-lhe um soco na cara com tanta força que o sujeito quebrou um dos cavaletes grandes do cinema. E aí, quando ele quis reagir, vários outros homens que estavam na fila de entrada entraram na confusão e quebraram o bandido na porrada e no pontapé. O cara saiu algemado, com voz de prisão dada pelo promotor, desacato à autoridade.

– Mas aí o delegado, naturalmente...

– Não, doutor. Dessa vez não. O promotor ameaçou o delegado com remoção de Amarante, se ele voltasse a dar fuga a um bandido do Silva. O Amaral afinou e Silva acabou tendo que propor o cachimbo da paz ao promotor. Ele não levava adiante a ação penal contra o seu capanga e ele, Silva, nunca mais ameaçava o promotor e a família.

– E o promotor aceitou?

– Fez que aceitou, doutor. Fez! O sujeito foi libertado, mas continua respondendo processo em liberdade. Resultado: também ele caiu fora, se mandou, fugiu de Amarante.

– Puxa, esse promotor é o que os meus amigos lá de Maceió, onde eu joguei no CRB no início da minha carreira, chamariam de um porreta!

– Isso mesmo, doutor. Esse homem tem pelo nas ventas, deve ter o negócio roxo. E o senhor precisa ver como ele encara o Amaral, quando eles têm que se ver. Com a maior cara de nojo. E fala mal do Amaral na frente de todo mundo, inclusive do próprio, não tem medo, não. Uma vez, lá no Bicalho, eu ouvi o homem dizer que não sossega enquanto não acontecer o dia mais feliz da vida dele, o dia em que ele conseguir que Otílio Amaral seja removido de Amarante.

– E ele pode conseguir isso, é?

– Isso eu não sei, doutor, mas se ele falou essa coisa... E tem mais, se alguém pode lhe dar orientação sobre advogados, é esse promotor mesmo.

– Taí, Rondelli, vou sair já, agora mesmo, atrás desse homem. Você sabe onde eu devo procurar por ele?

– A esta hora? Com certeza. O homem é metódico, tem hábitos regulares. Só começa a trabalhar depois do almoço e vai até às 20 horas. Então, a esta hora da manhã, o lugar mais certo pra encontrar o tal porreta é... na sua academia!

– Na academia?! Caramba, muita coincidência. Nunca soube que um dos alunos novos lá fosse o promotor.

– Que aluno novo, doutor! É aluno antigo do Nelson, o senhor é que nunca cruzou com ele, o senhor ia muito cedo para lá, antes de abrir.

– Caramba, espera aí, vou ligar para o celular do Nelson já.

Segundos depois tinha a confirmação:

– O homem está lá mesmo, Rondelli. Vou voando pra lá. Até.

Rondelli mandou suspender o fusquinha no elevador e começou o exame minucioso. Rodas, pneus, suspensão, direção... Muita coisa a fazer, realmente. Mas ao menos o motor ronronava bonito, como um gato velho e bem-comportado. Ia preparar a grande surpresa para sua menina. Mal sabia que, em mais alguns minutos, ela entraria ali na oficina e estragaria a surpresa toda.

O diálogo na Teles Academia fui muito rápido e resultou num telefonema do Dr. Turíbio para sua esposa, explicando-lhe que fora convidado para almoçar com o dono da academia e da nova revenda de automóveis. Durante o almoço, na churrascaria Estrela dos Pampas, os dois homens se conheceram e afinaram suas ideias. Por fim, acertaram seus ponteiros. O promotor era um homem muito jovem, mal havia chegado aos 30 anos, mas era um guerreiro de grandes arroubos emocionais. Para Celso Teles ficou muito claro que ele detestava o delegado Amaral e que tinha tomado como questão de honra removê-lo da delegacia de Amarante.

Nesse momento, o paulista propôs uma aliança com o promotor. Também ele gostaria muito de ver removido de sua nova cidade uma autoridade corrupta. E, além disso, tinha agora o interesse pessoal em evitar que o sabidamente criminoso pai de Larissa escapasse com toda a facilidade da prisão em flagrante, por tentativa de assassinato. E ofereceu a única coisa que poderia oferecer: não tinha qualquer conhecimento ou prestígio político nem na cidade, nem no Estado. Mas tinha a mesma coisa que sobrava a Valdemar Silva: dinheiro!

Então aconteceu algo muito estranho, quase hilário, podia se dizer; quase na mesma hora, pouco depois de 13:30, saíram dois automóveis velozes em direção a Florianópolis. Em um ia, como motorista solitário, do Dr. Aristides Lobo, o Lobo do Lar, levando um cheque administrativo do Banco do Brasil, emitido por Valdemar Silva. No outro carro, da Teles Automóveis, ia, como passageiro, o Dr. Turíbio Soares, levando um cheque administrativo da Caixa Econômica, emitido por Celso Teles.

O primeiro cheque iria adoçar o bico do eminente causídico Dr. Heráclito Mello, grande criminalista, convencendo-o a retornar no mesmo veículo pilotado pelo velho Lobo do Lar, direto para Amarante, sem qualquer perda de tempo e adiando ou cancelando qualquer outro compromisso. De fato, o cheque tinha uma enorme força de persuasão e, quando o Lobo do Lar ameaçou voltar com seu navio Ford e com o cheque para Amarante, o criminalista mandou os outros clientes e compromisso às favas e tratou de se acertar com o velho Lobo, partilha do excedente no cheque inclusa.

Por seu lado, Dr. Turíbio foi direto para a Secretaria de Segurança Pública do Estado. Era ali que dormitava, há mais de um ano, um dossiê fatídico contra o delegado Otílio Amaral, de Amarante. O alentado processo, pacientemente montado pelo promotor ao longo de muitos meses de paciente investigação oculta, dormia um sono cataléptico dentro de certa gaveta, a gaveta da mesa de um assessor do Secretário. Faltara ao Dr. Turíbio, das outras vezes em que fora à capital, para tentar despertar o belo adormecido, justamente o príncipe para o beijo regulamentar.

Mas desta vez o príncipe ia com ele: um pequeno pedaço de papel azul, com carimbos oficiais e assinaturas de gerentes da Caixa Econômica Federal, agência de Amarante. E, coerente com o que reza a história de carochinha, o beijo do príncipe produziu efeito instantâneo: o cheque mudou de mãos e essas mãos pressurosas foram colher a última assinatura que faltava, a única que poderia dar vida ao gigante adormecido – a assinatura do próprio Secretário de Segurança, que jamegou os papeis junto com uma montanha de outros, sem se dar ao trabalho de ler nenhum, para isso tinha assessores de confiança.

O confiável assessor, tornado subitamente um pouco mais próspero, completou seu trabalho, disponibilizando um veículo para que, no dia seguinte, o Corregedor Geral fosse cumprir a ordem emanada dos papeis assinados pelo Secretário: Viagem imediata para Amarante, para destituir pessoalmente o corrupto delegado local. Ia também com a missão política de se entender com o prefeito e o líder do partido do governo na cidade, para ouvi-los a respeito do possível novo delegado. Aquele cargo pertencia, há muitos anos, à quota pessoal do Secretário e ele apreciava usar a nomeação para barganhar com as autoridades locais. Raposa velha, não era à-toa que estava Secretário de Segurança pela terceira vez na vida. O apoio de caciques políticos do interior costumava ser decisivo em certos momentos.

Podia-se dizer, portanto, que os dois mensageiros de Amarante foram muito bem-sucedidos em suas demandas na capital do Estado. Dr. Aristides, o Lobo do Lar, trouxe o grande criminalista a bordo de sua nau capitânia. Agora o habeas corpus era fatal, questão de mais algumas horas somente, porque o juiz, Dr. Trindade, não dava expediente depois das cinco da tarde.

Já o Dr. Turíbio chegou exultante, com a cópia do processo inteiro em sua pasta. Deu a boa nova para Celso Teles lá de Florianópolis mesmo, não conseguiu se aguentar. E, quando chegou enfim a Amarante, em sua própria casa, desembarcando do automóvel da Teles e agradecendo a gentileza do motorista, quem entrou em casa foi um molecão de dez anos, gritando, pulando e assobiando, com um gigantesco buquê de flores na mão, para dar à esposa. Comemorou com ela o dia mais importante de sua carreira naquela cidade, o dia tão memorável em que o paulista da academia e dos automóveis lhe proporcionara os meios de arrancar do sono eterno o belo adormecido que o torturava há tantos meses.

Diferentemente do Dr. Aristides Lobo, que estava ganhando dinheiro de Valdemar Silva como seu advogado e estava arrancando um por fora com a conivência do Dr. Heráclito, o Dr. Turíbio não levara um único tostão do dinheiro gasto pelo paulista. Felizmente, este tivera a propriedade de não lhe propor qualquer espécie de pagamento ou propina. Isso havia deixado o Dr. Turíbio feliz e com mais admiração pelo forasteiro: aquele empresário sabia reconhecer um homem honesto e não lhe fizera qualquer proposta indecorosa, que ele não aceitaria e que o ofenderia.

Sua esposa, era paciente e resignada com a maldita honestidade do marido – o pai dela sempre dizia: Isso aí é um saco cheio de ar, só tem orgulho e pose, minha filha. Mas é vazio de sustança: com essa burrice de honestidade, nunca vai ter dinheiro pra lhe dar uma vida decente. Mas ela perguntou-lhe se, ao menos, o homem havia remunerado suas horas perdidas durante a viagem de ida e volta. 

Dr. Turíbio ficou irritadíssimo:

A la putcha, tchê! Mas que é que tu tás pensando? Então eu sou um maula qualquer, que recebe dinheiro de particular?  Pra teu governo, eu sou um funcionário público, se tu esqueceste. O Estado é que paga o meu soldo. E eu fui lá porque eu quis, porque era do meu interesse. A la fresca, já tô arrependido de ter trazido esse mundaréu de flor pra ti!

A mulher pediu desculpas, abraçou o homem, não tinha jeito mesmo. Aquilo era cabeçudo como só: a casa alugada, os móveis meio quebrados de tanta mudança, as crianças em escola pública, ela se desapertando com roupas que vinham da irmã mais moça, lá de Santa Maria; Que remédio... Um dia ainda ia acabar se acostumando a ser mulher de advogado pobre. Pobre porque metido a honesto, funcionário público, sem escritório e sem causas particulares. Que remédio... 

No dia seguinte, o delegado Amaral recebeu duas visitas importantíssimas. Primeiro, às nove horas, viu entrar, em sua humilde delegacia de interior, ninguém menos do que o famoso Dr. Heráclito Mello. Já esperava por ele, Dr. Aristides, o Lobo do Lar, tinha estado no fim da tarde lá, para avisar Valdemar Silva do pleno êxito de sua missão. O homem estava já no Grande Hotel e apareceria na manhã seguinte. Com dinheiro dado por Silva, Amaral comprou material para um verdadeiro banquete de recepção.

Depois que o grande Dr. Heráclito conversou bastante com Silva e com Dr. Lobo e foi embora, lá pelas onze chegou outro ilustre visitante, este vindo direto da capital. Otílio Amaral ficou lívido quando o sujeito, descendo de uma viatura oficial, se identificou com sua carteira funcional: Corregedor Geral da Polícia. Nos minutos seguintes, o homem descascou o Amaral, colocando-o abaixo de cu de cobra. Mostrou e leu as partes principais do longo processo, com a assinatura fatídica do Secretário de Segurança e no fim deu-lhe duas alternativas:

Ou saía de fininho da cidade naquela tarde mesmo, sem enrolação – alguém que cuidasse da família e da mudança depois. Nesse caso, podia esperar o final do desenrolar do seu caso, poderiam ou não considerar sua nomeação para uma cidade bem distante e bem menor do extremo oeste, que tinha necessidade urgente de um delegado.

Ou poderia ficar por ali, se quisesse e tivesse coragem. Porque, nessa hipótese – ou se qualquer gracinha acontecesse para o promotor ou algum familiar dele, então ele seria imediatamente preso e expulso do serviço público.

O delegado Otílio Amaral quase enfartou! Era desgraça demais caindo em sua cabeça em menos de quinze minutos. O tal Corregedor era um sujeito duro, inflexível, não teve jeito de aceitar um adoça-bico proposto por Valdemar Silva. Fingindo-se bastante interessado no primeiro momento, ele pediu que Silva e Amaral repetissem, mais de uma vez e com todos os detalhes, qual o valor e como seria feito o pagamento. Foi além, exigiu que Silva desse ali mesmo, na hora, um sinal de negócio de pelo menos quinhentos mil reais. 

Otílio Amaral teve que ir até à Transportadora, buscar com o contador da empresa um certo talão de cheques de uma conta especial de caixa dois. Regressou rapidamente o Corregedor exigiu um cheque de 500 mil reais para ele e mais dois cheques de 50 mil reais, para os dois homens que o acompanhavam na negociação. Comodamente sentado no amplo sofá-cama, que o delegado mandara buscar para seu hóspede de honra, Valdemar Silva, na própria residência dele, o ex-caminhoneiro preencheu e assinou os três cheques. Gastava uma migalha, mas garantia a permanência de Otílio Amaral onde ele lhe havia sido sempre extremamente útil nesses anos todos. E, o mais importante, comprava barato mais uma autoridade estadual de relevo. Mais um dos muitos que se acostumaram a comer na mão do homem mais rico de Amarante. 

A um sinal de Silva, o delegado foi buscar uma garrafa de champanhe na geladeira, uma das muitas que estavam reservadas para comemorar o momento da chegada do alvará de soltura, após o deferimento, pelo juiz Trindade, do pedido de habeas corpus formulado pelo competente – e caro! – Dr. Heráclito Mello.

Amaral serviu o espumante nobre francês em cinco das inúmeras taças que estavam à espera no pequeno armário do corredor e colocou-as organizadamente à frente de cada um dos lugares que preparara à sua ampla mesa de trabalho. Todos os cinco homens vieram sentar-se nas respectivas cadeiras e o brinde foi feito:

– À liberdade e à prosperidade! E à saúde do nosso delegado, longa vida para ele em Amarante! – foi a proposta de Valdemar Silva, que levou sua taça aos lábios e bebeu todo o conteúdo de uma só vez, sem esperar pelos outros.

– À prisão e à Justiça – propôs o corregedor, enquanto derramava o conteúdo de sua taça nos sapatos empoeirados do delegado Amaral. E, ante os olhos estupefatos de Valdemar e Otílio, decretou:

– Você está preso por tentativa de suborno de uma autoridade, Valdemar Silva. Como já está tecnicamente preso, mas desfrutando das mordomias de ter para si a maior sala da casa, ordeno que seja trancafiado na cela com os outros presos comuns, você não tem curso superior. Meus assessores são testemunhas do crime e os três cheques ficam apreendidos como provas do mesmo. Mais um crime a se somar a sua extensa ficha de crimes só desta semana.

– Mas doutor... – balbuciou trêmulo o delegado.

– Não pense que nos esquecemos de você, Otílio Amaral. Essa tentativa de suborno vai também para sua ficha, que já é quilométrica por si mesma. Mas nem vamos perder tempo com isso agora. Apenas cumpra minha ordem e trancafie o meliante na cela da delegacia. E já!

Nesse momento ouviu-se um urro de fera e Valdemar Silva partiu feito um foguete para cima do Corregedor:

– Seu traidor filho da puta, eu te mato!

Claro que não chegou nem perto do alvo. Um dos dois assessores era, na verdade, o guarda-costas do Corregedor. Policial muito bem treinado, sua reação foi fulminante, interceptando o braço do pitoco enfurecido e prostrando-o no chão com estardalhaço. Era a segunda vez, em dois dias, que o truculento anão de jardim era posto fora de combate por um golpe de cutelo no pescoço.

Dormindo como estava, foi levado para a cela, onde três outros presos tiveram que esfregar muito os olhos para poderem acreditar que aquele saco de batatas que os homens do Corregedor arremessaram com força no chão da cela, era simplesmente o poderoso Valdemar Silva, o homem mais rico de Amarante, o patrão do delegado Amaral, o milionário que estava desfrutando das benesses possíveis da delegacia: sala confortável, sofá-cama, televisão, frigobar, cerveja e cachaça da boa.

Tampouco podiam acreditar no que ouviram, balbuciado por um gaguejante Otílio Amaral:

– Doutor... Ainda... Ainda está... Quer dizer, ainda está valendo o nosso acordo? Posso ir embora, sumir daqui, como o senhor disse?

O Corregedor respondeu:

– Desapareça da minha frente e desta cidade, seu rato imundo! E, mais do que esperar um posto noutra cidade, aconselho que você pegue a reta para o Paraguai, a Bolívia, o Peru, o quinto dos infernos, mas suma daqui pra sempre.

Trágico e irônico: o doutor Corregedor dizendo-lhe para se refugiar exatamente nos lugares onde ele havia sonhado levar a morena gostosa que tinha demolido Valdemar Silva! Mas Otílio Amaral era, antes de tudo, um pragmático: hora de ir embora, seu reinado em Amarante estava acabado. Até porque o reinado do próprio reizinho do lugar parecia ameaçado ou, pelo menos, muito arranhado. Os tempos eram outros, pelo jeito muita coisa ia mudar por ali. Hora se pôr a salvo enquanto dava, antes que o resto do processo desabasse em cima dele e ele acabasse em cana.

A ideia do corregedor até que não era má. Reservas até que ele tinha bastante. Não passara todos esses anos achacando e trambicando para botar dinheiro fora. Ainda agora, o velho Silva tinha colaborado com uns bons dez mil para garantir suas regalias de prisão especial, portador que era de diploma superior monetário, já que de universidade nunca tinha passado nem perto.

Então, na base do há males que vêm para bem, aproveitava para declarar sua aposentadoria e sua liberdade total. Ou seja, dava no pé, dirigia até Foz do Iguaçu e depois via se ia para o Paraguai ou a Argentina. Melhor o Paraguai, para trocar logo de identidade, deixar barba e bigode crescerem, tirar documentos novos como paraguaio, começar vida nova. O que não faltava naquela fronteira era negócio para um ex-delegado que entendia tudo de contrabando, de descaminho.

Mas o melhor de tudo é que aproveitava agora e se livrava daquela velha que tinha em casa. Sumia de vez no mundo, ela que se virasse quando viessem lhe contar a novidade, ia ter que vender a casa que o Silva lhe dera e alugar uma coisa muito menor, para ter alguma renda. Tinha 61 anos e nunca tinha trabalhado fora, não era agora que ia conseguir.  Um dia uma moreninha bonitinha, tinha envelhecido e embuchecido: gorda, enrugada, mau gênio, negativa, rústica. Estava na hora de trocar aquele trambolho por uma dúzia de gatinhas guaranis, azar o dela.

Assim resolvido, Amaral passou no banco e raspou a conta corrente, a poupança e as aplicações. Disse que ia viajar para Mato Grosso, comprar uma fazenda, baita negócio de ocasião, exigia rapidez na execução. Em casa, para a mulher, falou que tinha recebido visita de autoridade da capital e que precisava ir para lá, discutir uma provável nomeação para um cargo muito mais importante do que delegado de uma cidadezinha como Amarante. Ia se demorar uma semana ou mais, ligava no outro dia dando notícias. Encheu duas malas com roupas e calçados, pegou alguns objetos, levou dois cadernos perigosos para destruir no caminho.

CONTINUA

Nenhum comentário:

Postar um comentário