sábado, 30 de janeiro de 2016

LUA  OCULTA – 58   
MILTON MACIEL 

58 – BUENAS, TCHÊ. TE CASAS NESTE SÁBADO!
Fim do cap. 57:  "Celso se despediu dos dois amigos, o antigo e o novo, e rumou para o lugar onde estava a luz que seus olhos estavam ansiando ver, depois de escutar a palavra Lissinha." 

De longe viu Larissa no grande salão de exposições, atendendo dois homens altos e muito bem vestidos. Era evidente que os clientes já tinham feito sua opção de automóvel, entravam e saíam dele com entusiasmo, conversavam entre si e pareciam crivar Larissa de perguntas. Pois Lissinha demonstrava uma desenvoltura a toda prova, respondia com muita segurança e conhecimento, exibia gráficos, fotos e tabelas.

Celso ficou olhando de longe, usou o expediente que aprendera com a própria Larissa, postou-se atrás da larga coluna central e ficou observando. Era um show de eficiência e técnica! Quem diria que sua anjinha insegura e medrosa ia passar por tal metamorfose em tão pouco tempo! Bem afirmara Fúlvio Rondelli, na primeira vez que conversaram sobre Larissa, lá no bar do Bicalho, que sua afilhada iria surpreender todo mundo no daí em que conseguisse, enfim, ser ela mesma. Pois agora ele estava vendo, à sua frente, a verdadeira Larissa: uma vendedora de mão cheia, uma profissional segura de si, que não precisava depender mais de sua beleza prodigiosa para mais nada.

Observando com mais cuidado, Celso pôde ver, com enorme clareza, quem tinha sido a grande propulsora da transformação profissional de Larissa: Lissinha se parecia demais em certos momentos, na maneira de fazer o cliente caminhar em certa direção, na maneira de inserir comentários espirituosos, até mesmo na forma de ela mesma se movimentar, com Gládis De Rios. Que maravilha de resultado para um par mestra-discípula. Bendita espanholita!  Como sua anjinha loira não iria evoluir e ficar segura de si, se até a dar porrada e a quebrar homens a espanholita lhe ensinara!

Celso encheu bem seus olhos com a visão da mulher mais bonita do mundo e saiu evitando ser percebido por ela, em direção a seu escritório. Nem bem sentou  e o telefone tocou. Era Gládis:

– Boa demais, não é jefito? Não dá orgulho dela?

– O que? – gaguejou Celso, lutando para entender as palavras da espanholita-filha.

– Eu também estava espiando nossa Fofinha, não era só você que estava escondido, jefe.

– Ah, isso. Pois é, eu não quis atrapalhar a venda dela.

– Você não quis foi deixar de ficar adorando sua musa, jefito. E eu, de ficar adorando minha Fofinha. Não é lindo isso?

– É, espanholita amiga. E quanto disso eu não devo a você, sua bruxinha do bem? Quando é que eu vou poder retribuir tanto bem que você nos fez, me diga?

Gládis não respondeu. Apenas deu uma gargalhada e desligou.

Celso ficou rememorando a performance de Larissa, encantado e feliz. Mergulharia no trabalho pelo resto do dia e esperaria as maravilhas, os deleites da noite de amor que viveria com ela. Alternavam o ninho de amor: um dia na casa dele, outro dia no apartamento dela. Larissa preferia assim.

Celso nem lhe perguntara a razão. Bastava que ela quisesse isso, não havia o que argumentar. No fundo, ele sabia que aquele apartamento significava tudo para ela, era o território sagrado de sua independência, sua primeira grande conquista pessoal na vida. Era também o ninho onde ela estava tão próxima de sua adorada Gládis, seu modelo de vida. E de Carmen, Jennifer e Paula, com Gládis suas primeiras e únicas amigas na vida. Isso tinha também um valor incalculável, era outra grande conquista de Larissa. Era ali que ela tinha, enfim, encontrado o seu LAR. E não podia deixar de incluir nas conquistas o famoso fusca laranja!

Celso sabia reconhecer isso tudo e não se sentia no direito de mexer com uma estrutura que significava tanto para sua anjinha loira. Amava-a demais para pensar egoisticamente em tê-la só para ele naquela enorme e fria casa luxuosa, na qual vivera tantos meses de solidão em Amarante.

Também era certo que ele pretendia desposá-la dentro dos velhos costumes, porque não havia razão para não fazer isso. Contudo, Larissa jamais havia mencionado tal possibilidade. Ela parecia completamente feliz com sua situação atual, tecnicamente de amante de seu patrão, como Celso já ouvira mais de uma vez em comentários em surdina, tanto no Bicalho, quanto na Academia. Chegou a comentar isso com Larissa, mas ela, ao invés de se incomodar, tinha simplesmente caído na gargalhada:

– Nossa, que massa! Eu não tinha pensado nisso.

 E saiu da sala de Celso apressada, para comentar, em voz bem alta, com as amigas, que estavam no salão naquela hora, inclusive com clientes presentes:

– Gente, gente, eu sou amante do patrão! Amante do patrão! Que legal! Eu nem tinha me dado conta disso. Que massa!

E ria feliz da vida, como uma criança que tivesse acabado de descobrir um segredo maravilhoso.
Os clientes arregalaram os olhos, as amigas riram divertidas. Mais uma demonstração da pureza  e da ingenuidade da Fofinha delas, como não iam gostar cada dia mais daquela menina?!

Naquele mesmo dia, Leon Schlikmann recebeu a ligação de Lucas e ambos combinaram a estratégia a seguir: Leon levaria a Lucas todos os documentos que encontrasse no escritório e no cofre que Adolfo tinha no Banco do Brasil, cujo segredo estava agora com o filho. Então Lucas faria uma avaliação completa e eles levariam tudo, devidamente registrado, para a reunião com Celso e os outros.

Mas, na manhã seguinte, Leon recebeu em casa um telefonema que o fez tremer na base:

– Alô, Leon Schlikmann? Buenas, aqui é o Doutor Turíbio, o promotor, amigo do Celso Teles. Bueno, ele me pediu um favor e eu fui falar pessoalmente com a Mara, a titular do cartório. Tu sabes, pedido do Celso é uma ordem pra mim. Pois ele me disse que tu estás mui agoniado com a liberação da papelada do teu casório no civil. Bueno, a Mara é mulher, ficou toda derretida com a história, disse que tá torcendo feito louca pelo caso de vocês dois e fez uma coisa que, se não é legal, também não tem nada de antiético. Ela mudou retroativamente a data de entrada dos papeis, deu uma maquiada nos proclamas, apressou tudo pro fim desta semana.

Leon quase caiu da cadeira:

– Não me diga, doutor! É bom demais pra ser verdade! Puxa, nem sei como lhe agradecer. Quer dizer que eu posso marcar a data do casamento já?

– Que podes marcar o que, guri! Já está marcada pela própria Mara. Tu te enforcas no próximo sábado, às 10 da manhã, podes escolher só o lugar, isso ela deixou contigo.

Leon deu um berro impressionante, de doer os ouvidos do promotor:

– Uaaauu! Puta que pariu, doutor! Tô feito! Desculpe, agora vou desligar, preciso sair, dar a notícia pra noiva. Vai ser o máximo!

Desligou e pensou em seguida: Depois volto pra dar a notícia pra mãe do noivo. Vai ser uma merda!

E foi embora, feliz, para a garagem. Só aí lembrou que não tinha mais o Porsche. Ou ia a pé, ou pegava aquele suntuoso Mercedes zero do pai, azulzinho clarinho, da cor escolhida pela mãe. Taí, pensou, a causa é nobre, vou depressa nele e já aproveito, deixo esta joça pra vender também na Teles.

Minutos depois Leon invadia, coração aos pulos, o grande salão de exposição da Revendedora. De longe viu sua Rainha de Sabá. Por sorte, as outras colegas estavam juntas. Celso, que vinha saindo de sua sala, fez um sinal de positivo para Leon e falou de longe:

– Tou sabendo, o Turíbio me ligou agora mesmo.

E ficou quieto, esperando que Leon desse a grande notícia. Foi o que ele fez, dirigindo-se a Jennifer, mas olhando para todos os presentes:

– Neste sábado, às dez da manhã!

E ficou quieto, fazendo suspense. Mas Gládis, pegando tudo no ar, como sempre, furou o balão:

– A glória, Jenny! Vocês se casam neste sábado de manhã!

Jennifer olhou aturdida para seu copo-de-leite e viu que ele fazia que sim com a cabeça, um sorriso de orelha a orelha, os olhos traduzindo sua emoção.

– Mas já? Como é que você conseguiu isso, meu amor? E o prazo legal?

Leon apenas apontou para Celso Teles, que sorria satisfeito.

– Quem é que faz todos os milagres em Amarante, minha rainha? Perguntem pra ele.

Celso apressou-se em apontar o verdadeiro autor do milagre:

– Gente, eu só dei uma ligadinha pro Doutor Turíbio, o promotor. Ele é que fez o milagre.

– Oba! – falou Paula – Mais um padrinho obrigatório pra esse casamento, então.

A partir daquele momento foi tudo uma festa só, as moças todas abraçando Jennifer, que chorou pela primeira vez na frente de todas elas. Olhava encantada para seu homem alvo como leite. Era verdade, não estava sonhando! Aquele rapaz estava jogando tudo pro alto na vida dele, tudo por causa dela. Era preto no branco mesmo com ele. Abraçou-o e beijou-o com paixão, fez branco no preto pelo abraço e voltou a chorar, desta vez de pura felicidade, como a Fofinha fazia sempre.

E, claro, como ela estava fazendo naquele exato momento, abraçada a Celso Teles.

Quando a poeira baixou, Leon pediu licença para ficar um pouco a sós com sua Jenny. Todo mundo concordou, é claro, agora eles tinham que acertar muitos detalhes. Saíram os dois a passear de mãos dadas pelo amplo jardim frontal da Teles Automóveis. Paravam várias vezes para se beijar apaixonadamente. Depois seguiam conversando animadamente. Num certo ponto, onde havia um banco de jardim, Leon fez sinal para que sentassem. E entrou no delicado assunto que reservara para aquele momento:

– Meu amor, no meio de toda esta felicidade, eu tenho que colocar uma coisa que não é agradável. O papo com a minha mãe.

– É, eu já imagino a barra. Mas, claro, isso é inevitável. Ela vai ser contra, não é?

– Com toda certeza. E vai me encher o saco pra valer. Bem, pelo menos ela não é chiliquenta, nem chantagista. Ela só vai dizer o que pensa, com a típica frieza germânica, de que ela é tão bem dotada como aquele imbecil do meu pai.

– Isso é coisa deles, benzinho. Conheci aqui um monte de alemães que são uns doces de criaturas. Muita gente gentil, carinhosa, melosa mesmo. Acho que não existe isso de frieza germânica, só pessoas, seres humanos, que são mais frios, por tantas razões diferentes. Mas eles podem ser descendentes de alemães ou italianos, ou portugueses, como a maioria do pessoal de Amarante. Ou podem ser de árabes, chineses, russos, qualquer coisa. Você não lembra do Dieter Schmidt, o capitão do time do Bandeirantes, chorando como criança pequena, quando o japonesinho amigo do Celso deu a ele o cheque de premiação no torneio de futebol? E não lembra que as duas crianças dele, uns pitoquinhos de menos de cinco anos, vieram correndo e se abraçaram ao pai, chorando também, porque pensaram que o pai estava chorando de tristeza? Pois é, são filhos de um Schmidt, com uma Elwanger, tudo alemoncinho purras.

É, amor, você tem razão. Como sempre. Aliás, esse é o melhor negócio que eu vou fazer com este casamento. Você entra com essa sua enorme cabeça, sua cultura, seu enorme bom senso.

– E com esta minha bunda enorme, não é?

– Ela não é enorme, Jenny. Ela é perfeita!

 Ganhou um beijo na boca e um afago nos cachos loiros. E continuou:

– Mas a sua bondade e a sua cabeça são ainda maiores do que a sua beleza, bunda incluída. Bem diz o velho ditado que “quem vê cara – ou bunda – não vê coração”. Eu, graças a Deus, pela primeira vez na minha vida de playboyzinho comedor, consegui ver além da beleza em uma mulher. E foi por isso tudo que vi além, que eu me apaixonei, a esta altura você já sabe isso muito bem.

– Fofo. Você também é um amor, muito além dessa carinha linda, linda, que a mulherada adora e que ainda vai me matar de ciúmes.

Ficaram um longo tempo em silêncio, olhando-se nos olhos, de mãos dadas, sorvendo cada instante como se fossem verdadeiros goles de felicidade. Ah, como era bom amar e ser amado, sentiam! Mas, depois de algum tempo, Leon voltou ao assunto principal:

– Bom, agora eu tenho que ir, tenho que enfrentar a fera. Dona Marion vai espumar.

– Você quer que vá junto amor? Estou pronta para enfrentar qualquer coisa ao seu lado. Posso pedir licença a Carmen e...

– Não, meu bem, não precisa. Não há porque submeter você a mais essa tortura gratuitamente. A mãe é minha, o problema é meu, eu vou e resolvo.

– Mas todo e qualquer problema seu, meu querido, é problema meu também. Tem certeza que não quer que eu vá?

– Não, não precisa, amor. Fique tranquila aqui, no seu trabalho, com suas amigas. Não vai faltar ocasião para encherem o seu saco nesta cidade, por causa da sua audácia de casar com um copo-de-leite Schlikmann. Mas agora vamos poupar você desta. Tchau, estou indo, não vou beijar, nem me virar pra olhar você, senão eu não consigo sair daqui nunca. Fui!

Jennifer, com um olhar de encanto, ficou olhando seu meninão se afastar. Céus, como ele estava crescendo aos olhos dela! Se continuasse assim, além do um metro e oitenta e cinco que já tinha, ia virar um gigante de dez metros. Tinha mandado vender os dois automóveis, tinha colocado toda a gestão do patrimônio da família nas mãos de Celso Teles, Lucas e Rondelli, agora só vivia falando que queria descobrir a sua vocação, queria trabalhar com alguma coisa, qualquer coisa, por mais simples que fosse, que o fizesse se sentir digno. O mais tocante é que ele insistia em dizer sempre: “Me sentir digno de você, que abriu seu caminho na vida com a força do seu trabalho”.

Era um outro homem aquele que estava surgindo agora, emergindo da pele alva e da história insossa do playboyzinho. Por esse novo homem ela podia correr todos os riscos, todas as rejeições, afrontas, injúrias raciais, crimes de preconceito. Por esse ela podia estar apaixonada, porque esse, sim, merecia!

CONTINUA

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

LUA  OCULTA – 57   
MILTON MACIEL 

57 – JUÍZO NA CABEÇA, TIO!
Fim do cap. 56:  "Mais essa! Já não chega tudo o que ele é e faz, ainda vem com mais essa, cria um grupo de flamenco e uma escola de dança em Ribeirão Preto! Como alguém pode ser tão perfeito assim?"

Leon Schlikmann, passada a enorme emoção de ver concretizada finalmente sua proposta de casamento com Jennifer, despediu-se dela e de Carmen e foi procurar Fúlvio Rondelli na oficina:

– Bom dia, tio. Estou incomodando?

– Nunca, menino. Você é sempre bem-vindo. Pode chegar aqui quanto quiser. Está precisando de algo para o seu Porsche?

– Não, tio. Estou precisando de uma coisa que eu nunca tive e que o senhor tem demais. Quem sabe o senhor pode me conseguir um pouquinho.

– Claro, menino; se eu tenho sobrando e você precisa, é só pedir. O que é?

– Juízo na cabeça, tio! Tô precisando pacas.

– Como?!

– É isso mesmo tio. Veja estes papeis aqui. Agora eu sou o Schlikmann que manobra o dinheiro e os bens. E o senhor sabe que os Schlikmann são um desastre, botam tudo fora, não sabem administrar. E também são uns putas duns vagais, nunca trabalham. Eu nunca trabalhei também. Mas agora desaba essa bomba na minha mão, minha velha está esperando que eu não faça cagadas como o meu pai fazia. E tem mais: eu vou casar daqui a mais uns dias. Com a Jennifer, a minha rainha africana, é claro. Então eu preciso aprender tudo, tio. Preciso aprender a ter juízo, a trabalhar, a não botar dinheiro e patrimônio fora, a fazer coisas que façam minha esposa não ter vergonha de mim. É isso! Pronto, falei!

– Muito bem, rapaz! Olhe só que boa surpresa. Você está falando como um homem maduro agora, não parece mais aquele molecão que só sabia correr a pé atrás de bola e de Porsche atrás de buceta.

– É, tio, um dia a gente tem que crescer. Agora eu quero virar homem mesmo, pra ser o homem da minha mulher. Quero que ela possa sentir orgulho de mim. Acho que eu amadureci na marra nestes últimos tempos, tio Rondelli. Primeiro foi graças à Jenny. Eu me apaixonei por ela e aí passei a morrer de medo que ela não me quisesse, porque eu sou branco e ela é negra. Então, em vez de a cor negra ser o defeito dela, a cor branca foi o meu defeito. Morri de aflição e de medo, tio, foi dureza, nunca eu tinha sofrido isso na vida. Mas aí ela me aceitou e me deu uma chance; e eu fui direto do inferno pro céu. Só que descobri, da forma mais brutal, que um assassino desgraçado era meu pai. Voltei pro inferno e afundei ao máximo quando acreditei que ele e o maldito Silva tinham conseguido matar o Celso.

– É foi dureza mesmo, meu rapaz!

– Põe dureza nisso, tio! Eu já tinha percebido o que rolava entre o Celso e a Larissa, só ela mesmo é que não percebia, a bobinha, Eu fiquei superfeliz por ela, ela merecia. E eu tinha a minha Jenny. Aí eu fiquei sonhando em me aproximar bem do Celso, eu fantasiei que ele era o meu irmão mais velho, que eu sempre sonhei ter. Então eu vi o matador acertar o Celso no peito e todo o resto. Ah, foi horrível! Ali eu acho que envelheci cem anos num dia, tio. Mas quando vi o Celso voltar à vida, o senhor não pode calcular o quanto eu fiquei feliz, feliz mesmo, feliz demais porque eu não tinha perdido o cara que agora é a referência da minha vida. E feliz também, muito mesmo, por causa da Lissinha, que não ia passar por aquela tremenda decepção na vida dela. O senhor sabe, eu amo a Lissinha, vou amar sempre, como a irmãzinha menor que eu tive, apesar da loucura daqueles idiotas, que queriam casar a gente na marra.

–Sim, Leon, eu tenho certeza disso.

– Pois então, tio, quando eu vi os dois juntos de novo, o Celso inteirinho, vivinho, e ela parecendo que tinha chegado no Paraíso, nos braços dele de novo, eu tive uma comoção tão violenta, um ataque de choro tão forte, que só a minha Jenny conseguiu parar. Aquilo era demais. O Celso estava vivo, o desgraçado do meu pai não tinha conseguido tirar a vida dele e tinha se ferrado todo, como merecia. Minha Lissinha estava com que num transe, um êxtase de felicidade. E eu tinha os braços da minha Jenny ao meu redor. Foi ali que eu vi que eu tinha botado fora um enorme pedaço da minha vida, tio. E que eu era um carinha de muita sorte, porque eu ia ter uma nova oportunidade de começar de novo e, desta vez, acertar!

Fúlvio Rondelli sentiu a mesma forte emoção que vinha daquele menino, uma criança grande também como sua anjinha afilhada, que, de repente, estava sendo forçado pela vida a despertar como adulto. Instintivamente aproximou-se do rapaz e o abraçou com suavidade:

– Muito bem, Leon. Você está certíssimo. Você vai saber tirar o bem de todos esses males que rondaram sua vida, a vida de Larissa e a vida do Celso. E pode, desde já, ter certeza de uma coisa: seu velho tio Rondelli vai lhe ajudar em tudo o que for possível. Pode pedir ou perguntar qualquer coisa, sempre que quiser. E pode entrar nesta oficina ou na minha casa sem precisar se anunciar ou bater, como um sobrinho no trabalho ou na casa do tio.

Leon Schlikmann não disfarçou a emoção que sentia, tinha aprendido, nesses últimos e densos dias, a deixar fluir todos os seus sentimentos. Ficou mais um tempo abraçado com Fúlvio Rondelli, percebendo como era bom ter um porto seguro e amigo para se refugiar, como sua Lissinha tinha e usava há mais de vinte anos. Tio Fúlvio era tudo de bom! Que diferença entre aquele homem digno e o miserável que tinha sido o seu pai!

Por um instante imaginou como sua vida teria sido infinitamente melhor se o seu pai tivesse sido Fúlvio Rondelli. Hoje ele, Leon, seria certamente um homem digno como esse seu pai, um sujeito correto e trabalhador, com uma profissão, por mais humilde que fosse, mas que lhe daria sustento e, muito mais do que isso, dignidade e respeito próprio.

Quando os dois saíram do abraço, Leon olhou com admiração e reconhecimento para aquele homem notável, que Larissa tinha nomeado, por conta própria, padrinho dela e que ele, Leon, tinha nomeado, também por conta própria, seu tio. Aquele homem notável não tinha tido nenhum filho ou sobrinho, costumava dizer que ele era um velho carvalho seco. Mas como, pensou Leon, como um carvalho seco, se ele é capaz de dar frutos sem fim na vida, de ser amigo e protetor, melhor que o melhor dos pais do mundo? Então falou para Rondelli:

– Tio, a primeira ajuda que eu quero lhe pedir tem tudo a ver com uma atitude que Lissinha tomou na vida, dias atrás. Ela, quando saiu de casa, deixou para lá aquele SUV imponente e caríssimo que ela dirigia. E aí comprou o famoso fusca laranja, que ela dirige pra cima e pra baixo com toda a alegria e todo o orgulho do mundo. Pois eu queria fazer a mesma coisa.

– Como assim, meu filho?

– Tio, eu quero me livrar desse meu Porsche que está estacionado aqui na frente da Teles. Olhe, aqui estão os documentos e as chaves. Eu não volto a entrar nele nunca mais. Esse carro é símbolo de um outro carinha, de um playboyzinho vazio e idiota, que usava o carrão pra impressionar e caçar bucetas, como o senhor falou, tão acertadamente. Eu quero que o senhor venda esse carro pra mim. E, enquanto não vender, eu vou andar só a pé e de carona. E aí, na hora de comprar um outro carro, eu também quero que ele seja usado, velho, barato e, se possível, bem feio. Mas com mecânica impecável, porque passou pelas suas mãos de mestre, tio Rondelli.

Fúlvio sacudiu a cabeça para os lados admirado. Que metamorfose!  Parecia ao contrário, uma belíssima borboleta de repente se recolhia ao casulo novamente, virava um feio gusano e esse feio gusano ser revelava muito mais belo, de forma transcendente, do que a borboleta multicor. O belíssimo Leon playboy, de repente, queria se transformar num homem comum, num trabalhador, despindo-se do seu símbolo maior de opulência e importância, um imponente Porsche com apenas um ano de uso.

– Ora, isso vai ser facílimo. Quer dizer, vender o seu Porsche vai ser muito fácil, ainda mais que estamos justamente na Teles Automóveis. Aqui o Celso e as meninas nadam de braçada. E o seu carro vale muito dinheiro, rapaz.

– Eu sei, quer dizer, sei mais ou menos o valor dele. Pois por mim podem vender pelo que quiserem, desde que vendam. Também não me importa se vendem rápido ou demorado. Não vou mais entrar nessa joça mesmo. Pra mim é vida nova, tio. Leon com Jenny, Leon com vergonha na cara, é Leon sem Porsche! O que eu vou fazer com o dinheiro da venda é outra coisa.

– E o que você pretende fazer?

– Não tenho a menor ideia, tio! Assim como não sei o que fazer com o resto do patrimônio da família. Aí é onde entram o senhor e o Celso. Eu não vou fazer nada, mas nada mesmo, pela minha cabeça. Só vou fazer o que vocês me indicarem. Melhor ainda, o que vocês me mandarem fazer.

– Bravíssimo, rapaz! Então vamos deixar esse imbróglio na mão do Celso, melhor do que ele não existe para esses assuntos.

– Mas o senhor fala com ele pra mim? Pede pra ele? Eu não tenho coragem, pode parecer muito abuso e...

Fúlvio Rondelli não perdeu tempo. Fez sinal para Leon parar, apanhou o celular e ligou direto para Celso Teles. Contou em rápidas pinceladas o que estava acontecendo e um minuto depois Celso Teles estava ali com eles, na oficina.

– Puxa, chefe, a gente podia ter ido até seu escritório, homem!

– Nada, Rondelli! Quando os amigos precisam da gente, a gente tem que ser rápido, tem que parar o que está fazendo e dar um jeito na hora. E aí, Leon, vai mesmo vender o Porsche, é?

– Oi, Celso. Eu não vou vender, você vai. Eu sou bola murcha para vender qualquer coisa, mas você é o bambambam.

– Tá certo, a Teles vende para você. E não cobra a comissão da empresa, só a da vendedora, é claro. Que, sem dúvida, vai ser a Jennifer.

Leon abriu um sorriso de orelha a orelha:

– Legal, cara! Vou dar um regalo pra minha rainha, trilegal! Puxa, muito obrigado, mesmo. E, quanto ao dinheiro da venda... Quer dizer, quanto a todos os dinheiros... E os bens... Sabe como é, a tralha toda caiu na minha mão, minha mãe tirou o corpo fora. Só que ela deve estar esperando um milagre, que o carinha aqui, de repente, saiba administrar essa coisarada toda. Só que eu não sei. E aí o tio Rondelli me disse que eu devia pedir um help pra você. Mas eu fiquei sem jeito, sabe como é, muita cara de pau, pedir isso pra um cara ocupado como você.

– Ora, Leon, deixe disso, rapaz. Amigo é pra essas coisas.

– Amigo? Você disse amigo? Seu amigo?

– Claro, rapaz! Começa que você é grande amigo da minha Larissa. Só isso já me inclinaria a ser seu amigo. Continua que você vai casar com outra grande amiga minha, a Jennifer. Termina porque quem pediu para eu dar esse help para você é o meu grande amigo Fúlvio Rondelli. Já não chega? Pois não chega: acontece que eu devo confessar que aprendi a gostar de você de verdade, Leon Schlikmann. Você é o lado sangue bom, que redime toda a sua família.

Leon engoliu em seco, ficou mais do que emocionado, deu um passo em frente e fez menção de abraçar Celso Teles:

– Posso? Não é confiança demais?

Em resposta, Celso abraçou-o efusivamente, falando:

– Claro que pode, cara. Agora e sempre que quiser. Seja bem-vindo à Confraria: quatro mulheres fantásticas, um anjinho loiro, um italiano carcamano e agora um alemão boa-gente. Mais o seu amigo aqui, é claro. Pois pode deixar, vamos fazer o seguinte: eu boto o Lucas em contato com você e ele, que é o grande ás da contabilidade e dos números, ajuda você a destrinchar toda a coisa, a tomar pé nos valores, a saber exatamente quanto você tem para dispor e administrar. Aí a gente senta juntos, você, o Lucas, o Rondelli e eu.

– Bárbaro! Demais! E... bom, será que dá pra incluir mais uma pessoa nisso?

– Sua mãe?

– Não, Celso. A coroa não quer saber de nada. É a...Bem, se não for demais, se você não acha ruim...

– A Jennifer?

– Pois é. Ela mesma. Você acha isso errado?

– Claro que não, Leon. Acho perfeito. Isso mostra a confiança e a consideração que você tem por ela.

– Bom, a gente vai casar assim que os raios dos papéis permitam, eu espero que seja já no meio do mês que vem. Então eu já considero a Jenny minha esposa, quero dividir tudo com ela, inclusive essas decisões que vocês nos indicarem. Assim ela tem certeza que eu estou a fim de casar de verdade. Sabem, eu acho que, apesar de tudo o que eu me esforço pra demonstrar, ela pode ter algumas dúvidas a meu respeito, não sei, fico muito inseguro. E, pior ainda, eu é que fico com medo que ela desista na última hora. Falta quase um mês, vão ser dias de agonia pra mim. Depois que casar, se ela quiser desistir, aí ela vai ter que entrar com os papéis de divórcio e isso vai ser muito mais demorado e...

– Pode parar, Leon Schlikmann! Nada disso vai acontecer. Palavra de Celso Teles. Fique sossegado, rapaz. A Jennifer também gosta de você de verdade, pode ter certeza. Eu conheço essa menina muito bem, trabalha comigo há muitos anos. E posso lhe assegurar, nunca vi a Jenny tão entusiasmada com um homem assim. E tão feliz, também. A ponto de estar disposta a enfrentar toda a onda de preconceitos que pode vir a encher os sacos de vocês.

– Puta que pariu, cara! Assim você me deixa louco! Louco de felicidade, Celso. Você tem certeza disso?

– Isso ele já disse, Leon. Ele falou claramente: “Posso lhe assegurar”. E disse algo de um valor incalculável: ele falou “Palavra de Celso Teles”. E isso, menino, você vai aprender, como eu já aprendi, é mais sólido que o Pão de Açúcar, que o Himalaia inteiro.

Leon ficou intensamente vermelho:

– Puxa, foi mal, desculpe gente, perdão Celso. Quem sou eu pra duvidar de você...

– Relaxa, Leon, eu não me incomodei, eu entendo a sua situação, cara. E muito mais do que você possa imaginar. Eu vivi essas angústias todas, dias sem fim, numa agonia danada, por causa da Larissa. Como você, morrendo de medo que a mulher que eu amava não me quisesse. Pior, eu tinha certeza que ela não ia me querer nunca, porque ela já amava outro homem. Você, Leon! E aí eu morria de ciúmes de você cara. E o mais notável nisso tudo, é que eu já estava começando a achar você um carinha legal, já estava começando a gostar de você, mesmo tendo ciúmes de você.

– Puxa, Celso, que barra! Você também pastou como eu, até mais do que eu, estou vendo agora. Pô, nem sei o que dizer pra você...

– Pois não diga nada, camarada. Não há o que dizer. Tudo isso são águas passadas. Nossas musas, nossas rainhas nos aceitaram, gostam de nós de verdade. Então vamos acelerar a marcha e tratar de ser felizes, isso é o que importa. Olhe, estou tendo uma ideia agora, vou mexer os meus pauzinhos, vou falar com o Turíbio, o promotor, para ver se ele pode dar uma mãozinha, fazer o pessoal do cartório acelerar a marcha dos seus papeis de casamento. Quem sabe não consigo reduzir uns dias de insegurança pra você.

– Caramba! Faça isso, sim, por favor, Celso. Verdade que, por mais que eu saiba que pode ser só neura minha, enquanto eu não enxergar aquela mãozinha escura assinando um certo livro, eu vou viver encagaçado mesmo.

– Tá bom. Então estamos entendidos. Agora eu vou voltar pro escritório e vou colocar o Lucas na sua cola, daqui a pouco ele liga pra você e vocês combinam o que vão fazer daí pra frente. Quando estiverem com todos os levantamentos feitos, me procurem e a gente marca a reunião com o Rondelli e a Jenny.

– Beleza, cara. Puxa, você fez um carinha assustado muito feliz agora. Deus lhe pague, como diz sempre a Lissinha.

Celso se despediu dos dois amigos, o antigo e o novo, e rumou para o lugar onde estava a luz que seus olhos estavam ansiando ver, depois de escutar a palavra Lissinha.

CONTINUA