sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

LUA  OCULTA – 46   
MILTON MACIEL  

46 – JARDES, O MATADOR
Fim do cap. 45:  "E outra vez justo agora, quando perdeu todo o dinheiro que pretendia escamotear na maior parte dos de Ponta Grossa; e ainda fez papel de trouxa, enganando o chefe como o delegado queria. A morena gostosa tinha razão ao chamá-lo de pateta."

Ele estava ferrado, cara afundada, dentes estropiados; com a ficha corrida dele no Paraná, estava mais do que desgraçado, cana braba à vista. Mas ao menos tinha uma coisa que não podiam tirar dele: a morena de cinema!

Ficou todo o tempo em que ela esteve ali no quarto com os olhos grudados nela, memorizando cada detalhe daquele monumento: Cabelo, olhos, nariz, boca, peitos, ancas, bunda (ai!), coxas. Aquilo ia virar seu patrimônio. Sabe-se lá quantos anos de cadeia ia puxar, ia se acabar na mão, cinco contra um quase todos os dias. 

E a imagem seria sempre a dessa Gládis tesão, ia sempre imaginar, enquanto caprichava na esquerda, pois era canhoto, que tinha dado certo, que ele estava, sim, estuprando aquela morena gostosa, o melhor estupro da vida dele. Puxa, a coisa era tão boa de imaginar que mesmo ali, todo derrotado, sentiu um calor nos bagos, o cara de baixo querendo levantar a cabeça. Benza Deus! Tem mulher que é puro tesão, deixa qualquer homem doido de pedra!

Celso e o delegado se desmancharam em elogios a Nicanor e Anselmo. Que duas bichas mais horrorosas aquelas! Mas que dois atores mais fantásticos aqueles! Gládis foi mais longe, com seu enorme senso prático:

– Um Óscar de melhor ator para cada um. E o prêmio vai para: Nicanor – 10 mil reais! E Anselmo – outros 10 mil reais! Uma gentileza do nosso generoso patrocinador, a Transportadora Real Grandeza.

Os dois homens olharam ainda mais encantados para aquele avião, mas olharam com dúvida e receio para o delegado. Porém o Doutor Norberto Oliveira foi taxativo:

– Perfeito, Gládis. Grande ideia! Nada mais merecido, meninos, vocês foram demais, o Ramiro deve estar com o dele piscando até agora. Você também concorda com a Gládis, Celso?

Celso Teles apenas adiantou-se, pegou os dois montinhos de dinheiro, que seus homens tinham colocado sobre a mesa de cabeceira, e os entregou aos atores ganhadores do primeiro Óscar de melhor ator de Amarante:

– Nada mais justo, meus camaradas. E é dinheiro do próprio imbecil do Silva. Nada mais engraçado e irônico também. Agora, pelo amor de Deus, peguem esse dinheiro, mas tirem essas perucas, vocês estão horrorosas, santas!

Gládis completou a ação com algo que sua prodigiosa intuição lhe ditava:

– Claro, Nicanor. Vocês podem ficar com as perucas de recordação. São um belo suvenir agora. E elas ainda podem ser uma garantia de futuro para vocês. Se, um dia, vocês quiserem mudar de profissão, é só tirar as gracinhas do armário, fazer um bom penteado, e encarar a vida noturna. Lindas como vocês ficam, vão virar milionárias em dois tempos.

Gargalhada geral, um delegado exultante, dois brutamontes com o bolso da calça estufado de grana fácil. Caiu o pano no Hospital Nossa Senhora da Conceição, saíram do palco os atores principais e seus coadjuvantes; ficou em cena apenas Ramiro Toco, sentindo-se, cada vez mais, um consumado pateta.

JARDES

Muitas horas antes desses acontecimentos todos, no momento em que Celso Teles ia saindo para recém conhecer o novo delegado, muito antes que eles tivessem planejado e deflagrado a mais que bem-sucedida operação anti-Silva, Leon Schlikmann estava totalmente arrasado!

Ele chorava em silêncio, no jardim de inverno da mansão da família. Tinha acabado de descobrir que era filho de um assassino e ladrão!

Mas então ele teve que fazer um enorme esforço para recuperar o controle, pois o que vinha a seguir era de suma importância e ele não podia perder um único detalhe.

Ouviu o barulho da moto chegando, a campainha tocando, as vozes das empregadas, por fim as batidas tímidas na porta do escritório e a voz, sempre desagradável, sempre autoritária, do pai a dizer “entre!

O homem desconhecido entrou. De onde estava, em momento algum Leon pôde ver-lhe o rosto. Mas a conversa que se desenrolou a seguir foi perfeitamente audível. E gravável no celular, também.

– Este é o homem de quem lhe falei, compadre, o Jardes. É conhecido antigo, de total confiança. É meu despachante. Já despachou pra mim diversas vezes.

– Despachante? Desses de documentos?

Leon ouviu a risada áspera, asmática, do pai em resposta:

– Ora, Valdemar, despachante de gente, ele despacha gente desta pra melhor.

Foi a vez de Valdemar Silva rir alto e divertido:

– Ora essa, compadre! Que ideia boa pra chamar matador. Então o homem aí já despachou pro compadre? E trabalhou direitinho? Quantas vezes?

– Humm, umas quatro, não é, Jardes? Quatro ou cinco? Já perdi as contas.

A voz do matador era grave, um pouco roufenha:

– Quatro, meu patrão. Tudo morte bem matada, tudo na bala. Quatro vezes, mas sete pessoas. Mas eu posso falar dessas coisas melindrosas na frente do outro senhor aí?

– Ora, mas é claro que pode, homem. Tanto que nós vamos tratar hoje de uma encomenda conjunta. Você vai despachar um único sujeitinho, mas vai despachar para nós dois ao mesmo tempo. Esse filho da puta teve o peito de se atravessar no caminho do compadre. E no meu também.  Então a gente quer o maldito acertando as contas com o diabo imediatamente.

Valdemar Silva voltou a um assunto que havia despertado sua curiosidade:

– Você falou que em quatro vezes despachou sete defuntos. Como foi isso?

– Bem, é que na primeira vez a gente matou logo quatro; nas outras três, só um. Digo a gente porque nessa primeira vez a gente atacou em bando. Posso dizer onde foi, patrão?

– Pois fale, homem, deixe-se de rodeios. O compadre aqui tá sabendo de tudo. Foi na fazenda que o burro do meu velho deixou praquela vaca assanhada da minha irmã.

Leon acusou o golpe: sua tia Helga, que ele não chegara a conhecer, a única irmã daquele monstro!

O pistoleiro continuou:

– Pois é, Seu Valdemar. Eu era bem novinho, tinha acabado de fazer 17 anos. Mas já era bom com revólver e rifle. Meu irmão me levou junto com ele e os outros seis do bando. A gente fez que era ladrão de gado, entrou na casa, matou todo mundo que estava lá, até a coitada da empregada velha, que não tinha nada com a coisa, mas que conhecia a gente, meu irmão, eu e o sogro dele, a gente era tudo peão daquela fazenda. Aí nós levamos o gado que foi dado em pagamento pelo seu Adolfo, vendemos e dividimos entre todos. Deu um bom dinheiro. Ali eu vi que essa profissão de matador era coisa muito boa, em vez de se matar no trabalho no dia a dia, um cristão saía de vez em quando numa missão, despachava um e ganhava dinheiro pelo ano inteiro. Pena que a parte de clientela é muito fraca hoje em dia. Faz pra lá de quinze anos que eu não despacho mais ninguém.

– Pois agora você vai ter a sua grande oportunidade. Você vai ter que matar só um sujeitinho de merda, um cara que nem é daqui de Amarante, que você nem deve conhecer. E vai ganhar cinquenta mil reais.

– Cinquenta mil, meu patrão! Puxa, isso é uma oferta boa demais, o tal homem deve ser graúdo, importante então. Já lhe digo que aceito. Quer dizer, desde que o homem não seja padre.

– Não, que bobagem, nós não temos encrenca com nenhum padre. É um comerciante de São Paulo que veio se estabelecer aqui, há coisa de uns três meses só. Mas que já causou, nesse tempo tão curto, um monte de problemas para nós.

– E o senhor tem fotografia do homem?

Silva respondeu rápido:

– Eu tenho. Peguei aqui este jornal. O cara é o dono da nova revenda de automóveis, lá onde era a concessionária GM. O nome dele é Celso Teles. Celso Teles, não esqueça. Veja bem a cara do desgraçado aqui no jornal. Ele construiu uns campos de futebol, diz que vai criar o primeiro time de futebol profissional de Amarante. Nessa foto grandona ele está junto com os dois capitães dos times de várzea daqui, mais o dono do time de elite, meu filho Leon, o único rapaz bonito da foto.

Jardes ficou um longo tempo olhando para aquela fotografia, com uma expressão estranha, meio aérea. Depois disse:

– E pra quando vocês querem o serviço?

– Pra ontem! – gritou Valdemar Silva. Urgência urgentíssima.

– Calma, compadre. Vamos fazer a coisa do jeito certo. Eu acho que domingo, depois de amanhã, está de bom tamanho.

– Mas por que domingo, Adolfo?

– Veja o que diz o jornal, nessa reportagem mesmo. Neste domingo vai ser a estreia do tal Amarante Esporte Clube, vai jogara contra um time de Blumenau, time profissional. Pois aí diz que criar e fazer crescer esse time é o maior sonho da vida do homem. Então eu pensei em fazer uma coisa com requintes de crueldade. Primeiro a gente deixa ele se esbaldar todo, ficar muito feliz e realizado com o tal time. E aí o Jardes vai lá e acaba com a alegria dele.

– Puta que pariu, alemão, você é fodão mesmo! Que ideia de gênio. Gostei demais. A gente fura o balão dele bem na hora que ele pensa que vai subir e ficar por cima de todos. Maravilha! Que seja no domingo, então. E o mais legal era se pudesse ser ali mesmo no campo, na frente de todo mundo. Mas isso, com certeza, é arriscado demais pro Jardes.

– Bom, o como e o onde é coisa só minha. O quanto e o quando é com vocês. Eu aceito os 50 mil e aceito o domingo. O resto, deixem comigo. E quanto ao pagamento?

– 25 mil agora, 25 mil depois da morte. Não lhe parece bom?

– Tá bom pra mim, é o padrão no ramo. E...?

Adolfo Schlikmann abriu uma gaveta e tirou um talão de cheques. Preencheu um no valor de 25 mil reais, ao portador.

– Mas em cheque, compadre? Não é dar sopa pro azar?

– Relaxe, Valdemar, o homem é de toda confiança, a gente despacha juntos há mais de trinta anos. Já paguei ele em cheque outras vezes. Fazemos assim: eu pago o sinal. Você executa o despacho e depois vai receber o saldo lá com o Valdemar, na Transportadora. Discretamente. Está certo assim?

– Pois pra mim está certo, certíssimo. Sei que estou tratando com homens sérios, de palavra. Despacho esse tal de Celso Teles e já posso fazer a reforma do meu rancho, lá na Baixada. Agora, só uma perguntinha?  Vocês já pensaram como é que não vão ficar os caras do futebol de Amarante, os rapazes dos times de várzea principalmente, que estão contando com o tal time desse homem pra terem alguma chance?

Adolfo Schlikmann respondeu jocosamente:

– Ora, um bando de vagabundos, homem. Uns cachaceiros, uns merdas. Olhe aí na foto desse jornal que você está levando com você. Fora o meu filho e o desgraçado, que é rico, o que são os outros dois, os tais líderes dos times de várzea? Uns merdas, uns marginais, devem ser operários de construção ou só uns vagabundos arruaceiros. Por que se preocupar com eles? Ora, Amarante nunca teve time de futebol profissional e nunca precisou disso. Que se fodam!


Jardes fez que sim com a cabeça, conferiu seu cheque, apanhou a página de jornal com a fotografia, despediu-se dos dois sócios na empreitada criminosa e saiu.  Para fazer o que tinha que fazer ia precisar de muita coragem, mas isso ele sempre tivera. Mas, desta vez, ia precisar da ajuda do filho também.

CONTINUA

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