sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

LUA  OCULTA – 52   
MILTON MACIEL 

52 - VENENO: FLUORACETATO DE SÓDIO
Fim do cap. 51:  "Foi Rondelli quem deu a notícia, sem muitos rodeios, à afilhada. Conhecia sua menina e sabia o que podia desestruturá-la. A notícia da morte súbita do pai não teria, de forma alguma, essa capacidade.
 
Na verdade, ao invés de chorar e se sentir mal, Larissa teve uma reação de extrema calma e serenidade. E falou:

– Nossa, gente, eu estou chocada! Nunca podia esperar uma coisa assim. Mas não posso mentir, não posso fingir que estou triste, porque não estou. Não é novidade que eu nunca gostei desse homem, que ele nunca foi o pai que eu queria, esse pai foi o meu padrinho Fúlvio e só ele. Por um lado, eu me sinto aliviada, porque agora eu sei que o meu amor, que ele tentou matar, não corre mais perigo. E que outra pessoa que eu amo demais também não corre mais perigo, você Gládis. Por  outro lado, pelo pouco que eu deveria sentir de gratidão por ele ter me sustentado esses anos todos, ainda que abaixo de muita pancada e humilhação, posso dizer que fico aliviada também por ele, porque ele agora escapou de processo, julgamento, cadeia. Pelo menos deste lado da vida, porque do outro...

– Muito bem, Fofinha, muito madura essa sua atitude. É isso mesmo.

– Obrigada, Carmen, é o que eu sinto. Não vou lamentar, não vou chorar agora nem nunca por ele. E também já vou deixar uma coisa bem clara: eu não vou a velório nenhum dele, nem a cemitério. Pra mim ele morreu muitos anos antes de hoje. Eu não vou aparecer em público por aí como uma chorona fingida. Quando eu choro, é porque eu sinto, do fundo do meu coração. Por ele eu não sinto senão coisa ruins.

– Viu, mamita, não é a pessoa mais sincera deste mundo?

Carmen enlaçou Larissa carinhosamente:

– Ah, isso ela é, sim, hijita. Límpida, um cristal transparente.

Foi a vez de Rondelli intervir:

– Bem, agora temos que resolver o que vamos fazer com Dona Diva, a mulher do falecido. Quando e como vamos dar a notícia. Quem vai? Você que ir junto, Larissa?

– Eu? De jeito nenhum! Pra fingir com ela? E ainda por cima, fingir por causa dele? Não vou. Aliás, estou muito bem assim, sem ver aquela mulher que foi a maior fonte de sofrimento da minha vida. Eu jurei a mim mesma, e o padrinho viu quando, que eu nunca mais queria ver, sequer ver, de novo aquela maldita mansão onde aqueles dois me desgraçaram minha vida inteira. Estou fora, pode parecer frieza, pode parecer ingratidão, mas estou fora.

– Muito bem, Fofinha! Muito bem, assim é que se faz! Ela que colha o que semeou.

– Além do que, Gládis, também para ela essa morte vai ser um grande alívio. Ela vai torrar tudo o que ele acumulou e vai se mandar pra França em dois tempos, podem escrever isso.

– Você acha, minha filha?

– Acho, sim, padrinho. Ela vai fazer exatamente isso. É só ter tempo de se livrar das coisas e juntar esse dinheirão. Até porque ela é orgulhosa demais para suportar ser olhada e falada como a mulher de um bandido.

– É, pensando assim, acho que você pode ter razão, mesmo meu anjo. Bom então deixem comigo, eu vou dar a notícia agora mesmo, vou pra lá, sou vizinho e ele sempre se deu bem comigo.

– Ótimo, Rondelli, faça isso mesmo, você é a pessoa certa para essa missão.

– Certo, Carmen. Estou indo, meninas. Olhem, o Celso está chegando aí. Tchau.

Os dois homens cruzaram-se na calçada, Rondelli contou muito rapidamente o que acontecera e como Larissa tinha reagido a tudo de uma forma madura e surpreendente. Celso entrou em casa, cumprimentou todo mundo rapidamente e correu para o banho. Larissa comentou com as colegas:

– Ele está lá peladinho, todo limpinho, molhadinho agora. Ai, que vontade de entrar naquele banheiro e fazer uma loucura, gente!

– Segura essa franga, sua doidinha! Não chegou toda a noite, não?

– Não chegou, Gládis, nunca chega! Acho que nunca vai chegar. Ai, fazer amor com amor é tão bom, tão diferente, eu nunca tinha sentido nada assim. Eu enlouqueço mesmo, de verdade. É uma loucura tão boa...

– Mas agora eu acho que você deve se segurar, filhinha – disse Carmen – Há providências práticas que devem ser tomadas e você precisa participar das decisões, assim como sua mãe. Vamos esperar que o Celso saia do quarto para tratarmos disso, certo?

Enquanto isso, em sua delegacia, Norberto Oliveira desfiava todo o seu arsenal de aspirante à Polícia Técnica. Tinha certeza que Adolfo Schlikmann estivera fingindo o tempo todo. Maldito alemão, era de uma frieza incalculável! Mas não tinha sido capaz de enganar um policial moderno como ele. A comprovação estava ali mesmo, ele e o sogro médico tinham desmascarado seu jogo, ao extraírem seu pulso e mão da algema.

Sim, estava mais do que provado que o desgraçado tinha se soltado durante a noite ou madrugada. Poderia, portanto, tirar a vida de Valdemar Silva. E tinha todo o interesse do mundo em fazê-lo, porque ficara evidente, na prefeitura, que qual tinha sido a intenção do ex-parceiro da tentativa de assassinato contra Celso Teles, quando avançou sobre o pescoço dele. Assim que o pai de Larissa tivesse a mínima chance de fazer isso pessoalmente, ou mandar alguém fazer, Schlikmann seria um homem morto. Portanto, libertar-se da algema e matar o desafeto era apenas uma tática de sobrevivência elementar, do tipo “ou ele ou eu.”

Por outro lado, tinha que admitir que qualquer um dos outros três presos também poderia ter matado Valdemar Silva. Mas que ganho teriam com isso? O paranaense era um apenas um criminoso diretamente a serviço dele, possivelmente já tinha recebido algum dinheiro por conta, teria recebido mais se o golpe deles contra a morena linda da Teles tivesse dado certo.

Ora, era difícil acreditar que um marginal tentasse eliminar seu rico contratante, ainda que a coisa tivesse dado errado e se complicado, pois seria somente dele que ele poderia esperar algum tipo de compensação futura e ajuda presente, como a disponibilização de um advogado para defendê-lo.

Os outros dois bandidos, o estuprador Pedrão e o insignificante Onofre, eram apenas uns pés-de-chinelo, não teriam qualquer motivo pessoal para matar Valdemar Silva. Inclusive tiveram oportunidade de fazê-lo antes, pois o baixote havia passado quatro dias na cela com eles, antes de conseguir aquele irregularíssimo habeas corpus.

Agora, era claro que qualquer dos três, qualquer um deles, sem exceção, poderia ter recebido uma proposta irrecusável de Adolfo Schlikmann para eliminar Silva. Um deles, ou dois ou até mesmo os três poderiam ter executado o crime.

Mas o grande problema persistia: de que forma tinha o assassino ou tinham aos assassinos matado o ex-caminhoneiro? Isso ia exigir muito trabalho técnico do legista e dele mesmo, o delegado. E ainda havia outra hipótese que destruía totalmente seu castelo de cartas: E se Silva tivesse morrido de causa natural, simplesmente? Então todas as suas conjecturas caiam por terra e ele deixava de ter um novo caso. Assassinato, matador ou matadores, causas, métodos, tudo desabava fragorosamente no chão e o caso seria enterrado junto com o corpo de Silva.

Mas o delegado se recusava terminantemente a aceitar esta última hipótese. Seu faro, seu instinto de detetive, sua perspicácia, sua experiência, ainda que não fosse muito grande, tudo isso lhe gritava que estava ante um assassinato.

Interrogou repetidas vezes o carcereiro Mota e o guarda Narciso. Tudo o que conseguiu foi a repetição do que ambos haviam afirmado antes. O que era o mesmo que nada, pois os dois irresponsáveis disseram, na maior cara-de-pau, que tinham simplesmente dormido o tempo todo. Mas ele precisava levar em conta que era isso mesmo que eles faziam sempre, há anos, que nunca ficavam em vigília durante esses seus plantões noturnos, algo que nunca foi necessário durante longos anos.

Mota dormira na poltrona da sala, uma velharia reclinável do tipo “cadeira do papai”. Ela estava ali, ao lado do sofá onde Schlikmann ficara algemado e deitado; ficava virada de frente para a cela, no máximo a três metros de distância dela. O carcereiro disse ao delegado que o movimento dos presos não exigia que ele ficasse acordado e que, por isso mesmo, havia pegado no sono um pouco antes de meia-noite. Então dormiu direto, com seu sono pesado, sem ser despertado durante a madrugada por nenhum ruído ou movimento suspeito, vindo a acordar e levantar-se somente um pouco antes das seis da manhã.

Já o guarda Narciso tinha muito menos para falar. Acomodava-se numa cadeira de plástico dessas de concha, tipo de jardim, razoavelmente larga e tornada mais confortável porque forrada com duas almofadas. Era nela que os guardas davam seu plantão noturno, sentados no corredor de uns quatro metros somente, entre a porta da sala, que era fechada à noite, e a porta da rua. 

Esta era a única entrada possível no prédio, porque a porta dos fundos havia sido travada por um carpinteiro, para que nunca pudesse ser aberta. Afinal, aquilo era uma delegacia que tinha que funcionar como uma prisão temporária também. Havia também, no corpo da casa, seis janelas largas, que foram todas gradeadas e que não demostravam qualquer sinal de arrombamento.

Se alguém tivesse vindo de fora para praticar o crime, teria que passar pelo guarda. E este, embora normalmente dormisse o tempo todo também, colocava-se de propósito como uma barreira difícil de transpor, pois dormia com a cadeira encostada numa parede do corredor e as pernas esticadas, tocando a outra.
Tudo isso levava o delegado Oliveira a reforçar sua tese preferida: Adolfo Schlikmann, fingindo-se de doido, tinha conseguido eliminar o homem que era uma ameaça real para sua vida. Ou ele o tinha feito sozinho – o que parecia perfeitamente plausível – ou através de um ou mais dos bandidos da cela.

Às 10 da manhã o delegado estava francamente exausto de tanto pensar. Sua cabeça doía horrivelmente. Mas o tempo todo permanecia com uma certeza inabalável: o assassino de Valdemar Silva era Adolfo Schlikmann, ou diretamente ou como mandante. Era evidente que o crime havia sido praticado por gente de dentro da delegacia, visto que não havia a menor possibilidade de alguém ter entrado no prédio pela porta da frente ou pelas janelas, todas elas gradeadas e todas perfeitamente intactas.

Uns quinze minutos depois recebeu uma ligação do sogro, que o deixou mais animado:

– Olhe, o homem está cada vez mais pirado. Agora deu pra cantar umas engroladas em alemão. Canta e mexe as pernas sem parar, como se estivesse marchando, só que deitado na cama. Segue se sujando, está de fraldão geriátrico.

– E o psiquiatra?  E o legista? Alguma novidade?

– Bem, eu mexi os meus pauzinhos e consegui que me mandem os dois rapidinho. O legista chega hoje de Joinville, é o mais urgente, é claro. E o psiquiatra forense vem amanhã, de Florianópolis.
– E como a gente faz?

– Bem, agora vamos ter que trazer o corpo do Silva pra cá, vou ter que improvisar uma das minhas salas de cirurgia para o local da autopsia. E aí é bom que você esteja junto com a gente. Eu vou acompanhar o trabalho do legista é claro. Você tem algum problema com isso? Ver sangue, corpo cortado em pedaços, revirado, órgãos extraídos, sabe como é. Se for muito difícil pra você, pode ficar do lado de fora e eu vou saindo e informando o que a gente for descobrindo.

– Não, não tem problema nenhum. Pô, sogro, parece que o senhor esqueceu qual é a minha profissão! Eu estou cansado de ver neguinho todo estraçalhado, na bala, na faca, ou no porrete; ou todo arrebentado em acidente. Fora os que eu mesmo tive que furar em trabalho. Se eu não tivesse estômago pra coisa, estava fora há muito tempo, digitando trabalho burocrático e ganhando uma merreca.

– Ótimo, melhor assim. O Dr. Krause deve chegar aqui por volta das duas da tarde. Então vamos ver se a gente começa a autópsia assim que ele chegar a examinar os materiais, ver se há algo mais que ele precise. Ele disse que vai trazer as coisas mais complicadas de Joinville mesmo, por isso eu acho que não vai faltar nada. Mas você, a partir das duas, tem que estar aqui e ficar por um bom tempo. Agora dê um jeito de trazer o corpo pra cá, tenho que botar o bruto pra resfriar, já faz muito tempo que ele empacotou, pode atrapalhar o exame.  

O médico legista

O Dr. Flavio Krause chegou antes das duas da tarde, dirigindo seu Honda Civic 2008. Fez a viagem de 110 km em tempo recorde, pelo jeito devia pisar um bocado no acelerador. Feitas as apresentações, justificou-se:

– Já que me mandaram vir para cá, o negócio era chegar o mais rápido possível, quanto menos tempo se passar desde a morte, melhor. Onde está o corpo?

O Dr. Luzardo acompanhou o legista e o delegado até à sala de cirurgia. O médico de Joinville achou as instalações mais do que adequadas para o seu trabalho especializado e pediu algumas substâncias e materiais auxiliares, que foram prontamente trazidos. Então o corpo nu foi trazido da câmera frigorífica e passado da maca para a mesa de cirurgia.

O olho clínico do experiente legista já registrou uma coisa diferente:

– Vejam só como ele está amarelado. Me lembra casos que eu já vi e me leva para uma primeira linha de investigação. Vamos começar coletando material para análise toxicológica: sangue, suco gástrico. Quero também uma raspagem de pele, há uma área levemente avermelhada aqui, perto do ombro, vejam. E abaixo das narinas também. Existe um microscópio bom por aqui?

– Tem no laboratório de análises clínicas, fica do outro lado da cidade. Mas eu tenho o meu, que está em casa, aqui perto. Posso ir buscar agora e o senhor vê se ele é suficiente. Se não for, falo com a Dra. Celina, a dona do laboratório e a gente pede para usar o dela.

– Ótimo, delegado. Se eu for precisar do microscópio, eu lhe aviso. Mas, antes, eu quero que vocês me ajudem a procurar uma marquinha muito, muito pequena no corpo. Pensem só nas partes que normalmente estariam expostas, quando o homem estivesse dormindo na cela. Ainda vivo.

– Marca de que?

– De injeção. Muscular. Não é injeção na veia. Se for o que eu estou pensando, pode ter também alguma alteração subcutânea no local. Vamos lá, eu trouxe um jogo de lupas. Eu e o Dr. Luzardo examinamos, o delegado, por favor, usa esta minha lâmpada especial, para ir iluminando um pedaço da pele onde eu indicar. É luz visível forte, mas tem ultravioleta também.

Os dois médicos começaram o exame minuciosamente, a partir do antebraço direito para cima. Isso porque o delegado informou que o homem, ao ser encontrado, estava usando apenas uma camiseta regata, sem mangas, portanto.

Nada encontraram do lado direito. Começaram então a mesma rotina de investigação no braço esquerdo. Foi quando chegaram quase à altura do ombro que o Dr. Luzardo sinalizou um ponto onde havia uma pequena marca de furo, típica de agulha. O Dr. Krause apalpou ao redor com as pontas dos dedos e disse:

– É isso! É exatamente isso o que eu estava esperando. Agora confirmo: é idêntico a outros dois casos que eu já vi. Vamos colher os materiais para o exame toxicológico, para confirmar. Vai levar alguns dias para recebermos o resultado. Mas a resposta eu já sei qual vai ser.

– E qual pode ser essa resposta, esse resultado, doutor?

– Uma só e muito óbvia, delegado: envenenamento!

– O que?! Então o homem foi assassinado através de uma injeção letal? Mas com que raio de substância? E como podem ter aplicado uma injeção sem o homem berrar, acordando.

– Pois, caro colega, a vítima não teve condições de acordar. Dormindo estava, dormindo ficou durante todo o procedimento criminoso. Isso é possível se este tem um grande conhecimento da substância que está aplicando na vítima.

– Céus, eu estou curiosíssimo, excitado mesmo. Eu tinha certeza que era assassinato! E sei quem foi que cometeu o crime. Também tenho certeza. Só pode ter sido o alemão.

– Muito bem, delegado, sua certeza primeira é verdadeira: o homem foi mesmo assassinado. Quanto a quem foi o criminoso, escapa totalmente da minha alçada. Mas para isso existem o senhor e a polícia. Mais cedo ou mais tarde a verdade aparece.

– E a substância usada, Doutor Krause?

–  Simples, barata, eficiente, pouco conhecida no Brasil. Mas responsável por várias dezenas de mortes mesmo assim, neste país. O nome é fluoracetato de sódio. O 1080. Mil e oitenta!

– Nunca ouvi falar disso, doutor! Que diabos é essa coisa, como age?

– É um raticida comum lá fora. E é usado para matar outros roedores e mamíferos grandes, principalmente na Austrália. A característica principal, quando usada em humanos, é que não deixa vestígios muito evidentes. Se você nunca viu um caso, mesmo como legista você tem dificuldade de perceber. Mas os sintomas são típicos. Esse amarelidão na pele foi o principal para mim. Ele estava presente nos outros dois casos que eu trabalhei. É muito leve, muito discreto, deve ter passado despercebido para vocês dois inclusive, não se culpem por isso. Mas, assim que eu chamei a atenção de vocês, vocês puderam ver, não foi?

– Sim, com toda a certeza. E ficam resíduos em mais lugares?

– Sim, Dr. Luzardo. Fica no estômago, se ouve ingestão. Fica no sangue, se foi injetado, como parece o caso.

– Tá, mas como foi que fizeram pro homem não acordar, gritar, se defender?

CONTINUA

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