sábado, 20 de fevereiro de 2016

LUA  OCULTA – 70   
MILTON MACIEL 

70 – A PESSOA ESCOLHIDA
Fim do cap. 68:  "Ora, carcamano – respondeu Celso, rindo – um outro mecânico, um torneiro, chegou a presidente neste país. Não é esse o problema, portanto. E você é brasileiro naturalizado, logo..." 

– Mas eu sou mecânico! Mecânico, cáspite! E eu digo isso porque eu gosto de ser mecânico, toda a minha vida eu fui mecânico, só mecânico, desde molequinho. E eu não quero ser outra coisa. Muito menos ser prefeito. Nem vereador. Nem porcaria nenhuma que não seja mecânico. Eu vivo do cheiro da graxa, do carinho das engrenagens, da doçura dos pistões nos cilindros, eu...

Celso interrompeu-o, rindo todo contente:

– Um poeta! Eu já disse, mais de uma vez, que você é um poeta, italiano: Carinho das engrenagens, doçura dos pistões... Demais!

– Poeta só se for de motor e de câmbio, doutor. Mas eu, com toda certeza, posso só ser o pior prefeito que Amarante jamais terá em toda a sua história. Estou fora, me desculpem!

Foi a deixa para Gládis entrar em cena:

– Calma, Rondelli. Relaxe. Tranquilo. Não foi você a pessoa escolhida.

Rondelli arregalou os olhos, soltou um sonoro “Ufa, graças a Deus!” e olhou para Celso Teles, no que foi secundado por todos os presentes. Então Celso disse:

– Isso mesmo, Rondelli. Eu não ia cometer essa maldade com um grande amigo. Além do que, é claro, não posso ficar sem o meu mecânico chefe, eu sou egoísta pra burro, não cedo você pra Amarante, mesmo sabendo que você é o salvador da pátria.

Todos caíram na gargalhada, enquanto Fúlvio Rondelli finalmente sentava – ou melhor, desabava sobre a cadeira. Celso Teles, rindo e gozando-o, era sinal seguro que daquele fantasma ele estava livre. Então, mais aliviado, raciocinou e comentou:

– Mas isso quer dizer que, eliminado o italiano aqui, só sobram estes dois meninos, Larissa e Leon. Faz sentido, doutor?

Foi Gládis De Rios quem respondeu:

– Todo sentido do mundo, Fúlvio. Olhe bem para essas duas cabeças loirinhas e você está vendo o futuro de Amarante.

– NÓS?! – estranhou, incrédula, Larissa, arregalando as duas joias de água-marinha desmesuradamente.

– NÓS? – falou Leon, mais incrédulo ainda – Isso é brincadeira, pegadinha na certa. Imaginem eu, de playboyzinho inútil a prefeito em dois anos. Que desastre não ia ser! Gente, eu não sei fazer NADA! Rigorosamente nada, nunca fiz.

– E nem eu – reforçou Larissa – Quer dizer, agora eu aprendi a vender carros, é a primeira coisa que eu faço na vida. Mas de vendedora de automóvel a prefeita... Claro que é gozação deles pra cima de nós, Leon.

Mas Gládis, a infalível Gládis, sorria para eles e fazia que não com o dedo, o que os deixou desconcertados. O que significava tudo aquilo, então?

Celso organizou as coisas:

–  Bem, aqui ninguém está brincando, não. Não dá para brincar com o futuro da nossa cidade, a coisa é séria. Então, número um: não é brincadeira. Número dois: só tem Rondelli, Leon e Larissa. Número três: não é Rondelli. Número quatro: só sobram Leon e Larissa. Número cinco...

E deixou, divertido, a coisa no ar. Obviamente era o convite para que Gládis assumisse. Agora a coisa ficava melhor com uma pitonisa. E ela falou:

– Número cinco: são Leon e Larissa juntos! Os dois. Mas não simultaneamente, tipo prefeito e vice-prefeito. Quer dizer, não simultaneamente, mas sucessivamente.

Paula interrompeu:

– Peraí, peraí, chefia! Agora fundiu. O que quer dizer isso?

Gládis respondeu:

– Sucessivo quer dizer um depois do outro, esqueceu mocinha?

– Claro que não, não é! Mas expliquem logo esse mistério, está me dando nos nervos.

– Nossa, Paula, se está dando nos seus, imagine nos da gente. Eu não estou entendendo é nada.

– E eu menos ainda, Lissinha – reforçou Leon.

Carmen entrou na conversa pela primeira vez:

– Olhem, eu acho que sei onde vocês estão querendo chegar. E, se for isso, caramba, é a coisa mais maluca que eu já vi nesta cidade. Só que, se parte de Celso Teles e tem o aval da nossa bruxinha, então a coisa só pode dar certo. É uma coisa de preparar para o futuro, não é Celso? Foi por isso que você falou que o tempo, um ano e meio, dois anos até a posse, conta a favor nosso, não é?

– Isso mesmo, espanholita-mãe. Você já entendeu tudo.

– Mas a tapada aqui ainda está por fora.

Foi Lucas que respondeu para Paula:

–  Dois anos pode ser um tempo bem razoável para formar um administrador, desde que, é claro, esteja em mãos de uma grande equipe de formadores e seja... bem, seja...

Celso ajudou:

– Honesto! Pode dizer, Lucas, é isso mesmo. É por isso que esses dois estão na jogada: por causa da matéria prima que eles representam.

Ele fez sinal a Gládis, que levantou novamente e conduziu a conversa:

– Deixem que eu abuse um pouco da lógica com vocês. Agora é papo além da lógica, envolve futuro. Vocês já conhecem os nossos herdeiros riquinhos de Amarante, que nasceram em berço de ouro, que nunca fizeram nada, que nasceram as criaturas mais bonitas desta cidade, que tiveram como pais homens horrorosos, os quais queriam, por que queriam, que os dois casassem na marra. E nunca deixaram nenhum deles trabalhar. Mas se há uma coisa que eu posso dizer deles, de ambos, é que eles são do Bem, da Grande Luz.

A voz de locutora de rádio aparteou:

– Ah, isso eles são mesmo, Gládis. Meu copinho é um ingênuo sem maldade, nem parece que cresceu sob a influência daquele pai dele, daquela família toda cheia de preconceito de tudo que é tipo. A prova maior? Euzinha aqui: simplesmente esposa dele! E a Fofinha, então?  É a nossa criança, o nosso anjo, a nossa alma pura.

– Limpa, honesta, transparente, sincera, generosa...Sim, uma alma pura, Jenny – completouCarmen.

– Então, gente - continuou Gládis - o que isso tudo quer dizer para vocês? Que essas duas criaturas foram mantidas como que suspensas, fora da realidade completa, preservadas, eu diria. Preservadas, para que fossem entregues a nós no momento certo: Larissa entregue a Celso, a mim, a todas nós. Leon entregue a Jennifer, a Celso, a Rondelli. Mas preservados, entendem?

–  Sim, Gládis – interveio Paula –  faz sentido agora. Faz sentido. Matéria prima de primeiríssima. Mármore de Carrara, coisa fina. Onde se pode talhar as mais belas esculturas.

Caspite, vocês têm razão! Essas crianças mantiveram uma pureza de caráter que não se encontra mais por aí. É como se eles estivessem programados para começar só agora. Sim, é isso, porca miséria! Eu estive com eles quase desde o começo. Eu acompanhei os dois, eu amparei os dois, eu vi os dois crescerem. E então vocês chegaram. E revolucionaram tudo aqui nesta cidade. E revolucionaram a minha vida. E, agora, a vida destes meninos aqui.

– É isso, Rondelli. Eles são, como a Paulinha disse, blocos de mármore de Carrara. Preservados... – disse Carmen.

– Pois então agora todos podem compreender o que vem a seguir. Prestem atenção. É como se houvesse um plano muito maior do que todos nós, um plano para esta cidade toda. Um plano para preservar Amarante da desagregação, usando suas crianças-prodígio, as crianças que a população aprendeu a amar, que o povo viu que não saíram aos pais bandidos, mas que, ao contrário, são exemplos de caráter e de luta contra a opressão desses pais.

– Pois vejam – seguiu Jenny – Leon sai de uma família alemã ariana pura para casar com uma negra. Isso o coloca claramente do...

– Do lado do povo! – completou Lucas.

– Pois é por aí mesmo, camarada – disse Celso. Esse aí caiu em desgraça com os racistas, mas aterrissou nos braços do povão, pode ter certeza.

– Como eu já ouvi algumas vezes: “O Schlikmann sangue bom”. “O carinha mais legal”. “Um senhor centroavante”.

Leon perguntou, surpreso:

– Você ouviu essas coisas, é, Lissinha?

– Isso e muito mais, Leonzinho. Gente, se o Leonzinho for o nosso candidato, metade da mulherada vota nele, porque deve ser o número de mulheres que ele levou pra cama nesta cidade.

– Ah, tá, não exagera, Lissinha! Eu não tava com essa bola toda. Oi, Jenny, não vai atrás da Lissinha, é exagero.

– Exagero, nada, seu galinhão, você passou o rodo por atacado que eu sei. Mas não tem importância, ainda sobrou muito pra mim, tá dando pro gasto.

O comentário de Jennifer tirou todos do sério, provocando gargalhadas, inclusive em Leon e Larissa, que ainda estavam muito perplexos e assustados com o rumo da conversa.

Celso fez sinal para que Gládis continuasse. E ela finalmente anunciou:

– A proposta do Celso é a seguinte: Leon Schlikmann vai ser o nosso candidato. E Larissa Silva vai ser a sua sucessora, quando chegar a hora.

Larissa agarrou-se a Celso Teles, um tanto em pânico:

– Mas eu, amor?! Mas o que eu sei fazer? Nossa, uma prefeita tem que saber tudo, tudo,.. Eu não sei nada, nada.

– Mas você vai ter DEZ longos anos de preparação, meu bem.

– Dez anos? – estranhou Paula.

– Sim. Dois anos até o Leon assumir. Mais oito anos dos dois mandatos do Leon como prefeito. Então, depois disso, vêm os seus oito anos, seus dois mandatos.

– Gládis!!! Mas isso é loucura, é impossível até de imaginar!

– Pois não imagine, Fofinha, apenas se entregue. E eu juro que você vai ser tudo isso e muito mais. Entregue-se a nós e entregue-se a Amarante e seu povo. E tudo vai acontecer. Deixe a sua preparação com o Celso e todos nós. Nesse oito anos você vai estar casada com o Celso, vai ter seus filhos, que você tanto quer, eu sinto. E vai aprender a levar sua vida de adulta, de mãe, de amiga e, principalmente, de centro de força e de amor.

– Como assim, Gládis?

– Deixe isso com a sua amiga bruxa aqui, Fofinha, eu estou escrevendo na tela do seu futuro, mas uma boa parte disso eu discuti antes com Maria Amália. Ela viu muito disso no seu mapa astrológico e eu vi no inexplicável, com sempre vejo.

– Mas... Mas...

– E tem mais: Maria Amália disse que é para incentivar você imediatamente a desenvolver a profissão que o seu coração escolheu. Pois é com essa profissão que você vai fazer muito, muito, por esta cidade e seus habitantes.

Larissa deu um dos seus proverbiais gritinhos pulados:

– Agrônoma?!

– E tem outra? Vai querer ser supervendedora de automóveis o resto da vida?

– Não, não. Seu eu puder escolher, não tenho dúvida. Você fica chateado, amor? Quer que eu fique na Teles direto?

– Não, meu anjo. A Maria Amália já me preparou para isso. Eu quero você na Teles só para ficar curtindo você, adorando você. Mas eu estou pronto para deixar que você alce o seu próprio voo. Amo você demais para prender você egoisticamente a mim. Vá ser agrônoma, essa é a sua vida, amor. O que Maria Anália e esta bruxinha aqui falam, a gente assina embaixo sem precisar ler. Eu até já pensei como você pode dar começo na sua profissão.

– Como? Como?

– Ora, o óbvio. A gente compra uma FAZENDA e põe ali tudo o que você quiser produzir. E você aprende a fazer fazendo, se especializa, se realiza.

Larissa gritou, apertou Celso num abraço de quase sufocá-lo, resistiu o que pôde, mas acabou entregando os pontos e desfaleceu. Era emoção positiva demais para ela e é assim que os anjos da Terra reagem ao contentamento e à gratidão excessivos. Ninguém se assustou ou impressionou com aquilo, já estavam acostumados. Celso apenas a susteve e esperou pelo clássico tempo de um minuto, após o qual Larissa voltava inteiramente ao normal, como se nada houvesse acontecido. Os anjos são assim, são diferentes, não são como as pessoas comuns.

Após o tal minuto, do qual Larissa emergiu para beijar Celso apaixonadamente, Gládis continuou:

Leon Schlikmann, você é o nosso candidato! Como Lissinha, você vai ter sua família e seus filhos e vai amadurecer graças a esta rainha maravilhosa que você ganhou de Deus e às crianças de vocês. Enquanto isso, mestre Celso e toda a sua equipe vão investir tudo na sua preparação. Nós queremos você, Leon, porque você é limpo, sincero e HONESTO.

– Limpo? Eu?

Celso explicou:

– Limpo quer dizer que você não tem um passado, Leon. Deferentemente do todos os políticos por aqui, você é zero quilômetro, rapaz. É bonitão, é uma simpatia e caiu nas graças do povo ao mandar seu pai pro quinto dos infernos e casar com Sabá. Cara, você está pronto para começar a sua campanha. E, claro, com o apoio deste outro cara que agora, neste momento, os eleitores votariam nele maciçamente: Celso Teles.

– Putz, mas é duro de ver algo assim na minha vida, Celso. Eu sou tão cru, tão inexpressivo e...

– Quieto, meu copinho! Não se diminua. Você é tudo o que há de bom. E é inteligentíssimo, vai aprender tudo com a maior facilidade.

– Você acha mesmo, Jenny?

– Ora, claro que acho, meu amor. Tenho certeza absoluta. Gente, objetivamente, com quem ele começa?

Gládis saltou na frente com a resposta:

– Ora, com quem o coração de Leon vibra em silêncio. Vamos lá, Leon, escolha um destes mestres para começar. Fale sem receio, ninguém vai achar inadequado. Todos nós queremos investir tudo em você, nosso prefeito de Amarante.

– Bem... Posso pedir dois? Eu queria que o Celso me ensinasse muito de... bom, não tem nada a ver com coisa de prefeito, mas é... futebol.

– Ah, mas isso já estava nos planos, Leon. Pode começar já. E também dó Ibope com o povo. Quanto mais perfeito jogador você for, mais a massa vai admirar você.!E o outro é?

– Tio Rondelli! Eu... bem eu queria aprender mecânica de automóvel com o tio. Acho bárbaro o trabalho dele, nas vezes que vou à oficina, eu fico doido de vontade de meter a mão na graxa, de mexer nas ferramentas, nos motores, de entender as coisas... É inconveniente?

– Mas claro que não, bambino. Comece amanhã mesmo, se quiser. Tudo certo, chefe?

– Mas com certeza, Rondelli. Uma maravilha, Leon, parabéns.

– Sabe, gente, eu quero começar a fazer algo forte, pesado, que dê resultados concretos, na hora, que faça bastante barulho. Assim, eu que fui sempre um vagal, vou me sentir útil e importante para os outros. E aí eu posso chegar em casa morto de cansaço e com orgulho do meu trabalho. E posso olhar nos olhos da minha rainha e me sentir bem, me sentir à altura dela. É isso, tio. Eu quero ser mecânico como o senhor, ao menos até chegar a hora de ser prefeito, se essa é mesmo a minha sina. E depois também, não é? Ninguém é prefeito a vida inteira. Depois eu posso voltar a ser mecânico. Que tal?

– Perfeito, rapaz. Beleza.

– Ai, Leonzinho, olhe só o que está acontecendo com a gente: de uns incompetentes a gente vai passar a ser alguma coisa: você mecânico, eu agrônoma. E, ainda por cima, eles querem que a gente vire político.

Gládis cortou na hora:

– Não, não, meu amor! Não mesmo! Ai você não entendeu. A gente não quer que vocês sejam políticos, a gente quer que vocês seja administradores de Amarante. É muito diferente. Vocês, a rigor, não estão aqui para fazerem carreira na política, mas para fazerem carreira como gestores honestos e competentes. Findos os mandatos, você caem fora e voltam para suas vidinhas doces de sempre. Nada de político e politicagem profissional. Está claro?

– Ah, assim é muito melhor, muito melhor mesmo! Olha que, se vocês vão preparar a gente e sendo vocês quem são, se o maestro é o Celso e a guru é a Gládis, bem, eu começo a acreditar que a metamorfose é possível. De vocês eu não duvido mais nada! O que você acha, Lissinha?

– Eu ainda acho inacreditável, Leonzinho. Mas se são eles... Se o meu amor diz que pode. Se a minha bruxinha  diz que está vendo a coisa certa lá no futuro, então... Ai, minha nossa, eu vou ter que fazer um esforço enorme para poder acreditar nisso!

– E a gente faz a parte prática, não é Rondelli? A rotina, a graxa, os números...

– Falou e disse, amigo Lucas. Treina os músculos da garotada.

Celso Teles, então, fez um sinal para que todos prestassem mais atenção e falou:

CONTINUA


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