terça-feira, 21 de março de 2017

PARA QUEM QUER ESCREVER FICÇÃO
 # 3 – INDÍCIOS NÃO-VERBAIS – 3ª. parte
MILTON MACIEL (Esta série oferece contribuições à técnica de quem quer escrever ficção)

MOSTRE, NÃO CONTE

Você pode ficar confuso com essa história de “Mostre, não conte”. Porque, a rigor, tudo é contar. Eu sou obrigado a contar ao meu leitor aquilo que eu quero que ele saiba e, principalmente, que ele imagine. Porque, afinal, eu não tenho uma câmera cinematográfica, para mostrar – e só mostrar – para ele.

Já o contar é que é o grande problema para o cinema e a TV. Eu filmo uma cena mostrando uma rua de um bairro popular, numa noite de chuva, passeando com a câmera ao longo das fachadas das lojas e das paredes desbotadas e pichadas. Mas eu não tenho como dizer ao meu espectador que aquela é a rua onde o personagem X viveu sua infância e que ele está ali num retorno nostálgico, em busca de uma antiga namorada. Eu não posso abrir a cena com uma narração ou um texto. Essa informação não entra pela câmera em seu passeio, vai ter que ser colocada em cena através de algum diálogo ou monólogo em voz alta nesta cena. Ou isso acabou de ser feito na cena anterior.

Já num livro eu posso abrir a cena com a narrativa, contando a localização exata no espaço e no tempo, o narrador sabendo da história, do passado e do que se passa agora na cabeça do personagem principal. Mas, em compensação, eu vou ter que me virar e trabalhar muito se eu quiser dar muita informação sobre as tais fachadas das lojas, os grafitis desbotados sobre as paredes, as portas, as vitrines, os automóveis, a iluminação, os transeuntes, os clientes dos bares, a cara do tempo, a chuva ou neblina.

No filme isso é fácil demais. A câmera é especializada em mostrar. Ela desliza no trilho e nos informa instantaneamente sobre aquilo que o escritor vai ter que suar para dar uma ideia limitada, sem cansar ou desinteressar o leitor com descrição em excesso, uma das coisas mais chatas da literatura.

Para nós que, escrevemos ficção para leitura, contar é muito fácil, mostrar é mais difícil. Exatamente o contrário do acontece com o roteirista, para quem mostrar é muito fácil e contar é mais difícil.

Porém, é justamente no talento para mostrar que se concentra a maior ou menor qualidade do escritor de ficção. Exatamente porque mostrar, para nós, é mais difícil. E, quanto mais bem você souber mostrar, mais bem-sucedido você será ao contar sua história.

Veja, num nível muito mais rudimentar, o caso do bom piadista. Além de ter uma memória afiada para desfiar um alentado repertório, o que mais agrada aos seus ouvintes é sua capacidade de representar, de dramatizar a piada, de puxar a risada no momento certo e culminante. Ele é um artista de teatro. Ele mostra, não conta. Por outro lado, você conhece certamente um bom punhado de contadores de piada absolutamente sem graça. Eles são sem graça, não a piada! Eles contam a anedota, não mostram. Você não conta uma piada, você mostra uma piada, se quiser ser bem-sucedido na empreitada.

Da mesma forma, você já deve ter ouvido um pianista sem talento tocando um prelúdio de Chopin. Parece um mecânico martelando a lataria do seu carro. Depois você ouve um virtuose que não toca, interpreta a mesma peça, e você é capaz até de levitar. Tocar é contar, interpretar é mostrar. Interpretar transmite emoção em altas doses.

Mas atenção: isso não quer dizer que, em ficção, você não deve contar, só deve mostrar. Nada disso! Você vai ter que aprender a usar os dois recursos e dosá-los tecnicamente de acordo com a importância da cena e com o ritmo que você quer imprimir a ela. Contar acelera, mostrar ralenta. Contar sumariza, mostrar dramatiza. Contar é objetivo, mostrar é subjetivo. Contar é de fora para dentro, mostrar é de dentro para fora.

Contar vem pronto e acabado da cabeça do narrador (que é o escritor, afinal) para a do leitor. E isso às vezes é não só conveniente, como altamente necessário. Mostrar é falar com o leitor de dentro da cabeça do personagem, mobilizar seus cinco sentidos, seus pensamentos, suas emoções. E fazê-los passar para a cabeça do leitor com liberalidade, deixando-o com certa liberdade para imaginar, para criar, para supor possíveis desdobramentos nas páginas seguintes. Esse é o verdadeiro jogo da ficção. Um jogo sutil entre contar e mostrar, em que, no fundo, tudo é contar.

Mas isso depende de como você conta: contou sintético, foi objetivo, é contar propriamente dito. Contou dramatizando, foi subjetivo, transmitiu emoção e pensamento, inclui o leitor no bolo – aí é mostrar. Ou seja, é contar e contar. Só que tudo depende de como você conta.

Porque você não tem uma câmara na mão para mostrar. Você vai ter que mostrar com palavras, nossas unidades benditas de trabalho. As palavras e a sua mestria, como autor, em alocá-las e combiná-las é que vão construir a sua tomada de cena: luzes, câmera, ação!

CONTINUA

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