terça-feira, 17 de outubro de 2017

É POSSÍVEL ENSINAR ALGUÉM A ESCREVER BEM?
MILTON MACIEL

Muitos apregoam aos quatro ventos que não, abrindo exceção somente para os casos em que se usa um caderno de caligrafia, para melhorar a letra cursiva desse alguém. Como é óbvio que nossa intenção aqui é bem outra, nada tendo a ver com letra cursiva, vou dar minha resposta:

É possível, SIM!

Você só não pode ensinar, a rigor, uma pessoa a escrever melhor, porque melhor é superlativo de bom e você não ensina alguém a escrever mais bom, ensina a escrever mais bem. Mas esta construção fica imperfeita, porque implica em que essa pessoa já escreve bem e você a ensina a escrever mais bem ainda.

Voltemos, portanto, ao conceito inicial: escrever bem. Cujo oposto óbvio é escrever mal. E a primeira pergunta que coloco aqui é seguinte:

Alguém pode escrever bem, sem estudar a arte e a técnica da escrita?

Minha resposta é SIM, um acachapante sim.

Muitas pessoas possuem esse dom inato e, via de regra, porque intensas leitoras – donas, portanto, de um alentado vocabulário e de um conhecimento quase intuitivo de gramática prática – são capazes de escrever corretamente. Se conseguem completar esse dom mais básico com uma capacidade de observação/imaginação prodigiosas, podem chegar também ao cerne mesmo do ato de escrever, que é a concepção da IDEIA original sobre a qual vão escrever bem. Estas são as pessoas qualificadas como “diamantes em bruto”. Se chegarem a ser lapidadas, por esforço próprio de estudo ou com a ajuda de outros, viram gênios da literatura.

Só que tem uma coisa: os “diamantes em bruto” são exceção absoluta, não são a regra geral. O engraçado é que, de um modo geral, quase todos os principiantes se sentem diamantes previamente polidos, gênios em potencial, que aqueles cretinos dos revisores, editoradores e editores não sabem reconhecer, iluminados que não precisam aprender e praticar nada sobre as técnicas de sua profissão, as quais, obviamente, já nasceram sabendo!

Futebol e música

Para entender melhor esse processo de lapidação a que me refiro, proponho fazer uma pequena digressão pelos campos do futebol e da música. Comecemos, para arrasar, logo pelo rei do futebol: Pelé, o gênio da bola. Todos tendem a achar que Pelé foi um caso único no mundo, um prodígio, porque...  nasceu pronto! Bem poucos sabem que o menino Gasolina, 15 anos, moleque de recados dos jogadores adultos do Santos F. C., deu um duro danado nos treinamentos, tornando-se em pouco tempo o mais aplicado de todos, aquele que continuava em campo quando todos já tinham ido para casa e ficava sozinho no estádio apagado, treinando dribles e batidas de faltas, sob a escassa luz esparsa da noite da cidade, apoiada ocasionalmente pela benevolência da lua cheia.

Seu pai, Dondinho, que havia sido um bom jogador profissional de futebol, reconheceu muito cedo o talento extraordinário do filho. E, por isso mesmo, não deixava o moleque ficar usando seu dom só nas inúmeras peladas com os outros moleques, onde ele se divertia e se destacava. O pai obrigava o filho criança a fazer contínuos treinamentos e Pelé adulto relembra o quanto detestava isso. E que chegava mesmo a chorar, especialmente quando o pai levou mais de um ano forçando-o a treinar horas por dia, todos os dias, no corredor de casa, a chutar com o pé esquerdo até não aguentar mais de dor. Até que um dia, finalmente, o menino conseguiu fazê-lo sempre; e tão bem quanto fazia com o pé direito intuitivamente.

O maior talento inato foi também aquele que treinou MUITO MAIS do que os outros. O diamante em bruto foi lapidado à perfeição, até a mais ínfima das suas facetas. Esse é Pelé!

Pense agora em músicos, mais especificamente em COMPOSITORES. Lembre-se de vários deles, populares e eruditos. Traga-os de volta à sua tela mental, veja-os apresentando-se ao público. São diversos, mas a esta altura sua memória deverá ter detectado algo que todos eles têm em comum. Viu?

Pois é, com raríssimas exceções, quando você os relembra em suas apresentações, o que eles têm em comum é um INSTRUMENTO nas mãos. João Gilberto, Toquinho, Chico e Caetano têm um violão; Tom Jobim, Taiguara, Guilherme Arantes e Heitor Villa-Lobos, um piano.

Qualquer um deles poderia ter composto assobiando ou cantando, acompanhando-se com uma caixa de fósforos. Mas... você acha que teriam chegado tão longe quanto chegaram?

Caetano diz, no final de sua “Tigresa”:
“... E eu corri pro violão, num lamento,
E a manhã nasceu azul...
Como é bom poder tocar um instrumento.”

Pois é, o domínio do instrumento é a TÉCNICA, sejam os dedos no violão, sejam os dedos e os pés no piano, sejam os pés, as pernas, as mãos e a cabeça no futebol. Eles precisam ser capazes de obedecer com perfeição aquilo que a mente do artista da música ou da bola quer expressar.

Um pianista clássico ensaia em média 8 horas por dia. Uma bailarina também. Um jogador de futebol idem.

Vai daí a primeira recomendação: Você quer ser um grande escritor? Pois bem, ensaie 8 horas por dia. Como?! Escrever oito horas por dia?!!

Não, eu usei o verbo ensaiar! E o principal trabalho do escritor não é escrever. É LER.

Ler como um leitor e ler como um escritor. E ler sobre os segredos da sua profissão. Ler e estudar os processos de escrita. E escrever aplicando o que você absorve por osmose ao ler bons colegas; e o que você absorve por esforço, ao estudar as técnicas da nossa arte maior.

José Saramago, prêmio Nobel,
descreveu assim sua rotina a uma repórter:

– Escrevo todos os dias.

– Fantástico! Quantas páginas? – perguntou a moça, antegozando a resposta sobre as dezenas de páginas que o gênio lavraria num único dia.

– Uma. Ou duas, no máximo.

– Só!!! – escandalizou-se a moça – E o resto do tempo, o que o senhor faz, então?

– O resto todo do dia, eu LEIO. Senão, como é que eu seria um bom escritor?

Já Stephen King recomenda uma rotina diária mínima de seis horas de trabalho. Escrevendo o tempo necessário para gerar 10 páginas. E o resto do tempo todo dedicado à leitura. Todo santo dia! Leitura de, pelo menos, 80 livros por ano.

Faça aí suas contas:

Escrevendo uma única página por dia (10 minutos a meia hora, no máximo), todos os dias, dá mais de 360 páginas para revisar, editorar e publicar como um livro. Ou seja, um a dois livros POR ANO!

Escrevendo 10 páginas por dia (1 hora e meia a 5 horas – in extremis!), dá mais de 3600 páginas por ano. Um livro de 300 páginas POR MÊS! Ou, folgadamente, um livrão com algo como 900 páginas para você ir cortando na revisão e publicar com 600 páginas no fim, a la Stephen King. Isso a cada TRES MESES.

Logo, ESCREVER não é a parte difícil da profissão de escritor. ESCREVER BEM é que é.  Porque tempo você tem de sobra para ser um Saramago.

Mas, como no piano ou na flauta, só precisamos aprender COMO se toca o instrumento. Mais: como se toca BEM o instrumento. E isso é perfeitamente possível. LEVA ANOS, é bem verdade. Muitos, se você só faz exercícios e toca só de vez em quando. Muito menos, se você toca todo santo dia por paixão, horas a fio, e aprende um monte de músicas novas por puro prazer, puro deleite.

Para ser um bom escritor, você tem que fazer exatamente a mesma coisa: tocar o seu teclado ou caneta todos os dias, horas a fio, por puro deleite, puro prazer. Então escrever não cansa, não desanima, não satura. Pelo contrário, entusiasma, anima, você tem que se obrigar a parar porque é hora de comer, porque é hora de dormir, porque é hora de trabalhar em outra coisa ou lugar, se tal ainda for o seu caso.

E o resto do tempo você LÊ. Por puro prazer, por puro deleite, por duro – e delicioso – aprendizado. É como aprender músicas novas no piano.

(Adaptado de “A ARTE E A TECNICA DO ROMANCE” – Milton Maciel, IDEL, 2017, 280 pg)

Nenhum comentário:

Postar um comentário