sábado, 15 de fevereiro de 2014

ALLINE DE TROYES - 11ª parteO amor é uma avalanche!  
MILTON MACIEL  

Fim da 10 parte:
– Centurião, homens feridos não são ameaças, são seres apenas humanos desvalidos, que precisam de ajuda.

– Continuo não entendendo sua lógica, Alline de Troyes!

– É seu direito, centurião Marcellus. Mas deixem, agora, que eu lhes conte a parte mais maravilhosa de toda a minha curta vida.

11ª parte: O amor é uma avalanche!
Nos primeiros meses eu fiz progressos enormes, dei verdadeiros passos de gigante. Já ia fazer quinze anos na próxima primavera e, cada vez que eu pensava nisso, a minha felicidade aumentava ainda mais. Na minha idade, todas as meninas já estavam casadas ou a caminho rápido para isso. A maioria delas já tinha filhos, inclusive.

Eu, cada vez que via uma jovem grávida no burgo de Troyes, olhava para aquilo horrorizada e agradecia mentalmente ao meu abade, por ter me livrado daquele horror. Minha barriga, ao contrário dos enormes ventres da maior parte de minhas coetâneas, era lisa, dura como uma tábua, podia aguentar socos e pancadas com o simples retesar dos meus músculos. Mais uma coisa a agradecer a meu abade/general, que tinha sido tão exigente e tão duro com os meus exercícios de todos os dias. Depois de alguns meses de severíssima rotina, eu estava completamente acostumada e adaptada, me surpreendia fazendo ainda mais flexões e abdominais e correndo horas a fio voluntariamente, porque o meu organismo agora exigia isso por si mesmo. O senhor Gilles de Troyes, que chegara ali pouco mais do que um palito andante, agora encorpava a olhos vistos.

Mas o problema é que, sob as vestes de menino, as curvas e os cheios de um corpo de mulher também encorpavam. E isso tornava mais difícil minha rotina diária de ocultação desses incômodos e indesejáveis atributos femininos. Eram mais enchimentos para nivelar os seios com o peito de rapaz, para ocultar aquelas desagradáveis protuberâncias traseiras que os meninos não tinham, para engrossar a cintura, que era fina demais. O senhor Gilles de Troyes parecia mais um tourinho retaco, alguns colegas diziam que eu ia ser um velho gordo. Só meus irmãos sabiam porque o menino Gilles tinha que ter aquela silhueta quadrada.

Foi por essa época que o senhor abade começou dois novos tipos de treinamento comigo. Um foi a equitação de competição e de combate. Lucius Dracus era um exímio cavaleiro, havia aprendido muitas técnicas com cavaleiros celtas e também com cavaleiros hunos, para ele os dois melhores tipos de cavaleiros que ele havia conhecido na vida. Eu adorei aprender aquelas incríveis peripécias e, principalmente, a grande quantidade de truques para usar em combate. Cheguei a superar meu mestre inúmeras vezes, o que o deixava extremamente feliz e orgulhoso de mim.

Mas o segundo tipo de treinamento trouxe complicações pelas quais eu não esperava – a luta livre. Começa que eu não podia praticar a luta usando todos aqueles meus enchimentos de disfarce. Sobre o corpo havia uma simples túnica até os joelhos, encobrindo só em parte minha calças gaulesas de montaria. Assim eu dispunha de liberdade total de movimentos das pernas. Mas nessa prática de lutas, o combate é travado corpo a corpo. E coisas estranhas começaram a acontecer comigo.

Cada vez que o abade me pegava entre os braços para me imobilizar, que me aplicava uma chave de pernas, que me fazia rolar no chão com ele, eu perdia o controle dos movimentos de luta. Ficava distraída, porque o meu coração disparava e batia muito rápido. E eu sentia uma estranha perturbação, como eu nunca tinha sentido na vida. Não fui uma boa aluna de luta livre e o abade me disse que estranhava o meu comportamento em aula, porque eu era boa demais em todas as outras modalidades, principalmente as que envolviam o uso de armas. Um dia ele me perguntou se eu não gostava de luta livre e se eu desejava parar com esse treinamento.

Na hora eu tive uma reação que me assustou. Eu dei um grito, meu coração tinha disparado de novo:

– Não!!! Pelo seu Cristo, não! Eu não quero parar. Juro que vou melhorar, que vou me esforçar mais, muito mais. O senhor pode aumentar o número de horas, tire da equitação, onde um não preciso mais nada – e saí correndo como uma louca para a passagem exterior da sala de armas, me embrenhando no horto e no pomar, correndo como uma fugitiva e desatando a chorar. Se meu abade me visse, o que ia pensar de mim? Eu acabava de ter uma reação de mulher, de mulherzinha chorona e fiasquenta! Fiquei apavorada comigo mesma.

Nos dias seguintes, atendendo a minha sugestão, o tempo que seria gasto com os exercícios a cavalo foram usados para a luta livre. Eu fiz o melhor que pude, tentei me controlar, passei a agredir o abade com uma fúria desproporcional ao treinamento. Ele interpretou aquilo como um progresso e chegou a me elogiar. Mas por dentro eu sabia o quanto era difícil manter aquele controle todo. Porque, cada vez que ele me apertava com os braços, cada vez que o seu corpo musculoso e másculo encostava no meu, eu me sentia sufocar por dentro, estremecia tanto que tinha medo que ele percebesse.

A situação foi ficando tão tensa para mim, que eu fui procurar a ajuda do mago Kelvin. Depois de mais de uma hora de rodeios e floreios, na qual eu hesitava e morria de vergonha de entrar no assunto, o druida disse de repente, como se aquilo fosse a coisa mais simples e transparente deste mundo:

– Está bom, minha menina tola. Já lhe dei bastante tempo, mas vejo que você não consegue se livrar do seu medo. Pois eu vou lhe dizer: seu druida já lhe falou, no primeiro dia em que a conheceu, que isso ia acontecer, lembra-se?

– Isso o que, mestre? – respondi confusa.

– Que você iria encontrar o Amor na abadia de Troyes.

–Mas, mestre, eu não encontrei amor algum. Quer dizer, tem a bondade extrema do senhor e do senhor abade, que me tratam como seu fosse uma coisa muito melhor do que sou. Tem a paciência e a generosidade dos irmãos e dos professores, todos muito bons comigo. É isso?

– Não, minha filha. Não é o amor que vem de fora para dentro, das outras pessoas para com você. O amor que eu disse que você iria encontrar é o amor que surgiria dentro de você mesma. E esse amor já chegou.

– Mas como, senhor meu mestre? Eu não consigo entender.

– Alline, você é uma alma pura, dessas que raramente se vê neste mundo. E, para um velho mago como eu, é muito fácil ler o que vai por dentro das almas puras e transparentes como a sua. Você está amando, Alline de Troyes. Encontrou o amor!

– Mas...mas, senhor... Que amor é esse, se eu mesma não o reconheço? Estou tão confusa com o que diz...

– Você está confusa com o que sente, minha pobre menina. Mas seu druida pode ler você perfeitamente. Você é uma mulher jovem e precoce em tudo, Alline. Você é uma mulher, por mais que se vista de homem. E você está amando, mocinha. Está apaixonada. O amor, quando chega, é uma avalanche

– Eu??!! Mas como? E por quem ?

– Ora, ora, pelo seu querido abade, por quem mais poderia ser?

Na hora eu senti uma vertigem, o chão pareceu sumir aos meus pés e eu caí quase desfalecida nos braços do maravilhoso druida Kelvin. Ele me recostou em sua cama e foi buscar algo de cheiro muito intenso e estranho, que colocou sob o meu nariz. Voltei a mim imediatamente. Foi a primeira vez na vida que tive um desfalecimento verdadeiro e fiquei morta de vergonha do druida.

Mas ele, com toda a facilidade, leu o que eu pensava e sentia e falou:

– Você não deve se envergonhar disso, minha filha. É normal que as pessoas tenham vertigens sob emoções muito fortes. Digo-lhe mais: pare de pensar que isso é coisa de mulherzinha, que homens não sentem isso. Porque sentem. E eu mesmo já passei por isso mais de uma vez na vida.

– Mas, senhor...

– Alline, de uma vez por todas, compreenda isto, minha filha: você é MULHER! Você só está muito bem adaptada a sua casca exterior de homem, que a protege aqui nesta abadia, mas você é mulher! E não pense que toda mulher é fraca e pusilânime como sua irmã, ou fingida e manipuladora como sua mãe. Há milhares de mulheres dignas e de caráter, quer estejam cuidando de uma penca de doze filhos, quer sejam sacerdotisas nos templos, quer sejam guerreiras como você. Nunca se envergonhe de ser mulher. Ao contrário, aprenda a ter orgulho de sua condição feminina.

A leitura de minha irmã e minha mãe tinha sido perfeita! E o druida nunca as tinha visto nem eu lhes falara jamais sobre elas. Naquele momento, enfim, eu tive um primeiro lampejo sobre minha real identidade. Sim, eu era uma mulher. E não era nenhuma florzinha de estufa nem uma falsa ou mentirosa. Eu era mulher e era digna. Era mulher e era corajosa. Era mulher e sabia lutar com armas. E sabia lutar a luta livre e...

E nesse momento, ao lembrar da perturbação que eu sentia durante os exercícios de luta com o meu abade, eu entendi enfim o que o druida estivera tentando me revelar: Sim, eu era Alline e não Gilles, eu era uma moça  e não um rapaz. E essa mulher tremia quando o abade a apertava em seus braços porque ela... tinha encontrado o Amor DENTRO DE SI!

Mestre Kelvin entrou dentro do meu raciocínio com toda a facilidade:

– Isso mesmo, minha filha! Agora você compreende tudo. O verdadeiro amor surge sempre de dentro para fora. Dentro da pessoa que se descobre amando. Felizmente você veio a mim no momento certo. E, antes que você comece a se preocupar com medo da reação do seu abade, deixe que eu lhe diga, entrando um pouco futuro adentro: Sim, seu amor será correspondido. Na verdade, já o é. Mas isso é tudo que eu posso lhe dizer por ora. Agora vá em paz para seu alojamento e trate de descansar e por os pensamentos dessa cabecinha em ordem.

E eu fiz isso: saí dali andando em direção ao nosso alojamento, flutuando pelos ambientes da abadia, cantando baixo, rindo contente, rodopiando pelos corredores, com se eu fosse uma criança abençoada. Pois era exatamente assim que eu me sentia naquele momento.

–E o abade? –perguntaram os dois oficiais romanos em uníssono.

– Isso eu acho que vou ter que deixar para lhes contar depois, pois vejam: três oficiais estão chegando à entrada da tenda e devem precisar dos senhores.

–Sim, sim, é verdade! Esqueci que tTemos que nos reunir para decidir o futuro dos prisioneiros que não estão feridos. Então com licença, Alline de Troyes, devemos nos retirar. Mais tarde, por favor, de-nos outra vez o prazer de compartilhar a refeição conosco. Então haveremos de encontrar um bom momento e lugar para prosseguirmos com seu relato. E pode ficar tranquila, de nossas bocas não saíra uma só palavra a respeito de um certo general do império.

Alline inclinou a cabeça em agradecimento e o general e o centurião foram embora com os outras oficiais.

Continua: O abade Lucinus e o general Lucius duelam por amor

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