domingo, 7 de fevereiro de 2016

LUA  OCULTA – 63   
MILTON MACIEL 

63 - De RIOS FLAMENCO
Fim do cap. 62:  "O Juiz de Paz leu solenemente o novo nome completo da antes noiva, doravante esposa: 
– Senhora Jennifer Oliveira Schlikmann!"

Leon notou que Gládis e Carmen não estavam ali, nem assinando o livro, nem lhes desejando felicidades. Onde estariam as espanholitas?

Foi Celso Teles, ao abraçar Leon efusivamente, que solucionou o mistério, quando ouviu a indagação do noivo:

– Olhe para o palco, Leon. É ali que você vai ver as espanholas mais lindas e mais incríveis deste país.

Como que em sincronismo exato com isso, no momento em que Larissa apertava Leon forte em seus braços, os inigualáveis faróis de azul água-marinha inundados das inevitáveis lágrimas de felicidade, a grande cortina se abriu e o som de guitarras espanholas explodiu num flamenco de andamento enérgico, apoiado por uma perfeita percussão.

Sons de castanholas inundaram o palco vindos de três diferentes pares de mãos: Ali estava Gládis de Rios! E sua mãe Carmen de Rios. E sua avó Mercedes de Rios. Todas com seus fantásticos vestidos longos e coloridos, com suas mantilhas, com suas flores grandes no alto da cabeça, os cabelos negros em coques elaborados. Com todos os seus músicos e bailarinos, o De Rios Flamenco fazia sua estreia triunfal na cidade de Amarante!

As três espanholas eram igualmente perfeitas em tudo, impressionantes, consumadas artistas todas elas. Em seus movimentos ágeis, ritmados, síncronos, os dedos nas castanholas, os pés no mais inacreditável sapateado, os braços como serpentes envolventes, as belas faces iluminadas pelos sorrisos, as mantilhas acompanhando cada detalhe da coreografia.

Havia três guitarristas de altíssimo nível, todos espanhóis. E dois bailarinos, também eles espanhóis, com suas roupas pretas de toureiro, faixas vermelhas nas cinturas, chapéus pretos rasos completando o conjunto. Também eles dançavam e sapateavam com extrema elegância e perfeição, evoluindo no palco em perfeito sincronismo com a as três bailarinas.

O público estava simplesmente pasmo. Nunca tinham visto nada assim, nem de longe parecido, em Amarante. Balé espanhol para eles só aparecia em raros filmes na TV e, muito mais raramente, no cinema. Mas eram de uma pobreza torpe, quando comparados com a apoteose que se desenrolava aos olhos de todos ali, no grande salão do Clube Imigrantes.

No segundo número, um dos violonistas deixou a guitarra e passou a cantar uma melodia cigana com uma voz e uma entonação totalmente incomuns, entusiasmando ainda mais a plateia. Ele cantava e batia palmas simultaneamente, como se suas mãos fossem os mais afinados instrumentos de percussão.

No terceiro, houve um longo solo de Mercedes De Rios, com uma dança lenta, melodia chorosa, desempenho comovente, a letra falando da solidão de um grande amor perdido. Então o cantor deixou sua posição e assumiu de novo sua guitarra. E outro violonista deixou seu instrumento e pulou no centro do palco, com um salto acrobático impressionante. Então Mercedes deu um grito, ela e o bailarino enlaçaram-se, o bailado e o sapateado aceleraram-se ao máximo, a nova letra celebrava o retorno do homem amado, a retomada da relação interrompida. Era o amor triunfante, a alegria de volta à cena.

Esse terceiro episódio, sozinho, durou mais de quinze minutos. O público não se conteve, interrompeu várias vezes com aplausos frenéticos, o que não desconcentrava de forma alguma os artistas no palco, que seguiam seu desempenho perfeito, como se nada ouvissem além da música dos instrumentos e de seus próprios sons de vozes, castanholas e saltos.

O ato seguinte foi interpretado por uma brilhante solista, com toda a trupe como coadjuvante. As guitarras inundaram o palco com uma bela passagem do balé baseado na ópera Carmen, de Bizet; e Carmen De Rios dançou a Habanera, numa versão para flamenco extremamente sofisticada, longa e complexa. Novas explosões do público celebraram a notável bailarina. Os homens sem respiração, vidrados no belo corpo e na bela face onde uma boca extremamente voluptuosa os encantava. As mulheres encantadas com a riqueza dos longos vestidos, das mantilhas, dos corpos ágeis e esguios de Carmen e de todas as outras bailarinas.

O número final, também ele muito longo, não foi menos apoteótico. A solista era Gládis De Rios! Os guitarristas tocaram uma adaptação para violões perfeita de uma parte do Capricho Espanhol de Rimsky-Korsakov. Um balé espanhol de tirar o fôlego tomou conta do palco, todos os dezoito membros da trupe em atividade atingindo seu máximo desempenho.

As evoluções de Gládis De Rios eram marcadas por sua beleza impressionante: o corpo alto, esguio, atlético, musculoso, as curvas, as ancas, os seios, os glúteos saltando marcados pelo vestido vermelho, o rosto perfeito, os longos cabelos negros cacheados, os braços dançando com vida própria, os olhos expressivos como que falando, os hábeis pés marcando os compassos perfeitos de um sapateado impressionante.

Os homens ficaram sem fôlego: era beleza demais! Mas não era só beleza. O que aquela jovem mulher exsudava era força! Havia uma imensa energia que saía daquela figura em evolução, uma energia que dizia a todos que aquela mulher era um autêntico centro de força. 

Alguns não puderam deixar de lembrar que aqueles pezinhos delicados, calçados com aqueles volumosos calçados de sapateado, tinham bailado flamenco na cara e na cabeça de Valdemar Silva.  Sim, ali estava uma estranha mistura de beleza, juventude, coragem e força. E agora viam que havia também toda aquela graça impressionante, inigualável, da bailarina de flamenco. Uma mulher sem igual, realmente!

A apresentação do De Rios Flamenco acabou com uma apoteose final, com todas as três grandes solistas e todos os músicos e bailarinos da trupe dançando e cantando juntos. Um espetáculo absolutamente inesquecível para Amarante. No outro dia e no final de semana, o diário local estampou fotos impressionantes, uma delas um close sensacional de Gládis De Rios em um rodopio acrobático em pleno ar. Os textos se desmanchavam em elogios e salientavam como era importante que Amarante tivesse recebido esse espetáculo de gala do balé folclórico espanhol, graças ao que chamavam de “casamento do ano”.

Também nas reportagens o casamento multirracial de Jennifer e Leon era exaltado como uma demonstração de progresso e civilização da outrora rudemente racista sociedade de Amarante.

Efetivamente, nos dias que se seguiram, Leon e Jennifer praticamente não encontraram manifestações de desapreço por parte dos racistas da cidade. É que havia corrido pelos quatro cantos dela a história da surra que o grandalhão Aurélio tinha aplicado nos homens que destrataram e agrediram Leon. E a ameaça que isso deixava implícita para os que ousassem repetir a façanha dos fujões.

Havia também as muitas vezes relembradas menções à Lei Afonso Arinos e à postura francamente beligerante do Dr. Oliveira, delegado de Amarante, pronto a prender de forma inafiançável quem cometesse crime de racismo.

Mas, a bem da verdade, era preciso considerar que o que os possíveis ofensores mais temiam era a terrível dupla de gigantes da Teles Automóveis e da Teles Academia, Anselmo e Nicanor, cuja fama havia se esparramado aos quatro ventos, depois das surras que eles deram nos capangas do finado Valdemar Silva. Ora, se um irado Aurélio, amigo de Leon, já era um justiceiro indigesto, que dizer daquele armário mulato que havia demolido o próprio Aurélio, de quem tinha virado bom amigo agora, por incrível que isso pudesse parecer.

Quem ousaria ofender Jennifer, uma das moças da equipe de Celso Teles, certamente defendidas todas elas por aqueles sabujos gigantes? E não eram só os dois, a equipe de segurança de Celso Teles era ainda maior, os bandidos de Silva que o dissessem!

Os racistas e as racistas de plantão concluíram rapidamente que ofender Jennifer ou Leon podia fazer muito mal à saúde: “Imagine só, cara, encontrar de repente, pela frente, aqueles três mastodontes juntos, Aurélio, Nicanor e Anselmo! É de arrepiar qualquer um. Aí o sujeito corre pra salvar a pele a acaba na jaula do delegado Oliveira. Grande salvação!”

CONTINUA
Mercedes De Rios baila:

Nenhum comentário:

Postar um comentário